Acordei repleto de inchaços resultado das mordidelas dos moscardos que me acompanharam durante a etapa do dia anterior.
Levantei-me, ainda não eram as 6h00. Comecei a arrumar a tenda e o resto da tralha de volta à sua posição na bicicleta.
Lá fora o Sol já brilhava bem forte, no entanto estava um frio de rachar. Só desejava que o dia aquecesse depressa para evitar que eu pedalasse com os maxilares a tilintar.
Pedi para ferverem um pouco de água com o objectivo de poder preparar o meu pequeno-almoço, ou seja um prato de farinha láctea.
Reparei que todos me olhavam com um ar curioso enquanto eu misturava a farinha com a água.
Pedi um segundo prato e preparei mais papa para dar às duas crianças que estavam penduradas nas capulanas das mães.
Comecei a comer o meu prato de papa enquanto o filho do chefe do posto distribuía o segundo prato de papa por todos os presentes, quer fossem adultos ou fossem crianças.
Segundo me explicaram, era a primeira vez que provavam uma farinha láctea (tipo Cerelac) e os seus rostos comprovavam isso mesmo.
Deixavam a papa na boca por algum tempo antes de a engolir, enquanto os seus olhos aguardavam o impulso cerebral que lhes informaria se o sabor da mistura era bom ou não.
Por vezes lá se via uma ou outra contracção de um músculo facial como quem estranha a comida, mas no final todos disseram que era bom. Deixei o resto do pacote de farinha com o representante da família e continuei a ingerir aquilo que seria a minha fonte de energia para a etapa do dia.
Tornei a certificar me sobre a questão “leões”, ao qual esclareceram-me “Tem leão, mas não faz mal… é só à noite… vai passar… Também tem elefante e tem búfalo…”
Abasteci-me de água (do poço) para a viagem, despedi-me da família que me acolheu e fiz-me à estrada.
Eram 8h00. Contava chegar a Marrupa à hora do almoço, afinal seriam apenas 90Kms até ao destino final. Em condições normais necessitaria cerca de 5 horas para cobrir a distância necessária.
Tal como no dia anterior a estrada continuava deserta, em parte devido ao fim-de-semana prolongado e às comemorações do Dia da Independência.
Passou mais de uma hora para que eu encontrasse a primeira pessoa desde que saíra de Pindura. Vinha também de bicicleta.
Antevira um resto de etapa bastante difícil para as minhas pernas. Ainda tinha poucos quilómetros percorridos e já mal conseguia manter a bicicleta a rolar com velocidade aceitável.
Sentia as pernas pesadas e presas. Parecia que tinham molas em todos os pontos de articulação, evitando que se movessem com a espontaneidade esperada.A minha velocidade média estava abaixo dos 15Km/h, levando-me a crer que não chegaria a Marrupa antes das 14h30.
Pedalava por entre montes e vales, que me obrigavam a esforçar demasiado umas pernas prematuramente cansadas. Encontrava-me rodeado por paisagens fabulosas onde os maciços cabeços graníticos davam lugar a cumes verdejantes.
Aqui e ali encontrava ao longo da estrada detritos de elefante, que faziam-me recordar que ainda circulava na área deles.
À medida que o Sol se elevava no céu, a temperatura ambiente também subia (mas ligeiramente). Consequentemente todo o tipo de moscardos e afins vinha para estrada à procura de alguma coisa para picar. Essa coisa era eu.
Voavam ao meu lado com tal facilidade que parecia que eu estava parado.
Por vezes ainda davam voltas à minha frente para de seguida voltarem para trás, como quem demonstra a sua superioridade na capacidade de deslocação.
Acabavam sempre poisadas nos meus calções ou nas minhas costas, para com os seus ferrões atravessarem todos os tecidos que eu trazia vestido, acabando sempre por me perfurar a pele.
Não tinha que esperar mais de 5 minutos para ficar com um carocito no sítio da mordidela, que no dia seguinte se transformaria num grande inchaço.
Alguns dos esvoaçantes mais radicais, decidiam fazer voos rasantes ao meu capacete. Na maior parte das vezes entravam pelas frinchas do capacete e acabavam entalados entre este e a minha cabeça. Numa tentativa de se libertarem zoavam as asas a alta frequência ao mesmo tempo que cravavam o ferrão no meu couro cabeludo.
Eu tentava aliviar o capacete para que o insecto conseguisse sair, mas por vezes era mais fácil fazer uma simples pressão no capacete para a esquerda e para a direita, acabando de vez com o sofrimento de nós os dois.
Estes moscardos, os quais esperava que não fossem moscas tsé-tsé, eram agora uma constante da viagem.
De nada adiantava sacudi-los ou tentar pedalar mais rápido pois acabavam sempre poisados no meu corpo ou nas malas da bicicleta.
Uma vez mais fui obrigado a despejar insecticida pelas minhas vestes, corpo, capacete e malas da bicicleta, numa tentativa desesperada de manter a bicharada afastada de mim.
A penúria das minhas pernas mantinha-se. Havia pedalado 1/3 da distância até Marrupa em pouco mais de 2 horas. Estaria condenado a passar mais 5 horas a pedalar até chegar ao destino e com as pernas neste estado.
As músicas do iPod já não tinham o efeito estimulador de outrora, a sua contribuição para um aumento de ritmo era praticamente nula.
Não entendia a razão de ter as pernas num estado de cansaço extremo. Considerava que em Cape Maclear e em Lichinga, havia descansado o suficiente, não havendo um motivo para o desgaste que as pernas apresentavam. Comecei a colocar em cima da mesa a hipótese de permanecer um dia em Marrupa e assim permitir que as pernas relaxassem e recuperassem a condição física.
Continuava sozinho sem me cruzar com outros veículos, ciclistas ou simplesmente peões.
Perguntava a mim mesmo se estaria a atravessar alguma zona de animais selvagens ou se seria assim mesmo.
Por vezes dava por mim a imaginar qual seria a táctica para subir a uma das árvores que se encontravam ao longo da estrada, caso me deparasse com algum felino. Mas creio que não teria muita sorte porque a única árvore que me pareceu ser acessível, era também do alcance de um leão apoiado apenas nas patas traseiras.
Continuava a lutar para vencer a tormenta existente nas minhas pernas. Já nem as bananas nem as bolachas de chocolate conseguiam fornecer energia para as minhas pernas pedalarem 20 ou 30 minutos sem se arrastarem.
Estava a pedalar há mais de 3 horas e tinha apenas metade da distância percorrida. Não havia qualquer lugar onde eu pudesse parar para descansar, para comer ou para beber alguma coisa. Tudo à minha volta era mato.
O vento que aos poucos e poucos começava a surgir, em quase nada influenciava o meu andamento, pois deslocava-me a velocidades muitos baixas (por vezes a 12Km/h), contudo contribuía para a descida de temperatura.
Pedalada atrás de pedalada tentava manter a bicicleta em linha recta e tentava não pensar nas horas que ainda teria pela frente até concluir a etapa.
Continuava sem ver vivalma nem vestígios de qualquer população. A única coisa que encontrava era excremento de elefante, o que queria dizer que eles andavam nas proximidades.
Faltavam agora 30Kms para Marrupa. Se fosse noutra ocasião qualquer eu diria “Faltavam apenas 30Kms” os quais seriam percorridos em 1h30m. Mas no caso do dia de hoje a noção de distância era completamente diferente. Poderia mesmo dizer que “Faltavam ainda 30Kms”, que segundo a minha velocidade média actual (10Km/h) resultaria em mais 3 horas a pedalar.
Pouco passava da hora do almoço quando avistei pela primeira vez, algumas habitações feitas de barro e palha. Era certo que aproximava-me de Marrupa.
A euforia que abundava na minha mente não era correspondida pelas minhas pernas. Tentava apressar o ritmo com o objectivo de percorrer os quilómetros remanescentes o mais rápido possível, no entanto nada brotava destas tentativas estéreis.
Tinhas as pernas maçudas e desgastadas. Não havia nada a fazer. Teria que aguentar a tormenta física e o selim cravado nas nádegas por mais uns longos quilómetros, até que as minhas pernas resolvessem chegar a Marrupa.
Quase uma hora depois, avisto o primeiro sinal da existência de uma povoação. Umas bombas de combustível.
Pedalei os últimos quilómetros de pé, pois já não aguentava o efeito nefasto do “Cabo das Tormentas” onde viajara durante as últimas horas.
Alguns minutos mais tarde apareceu a tão esperada placa com o nome da povoação… “Marrupa”…
Finalmente havia chegado a Marrupa.
Os 93Kms de Pindura até Marrupa haviam sido percorridos em 6h55m, dos quais dediquei ao descanso apenas 11 minutos. Durante a etapa contabilizei um total de 1.356m de ascensão acumulada.
Ao entrar em Marrupa deparo-me com uma pequena cidade (ou uma vila grande), bem ordenada, com as ruas limpas e com habitações recuperadas.
À minha esquerda estava um grande parque infantil, onde alguns rapazes jogavam à bola enquanto os mais novos entretinham-se com os baloiços.
Ao virar da esquina, entro numa avenida com separador central e candeeiros ao centro. Ao fundo do lado esquerdo estava o mercado. Do meu lado direito encontrava-se a igreja e a pensão “Safari”.
A pensão Safari seria o local escolhido para eu saciar a minha fome e também para pernoitar.
Faltavam 10 minutos para as 16h00, quando fui servido com um (abastado) prato de esparguete e galinha o qual ocuparia o lugar do meu almoço.
O meu apetite e a minha sede mantinham-se insaciáveis. Durante a refeição e enquanto conversava com os meus novos amigos (o Constantino e o Máquina) à cerca da viagem, bebi 4 latas de Fanta sem notar.
Aproveitei para tentar obter algumas informações relativamente à ligação Marrupa-Montepuez.
Já sabia que a estrada era em picada, mas pretendia confirmar se era ou não transitável (areia ou rios), quais as povoações existentes e como não podia deixar de ser, se existiam leões nas proximidades.
As respostas vieram por ordem inversa à das perguntas. Em primeiro lugar fui esclarecido que a zona dos leões era a que eu já tinha atravessado. Esclareceram-me também que se eu quisesse ver leões deveria pedalar somente 10Kms para Norte em direcção a Mecula, local onde seguramente encontraria os ditos felinos.
Como eu iria em direcção a Este, certamente não teria problemas nem com leões nem com leopardos, no entanto não era aconselhável pedalar durante a noite.
Quanto às povoações existentes nos 210Kms entre Marrupa e Montepuez, havia Nungo a 37Kms de Marrupa e havia Balama a 56Kms de Montepuez.
Aparentemente não havia nenhuma vila a meio do caminho de maneira que eu pudesse cobrir os 210Kms em dois dias.
Relativamente ao estado da estrada, informaram-me que até Nungo a estrada estava boa (picada). De Nungo até Balama eram aproximadamente 115Kms de estrada má.
Tanto o Constantino como o Máquina tinham sérias dúvidas sobre a condição da estrada, contudo sempre referiram com um certo optimismo, que daria para eu passar.
Eu estava consciente que quando um Africano diz para um Ocidental que “…a estrada é má…”, isso quereria dizer que a estrada era mesmo muito má. Contudo senti a adrenalina subir à cabeça e a ansiedade a circular nas minhas veias - “Iria voltar para o mato e para as estradas de terra”.
Eram as 16h40 e estava na hora de fazer um retiro até ao meu quarto que ainda não visitara.
Não sentia algumas partes do meu corpo. Desde que me sentara no restaurante da pensão que as pernas, as nádegas, os punhos e o pescoço pediam um bom duche quente para relaxarem.
Não foram necessários mais de 15 segundos dentro do novo quarto para eu me aperceber que o meu “duche” seria a balde e com água fria. A iluminação da casa-de-banho era feita através de uma vela posicionada estrategicamente em cima do autoclismo.
A iluminação do quarto devia-se à luz solar ainda existente no exterior, mas brevemente teria que acender 1 ou 2 velas para conseguir ver dentro do meu aposento.
O buraco no tecto do quarto e o contraplacado podre, faziam-me tomar providências extra para evitar ataques e me defender dos insectos nocturnos.
Depois da 20h00 voltei a reunir-me com os meus novos amigos no restaurante da pensão, desta vez para jantar.
Como já não havia galinha na cozinha para acompanhar com o esparguete, eu decidi fornecer as minhas latas de sardinhas à cozinheira. Assim seria possível preparar um bom jantar.
A explicação de não haver galinha na cozinha veio da parte do Constantino e era muito elementar.
A galinha do campo era chamada galinha Mutola em homenagem a Lurdes Mutola (a multi medalhada atleta Moçambicana e detentora de vários recordes nos 800m e 1000m).
“Galinha Mutola é a galinha que você sai de manhã cedo a correr atrás dela, para apanhá-la ao final da tarde e cozinhá-la ao jantar”.
Agora só amanhã de manhã é que alguém sairia a correr atrás de outra galinha.
O serão era feito no salão do lado também pertencente à pensão. O salão não passava de uma sala com várias cadeiras dispostas tipo “sala de cinema” e onde cobrava-se entrada a todos aqueles que quisessem assistir televisão.
Definitivamente iria ficar um dia em Marrupa para descansar as pernas que teimavam em permanecer pesadas.
Obrigado por este relato fantástico!
ResponderEliminarMas... e o resto? Sempre chegou a Maputo?
Sim, e o resto? Apenas um cheirinho de Moçambique até agora
ResponderEliminarOh amigo ciclista! Nunca mais chegas às Chocas? :) Beijinhos
ResponderEliminarEstou à espera de saber o resto da aventura! Força!...
ResponderEliminarEntão e o resto?
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