Moçambique (Marrupa – Jamira)

 

Após um dia de descanso em Marrupa onde o único objectivo era a recuperação física das minhas pernas, decidi que estava na hora de arrancar em direcção a Balama.

Estava optimista e motivado relativamente à distância que teria que percorrer. Os 151Kms de picada não me assustavam, no entanto estava ciente que as pernas poderiam voltar a acusar desgaste sem qualquer tipo de aviso prévio, o que me levaria a procurar abrigo algures no meio do mato.

As baixas temperaturas nocturnas e matinais já haviam deixado mossa na minha garganta e no meu nariz. Praticamente não conseguia falar sem sentir uma lixa para madeiras a roçar a faringe. O nariz era uma válvula fechada que não cedia à maior das pressões que eu exercia quando expirava.

DSCF6069

Contudo o nariz entupido não era motivo para grandes preocupações. Sabia que assim que eu começasse a pedalar, as vias nasais seriam forçosamente desimpedidas. O único inconveniente de ter o nariz obstruído seria a falta de paladar, o que me impediria de degustar o pequeno-almoço da melhor maneira.

Havia pedido o meu pequeno-almoço para as 6h30, no entanto às 7h00 quando me desloquei à cozinha da pensão, encontrei as cozinheiras ainda a descascar as batatas para as fritar.

Antes de partir em direcção a Balama, voltei a confirmar as condições da estrada. Entre algumas suposições e palpites dos meus novos informadores, concluí que a estrada até Nungo (40Kms) era picada em bom estado (algo que já me tinham confirmado nos dias anteriores).

DSCF6070Depois de Nungo é que começavam as incógnitas e as incertezas. Aparentemente teria cerca de 20 a 30Kms de picada em muito mau estado, para depois voltar a encontrar a via num estado aceitável.

A serem verdadeiras as informações colhidas, eu poderia continuar a sonhar em percorrer a distância de 151Kms até Balama entre 8 a 10 horas.

Iniciei a viagem às 7h45, cerca de 45 minutos depois da hora programada.

Imediatamente após sair do perímetro de Marrupa, entrei na picada. Para trás ficava a estrada alcatroada…

A estrada em terra batida encontrava-se em bom estado permitindo-me deslocar a boa velocidade. O ar frio da manhã invadia-me as narinas, trazendo com ele o cheiro inconfundível a terra vermelha e a mato.

DSCF6074

Do topo das colinas podia ter a imagem da estrada a serpentear pelo mato fora, como que a indicar-me o caminho para Este. Ao longe, os já habituais maciços graníticos que pareciam surgir do nada e que proliferavam pela região.

DSCF6081

Estava a afastar me de Marrupa e consequentemente a entrar cada vez mais fundo naquilo que poderia chamar de “desconhecido”. Pedalava alimentado por uma adrenalina que brotava em mim, sempre que seguia em zonas mais remotas que as habituais. Lembrei-me de Angola!

Talvez a última vez em que havia sentido algo semelhante fora nos 3 troços de Saurimo para Luena e nos seguintes 3 troços de Luena para Lumbala N’Guimbo.

DSCF6082 As pernas pedalavam com um entusiasmo fora do normal, de tal modo que conseguia manter velocidades médias perto do 20Km/h.

Por vezes o entusiasmo era tal que atingia (nas descidas) velocidades perto dos 40Km/h, passando por cima de lombas e regos, curvando nas bermas e taludes… para logo de seguida ser obrigado a parar a bicicleta a fim de colocar nos suportes da mesma, a bagagem que se havia soltado devido os pinchos originados pela inspirada condução.

Eram as 9h50 e eu encontrava-me muito próximo de Nungo. Era o último posto “conhecido” onde eu poderia passar a noite, caso não DSCF6094seguisse directamente até Balama.

Estava na altura de realizar alguns prognósticos à minha condição física e decidir se deveria seguir viagem ou se deveria poupar as minhas pernas.

Faltavam mais de 100Kms até ao destino proposto para a etapa do dia, os quais eu calculava percorre-los entre 6 a 8 horas. As pernas estavam de boa saúde e pediam mais quilómetros, no entanto pela frente teria o troço mais difícil do percurso.

DSCF6101 Enquanto fazia uma série de cálculos mentais, cheguei a Nungo. E da mesma maneira que cheguei… também saí... Mas pelo outro extremo da aldeia em direcção a Balama.

 

Assim que entrei em Nungo não reflecti muito mais sobre a possibilidade (ou não) de ficar a pernoitar na aldeia. DSCF6105Queria aproveitar todo o entusiasmo e motivação para seguir em frente na etapa, mesmo sabendo que um troço difícil poderia me atrasar horas, obrigando-me a procurar lugar para pernoitar antes de Balama.

Logo após a aldeia de Nungo, a estrada piorou consideravelmente. Era visível por todo o lado o efeito das chuvas e o efeito das correntes de água e lama que “comiam” a estrada e abriam enormes regos à sua passagem.

DSCF6109Uma vez mais encontrava-me no meio de nenhures, mas desta vez sem estrada alcatroada.

O receio de me encontrar com leões ainda permanecia nas minhas veias, todavia ligeiramente apaziguado devido ao esclarecimento do Constantino onde referiu que os leões existiam na estrada para Mecula e não na estrada para Balama e Montepuez (apesar da distância em linha recta ser inferior a 50Kms).

Pouco depois cheguei a uma ponte construída com toros de madeira, a qual exigia alguma atenção ao atravessa-la a fim de evitar que a roda traseira se enfiasse nos intervalos dos troncos e consequentemente empenasse (ou partisse) o desviador da corrente.

DSCF6114 

Contudo a maior dificuldade encontrava-se do outro lado da ponte.

Aparentemente a água existente nos terrenos teimava em passar ao lado da ponte, em vez de seguir no canal existente para esse efeito.

DSCF6117

A bicicleta não tinha altura suficiente para atravessar o charco, sem que os alforges ficassem meio palmo dentro de água, situação essa que seria imperativo evitar.

Havia quem já soubesse do obstáculo natural existente na área, aproveitando-o como um modo para ganhar alguns tostões. Rendido às evidências, dei autorização a dois dos miúdos mais fortes para carregar a bicicleta através do charco, onde eu seria o terceiro carregador colocado num dos lados da traseira da bicicleta.

De repente e sem me aperceber muito bem como, já não havia lugar para eu levantar a bicicleta. Estavam 8 almas a carregar a minha bicicleta para a outra margem do charco, onde estavam incluídas duas mulheres e um bebé de colo (neste caso pendurado nas costas da mãe).

DSCF6118

Assim que chegámos a terra firme, o rapaz mais velho pediu a “taxa” pelo serviço efectuado sem nunca ter mencionado uma quantia a pagar. Paguei-lhe um pouco acima daquilo que considerava ser o valor correcto do serviço, no entanto ao ver os olhos dos outros miúdos completamente arregalados e uns sorrisos que lhes rasgavam as bochechas, rapidamente concluí arrependido, que acabara de inflacionar o mercado…

Pela frente ainda deparei-me com mais 2 charcos de dimensões consideráveis, mas desta vez de baixa profundidade, o que evitou o recurso à ajuda de terceiros.

DSCF6125

Levava 3 horas em cima da bicicleta desde que saíra de Marrupa, quando cheguei ao primeiro troço de areia. Ainda fruto da boa inspiração que as minhas pernas possuíam, tentei atravessar o obstáculo arenoso pela berma do lado esquerdo. Afinal de contas conseguia distinguir marcas de pneus de bicicleta, o que quereria dizer que alguém teria circulado por essa mesma berma.

DSCF6129

Não foram necessários muitos metros a pedalar na areia, para que rapidamente me atravessasse no cérebro os momentos que passei em terreno semelhante para chegar a Sioma Camp (Zâmbia).

O esforço que tinha que fazer nas pernas era novamente desgastante e inglório. Os braços quase que não seguravam o guiador e num ápice toda a força anímica desmoronou-se. Era obrigado a desmontar da bicicleta e voltar a empurra-la, empregando a mesma técnica apurada (mas já um pouco esquecida), que usara nos 3 dias de travessia entre Nangweshi e Sesheke (Zâmbia).

Logo a seguir veio a fome, o buraco no estômago e consequentemente a fraqueza. Em poucos minutos encontrava-me a dizer mal dos troços de areia e a desejar que acabassem rápido.

Assim que acabava a tormenta da travessia do areal, voltava a subir na bicicleta para pedalar na deslavada estrada de terra batida.

DSCF6133

Sentia como nunca (durante a etapa), o desgaste ao nível de pernas, braços e ombros. Já não pedalava com a adrenalina nem o entusiasmo matinal. Deixava de ser o miúdo que queria acelerar, passar por todos os taludes, saltar regos e gingar por entre obstáculos. Era agora um graúdo que com a devida maturidade, estudava com antecedência onde iria colocar a roda da frente, evitando a todo o custo tudo que exigisse um pouco mais de esforço físico para controlar a bicicleta.

O cansaço começava a apoderar-se da minha consciência, contudo por vezes, esta orientava-se para o espectro “leão”. Afinal de contas não estava muito longe do seu (suposto) território.

DSCF6140

Por vezes instruía o iPod para me alimentar os tímpanos com algo energético a fim de me abstrair da realidade e aumentar um pouco a prestação física. Todavia esta solução culminou na aparência de um paradoxo entre o prudente mas inconfortável silêncio do mato e entre o incauto mas motivador barulho musical.

As poucas bananas que possuía e as bolachas que comprara em Marrupa, iam disfarçando o vazio que sentia no estômago. Porém a existência de troços de areia fazia com que o meu organismo assimilasse todo e qualquer vestígio de bolo alimentar existente no bucho.

Eram bem visíveis os estragos provocados pelas chuvas torrenciais na picada. Os regos fundos dificultavam a passagem a qualquer veículo 4X4. As diversas ramagens colocadas na parte central da via e normalmente usadas para aplicar debaixo dos pneus das viaturas atascadas, davam uma ideia clara das dificuldades que as mesmas haviam sofrido para percorrer o mesmo troço.

DSCF6147

Eu conseguia seguir viagem pedalando sobre pequenos taludes de cume achatado ou pedalando pelas desniveladas bermas, avaliando constantemente o estado do piso de maneira a evitar acabar com os queixos dentro de um dos perigosos regos.

Onde a estrada não se encontrava carcomida pelas intempéries, era a vez de a vegetação entrar em cena de tal modo que o capim quase fechava a estrada.

DSCF6152

Apesar dos meus esforços para o evitar, a minha mente perpetuava o paralelismo entre a imagem que os meus olhos transmitiam ao cérebro e os cenários do National Geographic (leão). Um paralelismo nada higiénico para a minha saúde mental, que aliada ao desgaste físico e ao factor “Hora do Dia Vs Kms por Percorrer”, contribuíam para um desassossego relativamente a possibilidade de chegar a Balama.

Pouco depois, e como para me distrair um pouco do medo psicológico que me percorria as veias, decidi furar o pneu traseiro. Antes de sair da bicicleta, olhei à minha volta numa tentativa inútil de identificar qualquer tipo de animal que, pelas suas vestes naturais, encontrar-se-iam camuflados.

DSCF6157

Deitei a bicicleta sobre o seu lado esquerdo (lado contrário ao desviador da corrente).

Em poucos segundos libertei as tiras de borracha (feitas de câmara-de-ar) que protegiam os alforges, desapertei o eixo e retirei a roda.

Aliviar o pneu do aro e extrair a câmara-de-ar foi uma questão de um par de minutos, ao mesmo tempo que os meus olhos rodavam em torno da nuca num constante sentido de alerta.

Identificar o furo com a ajuda da língua molhada em saliva e colar um remendo, necessitou de pouco mais de um minuto. Tinha todos os meus sentidos em alerta máximo. Qualquer barulho proveniente do mato fazia-me saltar de pés juntos.

Em seguida era só uma questão de colocar a câmara-de-ar e o pneu no devido lugar, para poder aplicar umas bombadas de ar até que o pneu atingisse a pressão desejada.

No total demorei 13m25s, desde que parei a bicicleta até que voltasse a pedalar.

Acho que nunca mudei um pneu tão rápido!

DSCF6155

Continuava estrada fora rumo a Balama. O tempo estava a passar e cada vez mais considerava que não chegaria ao destino proposto antes do final da tarde.

Pouco passava de 14h00 quando avisto à minha frente, um individuo a empurrar a sua bicicleta. Seguia no mesmo sentido que eu, e subia a passos largos uma pequena colina repleta de vegetação. Fiquei radiante. Finalmente encontrava alguém e poderia obter algumas informações. Coloquei-me ao lado dele, pedalando devagar de modo a seguirmos à mesma velocidade.

Após as apresentações, fiquei a saber que o meu novo parceiro seguia também para Balama e apesar de ter o pneu da bicicleta furado, ele ainda achava-se capaz de chegar durante o dia (ou durante a noite) de hoje.

DSCF6149Fiquei ligeiramente intrigado, pois eu também conseguia chegar a Balama… mas nunca antes das 18h00 (e a andar bem) … O que significava ter que pedalar de noite no meio do mato, por mais de 1 hora.

Entretanto parámos ambas as bicicletas na berma. Ao mesmo tempo que escutava alguns detalhes sobre o troço até Balama, tirava das minhas malas o “kit” para reparar o pneu do meu colega.

A ideia de ter que pedalar de noite naquela zona, não engrenava nada com as minhas pretensões, no entanto o meu parceiro não parecia muito preocupado com isso.

Perguntei-lhe directamente a que horas pensava ele chegar a Balama, mas a resposta que obtive era constituída por unidades de tempo não mesuráveis ao olho de um ocidental. Perguntei-lhe então se não havia problema de pedalar de noite devido a leões ou leopardos:

- Nada! Esses aí… só do outro lado do rio que acabámos de passar… - Respondeu confiante. Eu perguntava para mim mesmo “mas qual rio?”… a única coisa parecida com um rio foi um ribeirito com uns troncos em cima a fazer de ponte… cerca de 1 quilómetro atrás.

- Esse mesmo! Eles estão do outro lado. Aqui já não há problema.

Fiquei muito mais descansado em saber que a bicharada estava do outro lado de um riacho com 2 metros de largura e 20cm de profundidade, e que não passava para o lado de cá

Enquanto trocávamos ideias sobre a vida selvagem da região, concluímos que nada podíamos fazer para reparar o pneu furado. Nenhum de nós possuía ferramentas para desapertar o eixo da jante 28” da sua bicicleta nem sequer uma bomba de ar que servisse no tipo de pipos da sua câmara-de-ar.

O meu amigo parecia estar ainda menos preocupado que eu. Já estava “perto” da casa de um primo e lá iria conseguir arranjar a bicicleta. Deixei-lhe alguns remendos para reparar a câmara-de-ar e segui viagem.

Nos troços em bom estado, tentava recuperar algum do tempo perdido nas partes arenosas. DSCF6158

No entanto nada era eterno e logo depois de uns quilómetros a pedalar em estrada boa, apareciam sempre umas centenas de metros de estrada de areia, onde eu era obrigado a arrastar a bicicleta à mão até encontrar novamente um pedaço de solo compacto.

DSCF6132 Por vezes aventurava-me pelos troços de areia sem desmontar da bicicleta, numa tentativa de chegar a “terra firme” sem ter que empurrar/puxar a bicicleta e os seus 35Kgs de Carga.

Havia alturas em que as travessias corriam bem, outras havia, em que eu dava por mim já sentado na areia com os pés presos nos pedais e a bicicleta no meio das pernas.

Numa dessas vezes em que eu “acordei” com o costado envolto em areia por não ter conseguido tirar os pés dos pedais em tempo útil, acabei por danificar a minha máquina de fotografias.

A areia enfiou-se por tudo quanto era frinchas da minha câmara impedindo que esta funcionasse nas melhores condições. O primeiro indício que algo estava mal era as lamelas de protecção da lente que não queriam abrir.

DSCF6160

Começava e avistar novamente gente a circular na estrada. Apesar de ainda serem muito poucas, significava que eu estaria perto de uma aldeia… ou então perto da casa do primo do meu amigo.

Já passava das 16h00 e pela frente ainda tenha mais de 45Kms até Balama. Tal como previra algumas horas antes, era de todo impossível chegar a Balama com a luz do dia. Parte da viagem teria que ser feita de noite, algo que eu não estava de todo predisposto… mesmo sabendo que os leões só andavam do outro lado do ribeiro. Por outro lado, já não tinha água suficiente para fazer muitos mais quilómetros. Teria obrigatoriamente que ficar na próxima aldeia, fosse ela onde fosse…

Demorou quase 45 minutos até que voltasse a encontrar alguém na estrada.

DSCF6165

Aproximei-me do ciclista que seguia à minha frente e após as notas introdutórias, perguntei-lhe onde era a próxima aldeia.

- Já ali à frente… – Respondeu sem hesitação.

“Pronto”- Pensei exausto – “Já vou ter que pedalar mais 30Kms”.

Contrariamente ao que supôs, pedalei apenas 3 minutos até encontrar (ainda iluminado pelos raios solares) aquele que seria o meu “Porto Seguro”.

DSCF6172

O edifício era um vestígio de outrora que neste momento funcionava como um armazém de cereais. Era a única edificação feita de tijolo e cimento da aldeia.

Do outro lado da estrada estava 3 ou 4 casas feitas de lama e palha e nas suas proximidades estava a bomba de água manual onde eu poderia encher as minhas garrafas. Ao fundo da estrada (talvez a 300 metros) conseguia ver um aglomerado de barracas feitas de troncos e capim, com coloridos sacos de plástico pendurados por toda a parte. Era o mercado da aldeia.

Perguntei ao responsável pelo armazém de cereais onde eu poderia montar a tenda e onde poderia petiscar alguma coisa rápida. Prontamente respondeu que eu podia montar a tenda nas traseiras do edifício e para o caso da comida podia comprar uma galinha (viva) no mercado.

Agradeci ao simpático homem. Reservei o lugar onde iria montar a minha tenda e decidi dar um saltinho ao mercado da aldeia à procura de algo para beber e para petiscar.

Comprei um bocado de pão em forma de melão e juntei-lhe 2 garrafas de Fanta servidas à temperatura ambiente. Estava feito o meu lanche. Devorei uma Fanta e metade do pão sem sequer me aperceber da quantidade de miúdos que por esta altura, olhavam intrigados para todos os pormenores da bicicleta.

DSCF6174

De estômago acomodado, estava na hora de regressar ao armazém de cereais para iniciar a preparação da minha tenda e também do meu jantar.

Faltavam 15 minutos para as 18h00 quando cheguei ao velho armazém. À minha espera estava o responsável pelo espaço comercial juntamente com um grupo de crianças, que excitadas, não paravam de fazer malabarismos só para aparecerem nas fotografias.

DSCF6175

O responsável pelo armazém era a única pessoa que falava português. Explicou-me que as crianças não sabiam a língua de Camões porque não queriam ir à escola da aldeia, “Dizem que não vale a pena aprender nada se no final da escola não encontrarão emprego… ”.

Eu iria ficar sozinho com dois dos (miúdos) guardas, pois estava na hora dos restantes regressarem a casa. Antes de partir, o gerente deu as instruções finais aos guardas. Um deles iria buscar água ao poço para eu beber e poder cozinhar, enquanto o outro ficava encarregue de acender uma fogueira.

Enquanto isso, eu preparava a minha tenda sob a luminosidade da minha lanterna e de duas pequenas velas.

DSCF6187

O pão e as duas Fantas que eu ingerira minutos antes, já não residiam no meu estômago. Teria que preparar um panelão de esparguete para saciar o vazio que havia em mim.

Pedi uma panela aos meus anfitriões, pois a minha era pequena para cozinhar a quantidade de comida que eu pretendia.

Um dos miúdos entrou numa dispensa escura, basculhou por entre sacos e restos de metal para depois regressar com uma panela, um prato e uma colher.

Olhei para a panela completamente preta pela fuligem de outras fogueiras. No lado de dentro ainda estavam os restos de comida da última refeição ali cozinhada (provavelmente dias antes). O prato e a colher apresentavam a mesma decoração do interior da panela. Voltei a fazer uma pequena inspecção à panela para saber se tinha algum furo e em seguida disse ao meu ajudante:

- É isto mesmo, obrigado.

Este concordou comigo e iniciou o processo de remoção dos restos de comida com a palma da mão, como quem lava loiça com um esfregão e detergente. Seguidamente deitou um pouco de água dentro da panela, abanou a mesma em círculos de maneira a recolher todos os detritos solidos e despejou a água fora. Estava a panela lavada! O prato e a colher passaram pelo mesmo processo mas um pouco mais rápido.

Minutos depois estava sentado junto à fogueira a aguardar que a água fervesse para poder comer o meu delicioso esparguete com sardinhas.

DSCF6179 

DSCF6188 Ainda não eram as 20h00 quando deitei-me na minha tenda, vestido com as mesmas roupas com que viajara nesse dia. As noites estavam muito frias, o que desencorajava remover qualquer peça de vestuário, quanto mais tomar banho a balde.

Na minha pele estavam mais de 100Kms de pó, terra e areia. Sentia a testa a estalar cada vez franzia as sobrancelhas, enquanto nos braços e pernas as coceiras começaram a emergir.

Nada que o cansaço e uma barriga cheia não conseguissem resolver da melhor maneira…

Na etapa do dia percorri 114Kms dos 151Kms (a que me havia proposto) em 9h17m.

Empurrei a bicicleta durante 52 minutos para percorrer 3Kms de estrada de areia.

Estive parado durante 49 minutos onde se inclui a reparação do meu pneu e a tentativa para reparar o pneu do meu colega.

Na etapa seguinte iria tentar passar Balama e ir direito para Montepuez. Afinal de contas eram apenas 95Kms.

2 comentários:

  1. Vale a pena perder uns 10 minutos a ler e apreciar os teus relatos! Fantástico!

    ResponderEliminar
  2. Finalmente mais história...
    Se não soubesse que estavas bem diria que tinhas tido um "encontro" National Geographic...
    Fico à espera de mais!!

    ResponderEliminar