Moçambique (Jamira – Montepuez)

 

Encontrava-me na sala de embarque do aeroporto de Maputo. Pelas amplas janelas podia ver vários aviões parqueados à minha frente, mas não conseguia distinguir qual deles seria o avião que me levaria de regresso a Portugal.

A viagem de bicicleta terminara. Num ápice tudo acabara. O que demorara anos a sonhar e meses a preparar, esvaecera-se em poucos dias... ou talvez um pouco mais que umas semanas ou mesmo meses. Perdera a noção de “tempo”, mas uma coisa tinha em mente, eu estava de regresso a casa e nada podia fazer. Iria voltar para o mundo dito normal, para a rotina do dia-a-dia e para os comportamentos estereotipados. Para trás ficavam os tempos de pura liberdade e puro prazer…

Fui conduzido por uma hospedeira loira de uniforme azul ao local de embarque e posteriormente ao meu lugar no avião. Estava sentado à janela na fila do lado direito. Nos lugares adjacentes… ninguém. Ia sozinho. À minha frente, uma hospedeira de uniforme vermelho fazia os últimos preparativos antes da descolagem.

Enquanto o avião fazia-se à pista e iniciava a operação de descolagem, olhei pela pequena janela oval e despedi-me de um Maputo do qual não eu tinha recordações. Tudo passara demasiado depressa. Nas profundezas da minha consciência não conseguia encontrar as memórias das últimas etapas em solo Moçambicano. A única coisa que permanecia entranhado em mim, era o cheiro e o sabor a terra... Pedi um copo de água à hospedeira de uniforme vermelho para lavar a boca e fechei os olhos… senti o ar condicionado do avião a entrar em funcionamento e o corpo a arrefecer…

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Acordei semi-gelado pouco antes das 5h30 com a síndroma que estava na recta final da minha viagem. Na minha boca ainda podia sentir o sabor a terra juntamente com alguns grãos de pó que nela se tinham alojado no dia anterior.

No meu corpo estava toda a roupa com que havia percorrido a última etapa e assim iria permanecer, pelo menos para a etapa seguinte.

Rapidamente pus-me a pé e iniciei o ritual de preparativos para começar o dia.

Pedi aos meus ajudantes da noite anterior para ferverem um pouco de água, a fim de preparar as minhas papas Cerelac, enquanto eu desmontava a tenda e apetrechava a bicicleta com a devida carga.

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Na parte da frente do armazém de cereais chegavam os primeiros fregueses, ora para comprar ora para vender os seus produtos.

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Aos poucos os raios de Sol iam aquecendo o dia, que tinha iniciado bastante fresco.

Até Balama eram cerca de 40Kms e o simples facto de as pernas estarem a acusar um ligeiro cansaço (devido ao dia anterior) levava-me a considerar a hipótese de pernoitar em Balama, caso a estrada estivesse em muito más condições (entenda-se areia). Em caso contrário, seguiria até Montepuez com o objectivo de recuperar o dia perdido na etapa anterior.

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Entre despedidas e agradecimentos, iniciei a etapa às 7h30.

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Continuava por entre montes e vales, sem grandes subidas significativas.

A estrada maioritariamente de terra batida, insistia em manter alguns troços de areia que derretiam-me as pernas e a paciência.

A presença de aldeias aqui e ali tornava-se mais comum, contrariando os momentos de “solidão” do dia anterior.

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O simples facto de saber que os leões e os leopardos permaneciam para lá do riacho que atravessara na etapa antecedente, permitia-me desfrutar do som do meu iPod. Nesta altura já conhecia todos os álbuns de cor e salteado pelo qual optava por usa-lo em shuffle.

Faltavam 10 minutos para as 9h00, quando surge o meu primeiro contratempo.

Novo furo no pneu traseiro. Começava a ficar farto dos furos no pneu traseiro. Desde que entrara em Moçambique que a roda traseira não me dava descanso.

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Após desmontar o pneu constatei uma vez mais que o furo era do lado interior da câmara-de-ar. Aliás, tal como as últimas vezes, não se tratava de um furo no sentido lato da palavra. Tratava-se sim de um pequeno corte. Mantinham-se as minhas dúvidas em relação à qualidade da câmara-de-ar… ou seria simplesmente coincidência.

Pela n-ésina vez, verifiquei se havia alguma limalha ou outro elemento cortante que estivesse alojado no aro (ou pneu) da bicicleta. Mas mais uma vez… nada.

Após reparar o rasgo com mais um remendo, montei o pneu e fiz-me à estrada. Não havia tempo a perder se é que queria chegar a Montepuez.

A paisagem era constituída por um misto entre savana e mato rasteiro. Aqui e ali um embondeiro com toda a sua imponência, a retalhar o céu como se de estilhaços se tratasse.

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Aproximava-me de Balama. Estava a cerca de 20Kms da povoação que havia considerado como o destino final da etapa anterior.

As aldeias começavam a abundar ao longo da estrada. Na maior parte das vezes os seus habitantes nem se apercebiam da minha (silenciosa) passagem. E quando se apercebiam da minha presença, já eu estava de saída pelo outro extremo.

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Em alguns casos cruzava-me com crianças que ficavam estupefactas, sem saber se haviam de fugir ou se haviam de satisfazer a sua curiosidade de ver de perto o branco que cruzava os seus terrenos montado numa bicicleta.

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Com o aquecer do dia veio a transpiração e com a transpiração veio todo o tipo de comichões e irritações, derivadas da sujidade que transportava comigo (e nas minhas roupas) há mais de 24 horas. Só me apetecia coçar com uma escova de arame de modo a arrancar toda a poeira que parecia entranhada nos poros da minha pele.

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A motivação seguia a bom nível mesmo com a constante presença de troços de areia, que fustigavam as minhas perninhas. Por duas vezes acabei estendido na areia devido à súbita aparência de areal quando eu menos esperava. Numa das quedas, e sem que eu tivesse reparado, parti um dos suportes das garrafas e consequentemente perdi a garrafa. Ficava assim, com menos 1 litro de capacidade instalada nas minhas reservas de água.

Tal como na etapa anterior, a energia psicológica vinha do gosto pelo “descobrir”.

Percorria estradas de terra vermelha, sempre com a constante característica “afro”, com os seus cheiros e sons inconfundíveis.

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Eram as 10h30 quando entrei em Balama. Apesar das dificuldades tinha conseguido chegar em boa hora o que me permitiria descansar um bocado e prosseguir até Montepuez. Afinal de contas havia percorrido 1/3 da distância até ao destino proposto.

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Balama era uma pequena população sem estradas asfaltadas mas com algumas construções de cimento. À minha esquerda estava o mercado local repleto de vendedores dos mais variados artigos. À minha direita estavam os estabelecimentos que eu procurava, ou seja um local onde pudesse beber uma Coca-Cola bem gelada e onde houvesse algo para trincar.

Dirigi-me à última casa comercial da avenida principal. Entrei juntamente com a bicicleta e pedi a tão desejada bebida de modo a saciar a minha sede.

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O mercado de Balama era o local ideal para me abastecer com bananas e outros artigos que necessitaria para enfrentar os seguintes 60Kms.

Deixei a bicicleta dentro do estabelecimento de bebidas e decidir sair para passear a pé.

Percorri as estreitas vielas do mercado, por entre telhados de capim e bancas de madeira.DSCF6227

  Havia um pouco de tudo, desde fruta a legumes. Sal e peixe seco.

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Todo o tipo de vestimentas (dentro e fora de moda) e também uma grande variedade de artigos enlatados e artigos embalados.DSCF6228

Os lençóis e as capulanas coloridas contracenavam com o esbatido dos edifícios e a cor acastanhada da estrada…

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em frente às bancas de bebidas, alguns rapazes jogavam matraquilhos enquanto outros descansavam na sombra dos edifícios adjacentes… Em suma… parecia que estava numa grande cidade.

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De regresso ao estabelecimento onde deixara a bicicleta, o empregado alertou-me que tinha o pneu da bicicleta vazio.

Após desmontar o pneu, mais uma vez constatei que o furo era em tudo semelhante aos furos anteriores. Isto é, um pequeno corte no lado interior da câmara-de-ar.

DSCF6238 Colei um remendo enquanto devorava algumas das bananas que acabara de comprar no mercado. Pouco depois tinha o pneu reparado e estava pronto para reiniciar a viagem.

Enquanto me despedia do empregado do estabelecimento e ao mesmo tempo que acenava com a mão um “adeus”, ouço um estouro logo seguido de um rápido “psssssssss”.

A câmara-de-ar acabava de rebentar novamente, para meu desespero.

Voltei a colocar a bicicleta dentro do estabelecimento. Retirei das malas todas as ferramentas necessárias para a operação de reparo, inclusive o kit de remendos e colas. Desmontei a roda e em seguida o pneu, com uma paciência de santo. Perdi alguns minutos a tentar detectar onde estava o novo furo e a repara-lo. Desta vez não havia sido um novo furo, mas sim o remendo anterior que descolara.

Tinha então que retirar o remendo velho, raspar a cola com a ajuda de uma navalha e voltar aplicar um remendo novo. Desta vez a operação foi elaborada com o dobro do cuidado para evitar de repetir todos estes passos uma vez mais.

Eram as 12h30 quando voltei a sentar-me na bicicleta para enfrentar os restantes 60Kms até Montepuez.

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Via com bons olhos os últimos quilómetros da etapa, pois havia reparado na existência de veículos em Balama, o que significava que a estrada até Montepuez não estaria em tão más condições como a que percorrera até ali.

Ao que me tinham informado em Balama, este troço estava a ser reparado por uma empresa italiana de obras públicas, pelo qual não teria qualquer problema em percorrê-lo.

Cerca de uma hora depois de ter deixado Balama, ainda não tinha encontrado qualquer vestígio de reparação ou beneficiação da estrada. Continuava por uma estrada de terra batida com alguns troços de areia por entre belas paisagens tipicamente africanas.

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Voltei a encontrar mulheres com os fardos de palha na cabeça, que me fizeram recordar a ilusão óptica que havia sofrido aquando da minha travessia do areal na Zâmbia, onde confundi uma figura semelhante com a silhueta de um cavalo.

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Apesar do cansaço físico e das incomodativas comichões pelo corpo todo, permanecia animado. O ritmo baixava com o passar das horas devido ao desgaste extra provocado pelos pequenos troços de areia que iam surgindo pela frente. Mas na maior parte das vezes a beleza paisagística fazia-me abstrair de tudo isso, de maneira que eu nem notava a baixa de rendimento.

DSCF6248 No entanto nem tudo podia correr bem, e neste momento além dos constantes e inexplicáveis furos na roda traseira, debatia-me também com problemas no desviador da corrente (traseiro).

Sem saber muito bem qual a razão, o desviador prendia, enrolando-se com a corrente de modo que eu era obrigado a parar.

Para me desembaraçar de tal imbróglio tinha que recorrer à força bruta e enfiar uns coices nos pedais (mas em sentido contrário) de maneira a soltar a corrente.

Quando o desviador da corrente decidia dar-me um pouco de paz, então o pneu traseiro resolvia marcar a sua presença.

DSCF6252Eram as 14h45 quando recebi mais um presente. Contava com 6 remendos colados nesta câmara-de-ar e ia aplicar o sétimo para puder seguir viagem até Montepuez.

 

Á medida que me aproximava de Montepuez cruzava-me com armazéns ou estabelecimentos comercias de outros tempos, que eram muitas das vezes utilizados pelos mais pequenos como locais de encontro para as suas brincadeiras.

Á minha passagem gritavam sons de euforia e de espanto. Corriam uns para os outros como baratas tontas e se eu lhes apontasse a máquina fotográfica, faziam posições tipo Dragon Ball.

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45 Minutos depois de ter tido o último furo, eis que ganhei mais um brinde. A minha roda traseira estava a fazer o derradeiro teste à minha santa paciência.

DSCF6253Furo atrás de furo, sem que eu encontrasse um motivo para tanto infortúnio. Todos eles do lado interior da câmara-de-ar.

Para agravar ainda mais a situação, reparei que tinha um raio partido na mesma roda.

Nada podia fazer ali no meio do mato. Em Montepuez teria obrigatoriamente que dedicar algum do meu tempo à manutenção/reparação da bicicleta.

Muito possivelmente iria perder uma manhã ou um dia nas reparações, o que iria atrasar a minha partida em direcção a Pemba.

Pedalava em direcção a Montepuez. A estrada ia melhorando de condições a cada quilómetro que passava, no entanto nunca avistei as ditas máquinas que supostamente estavam a fazer a beneficiação ou reconstrução da estrada.DSCF6250

Possivelmente o projecto ainda estava em fase de iniciação.

Eram quase as 17h00 quando iniciei a minha entrada em Montepuez. No início uma confusão de barracas e lojas, por entre vias de areia e terra batida. Parecia que toda a população estava na rua, circulando a pé, de bicicleta ou motoreta, dificultando a minha passagem.

Por todo o lado havia barracas de bebidas com enormes colunas de som do lado de fora, que soltavam uma ensurdecedora vozearia. Questionava a mim mesmo como seria possível os clientes, que permaneciam encostados às mesmas colunas, de manterem uma conversa entre eles ou mesmo com o empregado de balcão.

As crianças e os jovens que saiam das escolas com os seus característicos uniformes escolares em correrias inconstantes, sobressaíam do resto das gentes adereçadas com as vestes habituais.

Enquanto tentava desembaraçar-me da confusão de gente para chegar ao centro da cidade, reparei que tinha novamente o pneu traseiro vazio.

Não havia condições nem paciência para reparar o furo no local onde me encontrava. Simplesmente optei por encher o pneu sem o reparar e ir percorrendo aos poucos os quilómetros que faltavam, pedalando apoiado no guiador de modo a aliviar o peso na roda traseira.

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Entrei em Montepuez por uma avenida larga e limpa com duas faixas em cada sentido, separadas por um passeio central. Por todo o lado encontrava bonitos edifícios de outra época e em bom estado de conservação.

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Dei uma volta pela avenida principal à procura de um lugar para dormir. Na estação de serviço central (onde aproveitei para encher o pneu), indicaram-me a Montepuez Sleeping house.

A Montepuez Sleeping house era uma pensão com condições (e preços) acima do meu orçamento diário. Após uma curta troca de algumas impressões com o dono da pensão, este convidou-me a permanecer num anexo da sua casa por um preço bastante mais convidativo.

Pelo menos teria uma cama e direito a banho de água quente, que era o que eu mais precisava depois dos dias a comer pó, terra e areia. Era bem notória a camada de barro que eu trazia alojada na minha pele e na minha roupa.

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O serão foi passado no restaurante da pensão, na companhia do Lito (o dono) e alguns amigos. Escolhi uma mesa ao canto e no fundo da sala, para que as minhas “maneiras” de comer não fossem notadas pelos restantes clientes do restaurante.

Deliciei-me com uma costeleta gigante (que pareceu-me minúscula) e uma pratada de arroz. Mas como já era previsível, cinco minutos após o jantar já tinha o meu estômago a dar sinal de “vazio”. Tive que pedir uma segunda dose.

Após os pastei de nata e o café Delta, encontrei no restaurante do Lito mais um gosto de Portugal…

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No total da etapa do dia, percorrera 95Kms em 9h48m das quais apenas 6h09m foram em movimento. O restante tempo foi dedicado a passeios pelo mercado de Balama e a reparar furos.

Percorri um total de 2Kms a empurrar a bicicleta pelos diversos troços de areia, que me consumiram 36  minutos.

2 comentários:

  1. Gosto muito do uniforme amarelo e do boné do vendedor de coca-cola...
    Gostei de voltar a ler as aventuras do "Remenda-Furos"

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  2. Então e mais posts? a história não continua???

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