Festejava-se hoje o Dia da Independência de Moçambique.
Na modesta pensão onde estava alojado, havia pedido o pequeno-almoço para as 6h30 na expectativa de iniciar a etapa do dia o mais cedo possível. Era do meu conhecimento que para iniciar o processamento do esparguete, seria necessário preparar o carvão, lavar as panelas sujas do jantar da noite anterior e por fim ferver a água. Todo um processo que levaria o seu tempo e que me obrigava a manter uma certa pressão na área destinada à confecção do meu pequeno-almoço.
Durante as serenidades do sono, havia conseguido encaixar a distância de 180Kms (até Marrupa) nas minhas matemáticas celestiais. Seria uma tarefa bastante arriscada, mas era teoricamente possível chegar a Marrupa antes de o Sol se deitar.
Comi em poucos minutos a segunda metade do pacote de esparguete, desta vez sem sardinhas a acompanhar.
Com o estômago preenchido, desloquei-me ao mercado para me abastecer de bananas. Não queria passar fome durante a dura etapa que tinha pela frente.
Pouco passava das 7h30 quando iniciei a tirada para Marrupa. O dia estava fresco e com poucas nuvens, levando-me a crer que não havia razão para vestir o impermeável.
Continuava a percorrer quilómetros de estrada, por entre maciços de granito que se espalhavam até perder de vista.
Durante a primeira hora e meia de viagem, havia pedalado com uma boa velocidade média apesar das subidas e descidas que enfrentara.
A partir da segunda hora a imputar movimentos circulares aos pedais, as minhas pernas começaram a fraquejar. Era-me cada vez mais difícil manter a velocidade média pré-estabelecida.
Ia ingerindo bananas e algumas bolachas de chocolate na expectativa que o organismo reagisse à introdução de calorias, todavia a reacção não era a esperada. Não entendia o porquê da falta de desempenho, uma vez que descansara dias suficientes em Lichinga e que encontrava-me bem alimentado.
De Majune até Marrupa não tinha nenhuma vila assinalada no mapa, pelo qual não sabia o que poderia encontrar nem para descansar nem para comer.
A temperatura ia subindo ao longo do dia e com isso todo o tipo de moscas resolvia sair das suas casotas para me vir chatear.
Se eu quisesse parar para descansar ou para comer qualquer coisa, era automaticamente atacado pela bicharada voadora que com os seus ferrões atravessavam as minhas vestes e perfuravam o meu corpo.
Mesmo pedalando mais rápido, haviam um tipo de moscas (parecidas com a mosca Tsé-tsé… ou talvez não) que conseguiam acompanhar a velocidade da bicicleta. Quando se cansavam simplesmente pousavam nas minhas malas e iam à boleia até retomarem forças para voltarem a voar em torno dos meus ouvidos, dos meus olhos ou simplesmente ferrarem um pedaço de pele que estivesse desprotegido.
Fui obrigado a pulverizar insecticida (não foi repelente) nas malas, nas minhas costas, no capacete, nas pernas e afins como última tentativa de manter os perfurantes moscardos à distância.
Tal como no interior de Angola, era normal passar mais de uma hora sem ver vivalma. Nem autóctones ao longo da estrada, nem veículos a transitar entre Lichinga e Marrupa. Eram períodos de estranha solidão, que pareciam mais longos quando eu pensava em possíveis encontros com a fauna local.
Estava agora a pedalar perto da Reserva do Niassa e a probabilidade de me encontrar com algum exemplar de quatro patas era cada vez maior.
Por fim encontrei um rapaz que caminhava ao longo da estrada. De certa maneira tranquilizou-me a sua presença, pois significaria que algures nas redondezas havia uma aldeia.
Parei a bicicleta ao seu lado. Cumprimentei-o e de seguida perguntei-lhe se havia leões na área. A resposta não podia ser mais clara:
-Sim… aqui tem leões… mas só aparecem à noite.
Pela primeira vez alguém dizia “aqui tem leões”, em vez de dizer que os “leões… só lá mais à frente”.
Comecei imediatamente a colocar em cima da mesa a hipótese de pernoitar pelo caminho, não só porque chegaria a Marrupa depois das 17h00, como também porque as minhas pernas não estavam a manter o desempenho esperado.
A paisagem era cada vez mais densa e verdejante, sendo quase impenetrável ao olhar alheio.
Os Moçambicanos festejavam o Dia da Independência. Não havia nenhum veículo nem pessoa a circular na estrada. Estavam todos nos comícios, nas festividades, nos botecos ou simplesmente em casa. Apenas eu circulava naquela estrada, onde uma vez mais voltava a estar entregue aos ruídos do mato e à zoada da bicicleta.
Tinha o iPod desligado e todos os meus sentidos em alerta. Tentava ver para além do limite que a vegetação me permitia ver, numa tentativa de descortinar a forma de algum animal conhecido.
Levava a sensibilidade dos meus ouvidos no nível máximo, de modo que o simples bater das asas da descolagem de um passarinho fazia-me saltar do selim, elevando o número de batimentos cardíacos por minuto.
Voltava a pedalar sob a pressão psicológica de encontrar algum felino durante a etapa.
Tentava distrair a minha mente com outro tipo de assuntos, numa tentativa de aliviar a tensão. Mas mais cedo ou mais tarde a mente acabava por voltar a se concentrar na realidade que a rodeava.
Passavam 15 minutos das 12h00, quando ouço um barulho na minha retaguarda. Era um barulho que se aproximava de mim com um estilo bastante familiar.
Era um ciclista!
Após as primeiras notas introdutórias, perguntei-lhe qual era a próxima aldeia ou vila onde eu poderia comer ou pernoitar.
Este indicou-me Pindura a poucos quilómetros do local onde nos encontrávamos.
Pindura era um “Posto Administrativo” e como tal poderia me proporcionar melhores condições. Depois de Pindura voltava a não haver vilas até à chegada a Marrupa.
Alguns minutos depois, chegámos a Pindura.
Pindura era uma pequena vila com 2 ou 3 construções de cimento. As restantes habitações eram feitas com matéria-prima local.
Dirigi-me àquilo que considerei ser o centro da vila, um pequeno espaço aberto onde estavam algumas pessoas. Rapidamente fui acolhido pela população local com inúmeras perguntas acerca da minha viagem e com convites para ficar em Pindura.
Ainda não eram as 13h00. Pela frente tinha cerca de 4 horas de luz solar, o que me levava a realizar alguns cálculos sobre a possibilidade de continuar para Marrupa. Contudo as minhas pernas não estavam muito receptíveis à ideia de voltar ao activo e optei por passar a noite em Pindura.
À primeira vista, as únicas construções de cimento eram, o Posto Administrativo, o Posto Médico e a Escola. Uma vez que a escola ainda estava em construção, só me restava montar a tenda ao ar livre ou montar a tenda dentro do Posto Administrativo. Após uma troca de ideias com o chefe do posto, acabei por ser autorizado a montar a tenda dentro do edifício estatal.
O mesmo chefe colocou à minha disposição a área do banho (a balde) e mandou preparar almoço para mim.
Após tirar o pó do corpo e já vestido à civil, preparei-me para a primeira refeição da tarde.
Sentei-me em cima da esteira onde colocaram um prato com shima e outro prato com carne. De lado estava a malga onde eu iria lavar as mãos e à minha frente estava um jarro com água.
Perguntei se a água que estava no jarro era para lavar as mãos ou se era para beber. A resposta chegou sem o uso de qualquer palavra. Com uma curta demonstração, o filho do chefe de posto encheu o copo de água e em seguida bebeu-o. Estava assim esclarecido que a água do jarro era para eu beber e que esta não era água inquinada.
Dei início ao meu almoço, comendo a shima com as mãos e molhando-a no molho da carne.
Olhava para os pedaços de carne, um pouco apreensivo. Tentava adivinhar qual a origem da carne, há quanto tipo o animal havia sido abatido e há quanto tempo a carne havia sido cozinhada. Mesmo sem qualquer resposta às minhas dúvidas decidi avançar e provei um bocado de carne.
A carne tinha um sabor peculiar. Não parecia ser vaca nem cabrito e os ingredientes usados na confecção tornavam ainda mais difícil a sua identificação.
Perguntei aos meus novos amigos qual a proveniência da carne. Estes responderam-me sem qualquer hesitação “É búfalo…”.
“Búfalo!”, pensei um pouco intrigado. Isso significaria que havia búfalos nas imediações do meu percurso de bicicleta. Já não bastavam os leões, os leopardos e os elefantes, agora teria que me preocupar também com os búfalos.
Outra questão que se levantava era se eu estava a comer um produto de caça furtiva ou não. Mas rapidamente as dúvidas esmoreceram-se quando ouvi a explicação dos anfitriões “É ilegal caçar búfalo dentro da Reserva… e a Reserva é para lá da estrada. Para o lado de cá já não é Reserva…”.
Comemorava-se o 35º aniversário da Independência de Moçambique e isso era motivo para uma visita à discoteca da zona.
Tal como qualquer outra habitação local, a discoteca era feita de tijolos de barro e telhado de capim. A alguns metros dali, um pequeno gerador tentava fornecer energia para a aparelhagem de som.
Entrei pela pequena porta, baixando um pouco a cabeça a fim de evitar ficar com o capim do telhado espetado nas vistas. Uma vez lá dentro fui conduzido ao local onde iria me sentar.
Fiquei instalado num dos extremos da pequena discoteca. Do meu lado esquerdo estavam dispostas 3 cadeiras e do meu lado direito outras tantas. Nelas estavam sentados os homens adultos que dançavam à vez no centro da pista. Lá fora encontravam-se os mais novos que também saltavam e dançavam ao som da música. As mulheres sentadas todas juntas debaixo de um alpendre, vigiavam a pequenada que em correrias de vaivém provavam a si mesmas não terem medo do branco que se encontrava no meio delas.
A discoteca não tinha serviço de bar. Quem quisesse refrescar a garganta teria que se deslocar ao tasco vizinho a 3 centenas de metros e comprar a bebida desejada.
Eram as 18h30, estava na hora do jantar. Pindura não estava provida de energia eléctrica pelo qual a iluminação da aldeia era feita pela lua e pela minha pequena lanterna.
Voltei a juntar me ao chefe de posto e aos homens da sua família. Sentámo-nos à volta da esteira onde estavam dispostos os pratos com shima e com a carne de búfalo. Sem o uso de talheres, o patriarca esquartejou alguns bocados de carne e dividiu pelos presentes.
As mulheres da família estavam ali muito perto mas sem se juntarem ao grupo dos homens.
No meio da escuridão conseguia aperceber me que preparavam o seu jantar e tentavam manter as crianças entretidas para não perturbarem os outros adultos.
Voltei a colocar em cima da mesa (leia-se esteira) as minhas dúvidas relativamente à existência de leões na zona. Como resposta obtive a confirmação daquilo que já ouvira antes, “Existem leões… mas vai passar”.
Ao qual foi acrescentado um comentário inédito “ a zona mais arriscada já passaste…”.
A tranquilidade transmitida pela sapiência local apenas impunha uma condição. Eu não deveria pedalar de noite.
Após o jantar e já de barriga cheia recolhi-me na minha tenda cheio de vontade em iniciar a próxima etapa até Marrupa.
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