O dia da minha partida de Cape Maclear em nada combinava com as condições climatéricas dos últimos dias. Estava encoberto e um pouco ventoso.
Apesar de ter grande parte da minha tralha espalhada pelo quarto, em poucos minutos tinha tudo arrumado dentro das malas.
Já tinha o processo de “compactação” memorizado, de tantas vezes abrir e fechar as malas. As calças iam no fundo, seguidamente ia uma t-shirt, depois os calções e no topo outra t-shirt.
Os chinelos, os artigos de higiene básica e a muda de roupa para esse dia, seguiam em rolos comprimidos do lado de fora dos alforges e com fácil acesso.
A partida do Ilala estava prevista para as 10h00, pelo que às 8h00 iniciei a curta etapa de 24Kms até Monkey Bay.
Percorria agora de dia, a estrada que dias antes percorrera no meio da escuridão.
Voltei a subir e a descer colinas, a sofrer nos braços a trepidação originada pelas irregularidades da estrada e a engolir pó cada vez que me cruzava com outro veículo.
Nada que não estivesse habituado.
Quase uma hora depois chego à estrada de alcatrão que me levaria directamente ao porto de embarque.
Cheguei a Monkey Bay às 9h30, ou seja 30 minutos antes da hora prevista para a partida.
Apresentei-me ao responsável pela marcação de lugares, que já tinha o meu bilhete reservado.
Vesti-me à “civil” dentro de um dos gabinetes do porto e desloquei-me à imigração a fim de carimbar a minha saída do Malawi.
Estava pronto para embarcar.
Antes de subir a bordo, tive que desarmar toda a bagagem da bicicleta. Só assim seria possível transporta-la através das escadas estreitas e íngremes até à cabine reservada para mim.
A cabine onde eu iria passar as próximas horas era pequena, mas confortável. Ao fundo e longitudinal com a embarcação, estava a cama. Do meu lado direito havia uma pequena secretária e do meu lado esquerdo um lavatório. A um canto encontrava-se um cadeirão estilo anos 50, onde coloquei alguma da minha bagagem.
Dada a limitação de espaço dentro da cabine, a bicicleta teria que seguir do lado de fora, amarrada ao corrimão.
O Ilala demorou 2 horas até deixar o porto de Monkey Bay, devido a uns trabalhos de soldadura de última hora.
Durante a espera, tive a oportunidade que bisbilhotar todos os cantos da embarcação.
No andar de cima (ao ar livre) estava o bar. Tinha alguns bancos corridos para os passageiros repousarem e uma ampla área desocupada para quem quisesse esticar as pernas.
No andar do meio eram as cabines para a tripulação sénior e para alguns passageiros. Na parte traseira do mesmo piso estava localizado o restaurante e a cozinha.
O piso inferior era provido de bancos corridos e onde seguiam a maior parte dos backpackers e da população local com os seus volumosos sacos de cereais para comercializarem no país vizinho.
Era meio-dia quando o Ilala iniciou a sua viagem. O céu continuava encoberto e o forte vento existente, fazia gelar quem se aventurasse a viajar no último andar.
Assim que saímos da baia, o Ilala passou a ser afectado pela ondulação do lago causando um certo mau estar a quem queria passear.
Ainda permaneci por mais de uma hora ao ar livre, mas quando a fome apertou dei-me por vencido e acabei por me refugiar no restaurante do barco.
Almocei um saboroso bife, que no entanto teimava em não querer chegar ao estômago devido aos “sobes” e “desces” a que eu estava sujeito.
A digestão foi feita num misto entre a posição horizontal e umas caminhadas pela embarcação, mas sempre agarrado aos corrimões.
Tive a oportunidade de espreitar a cozinha e ver o cozinheiro a fritar um bife em cima de um bocado de carvão.
Ainda esperei por alguns segundos para ver qual seria o resultado da proeza. Ou um pedaço de carvão ou o óleo a ferver iria cair aos pés do cozinheiro. Na melhor das hipóteses seria apenas o bife. Mas por incrível que pareça nada acontecia. O mestre continuava a virar o bife e a controlar as batatas como se estivesse na mais estável das cozinhas.
Perto das 17h00 chegámos a Chipoka, um porto ainda no Malawi. Entraram novos passageiros, saíram outros e fez-se alguma permuta de mercadorias.
Quase uma hora mais tarde, estávamos prontos para partir e enfrentar uma vez mais a ondulação do lago.
Aos poucos a luz do dia sumia-se e a temperatura descia, obrigando-me a permanecer na minha cabine embrulhado nos lençóis da cama.
Pouco depois e quando me preparava para tirar uma soneca, vieram bater à minha porta. Era o empregado do restaurante que queria saber qual a minha escolha para o jantar. Voltei a escolher bife apesar de os movimentos do barco terem cortado um pouco o meu apetite.
Já no restaurante do Ilala fui obrigado a mastigar a comida mil vezes antes de engolir, ao mesmo tempo que realizava umas estranhas respirações. Teria que segurar o bife no estômago a todo o custo. Não era minha intenção voltar a ver o que eu havia jantado.
Logo após o jantar, procurei a minha cama. Era o único local onde me sentia confortável e onde o bife mantinha-se tranquilo.
O barco balançava lateralmente e o facto de a minha cama estar posicionada longitudinalmente com a embarcação, minimizava o efeito oscilatório.
Com o avançar da noite, o “estado” do lago piorou. Conseguia ouvir coisas a deslizarem de um lado para o outro de acordo com a oscilação do Ilala. Um pouco mais tarde começaram a cair bancos e armários que estavam no andar de cima.
Aos poucos fui ganhando sono e acabaria por adormecer, no entanto nunca permaneceria no mundo dos sonhos por muito tempo. Havia sempre uma onda que tirava o meu corpo da cama deixando-me o coração (e o bife) na boca. Para não falar das vezes em que acordava com o estardalhaço de caixas, garrafas e afins a rolar de um lado para o outro ao sabor do balancear da embarcação.
A dada altura fui obrigado a me levantar e colocar todas as minhas malas no chão, pois já nada permanecia quieto no seu lugar de origem.
Acordei com uma algazarra de vozes misturada com o trabalhar de pequenos motores.
O motor do Ilala não se ouvia e o barco estava parado.
Olhei para as frinchas da porta e vi que ainda era de noite. Olhei para o relógio, pouco passava das 5h00. No entanto já havia uma forte barulheira a bordo, parecia que toda a gente berrava com toda a gente.
Deixei-me estar confortavelmente na cama numa tentativa de descortinar a causa do “motim”, apenas pelo ouvido.
O barulho dos motores que ouvia tão perto da minha cabine, eram os mono cilíndricos dos botes salva-vidas.
A vozearia provinha dos funcionários do Ilala que juntamente com alguns passageiros, colocavam as barcaças na água.
Na esperança que a barulheira acabasse depressa, voltei a me enrolar nos lençóis e tentei adormecer novamente. Apesar de nunca ter saído da cabine para verificar as operações, cedo afastei a hipótese de naufrágio.
A cama estava boa e eu tinha demasiado sono para pensar em desastres. Se o Ilala estive a ir ao fundo, alguém apareceria à minha porta para me chamar tal como acontecera com a reserva do jantar.
Entre o barulho dos motores e os berros do pessoal, ainda consegui dormir mais 3 horas, até que resolvi saltar da cama e vir espreitar qual o motivo de tanto alarido.
Estava ao largo de Nkhotakota, outrora um importante ponto no comércio de escravos.
Uma vez que Nkhotakota não tinha cais para o Ilala, o barco permanecia afastado da costa.
A troca de passageiros e de mercadorias era feita através dos botes salva-vidas, que durante as últimas 4 horas não pararam de efectuar viagens entre a costa e o Ilala.
A gritaria que não me deixara dormir, eram os carregadores a levantarem os sacos de cereais e a coloca-los a bordo do Ilala.
Reiniciámos a viagem a meio da manhã. O vento continuava forte e a ondulação existente obrigava-me a permanecer no quarto, deitado com a cabeça e o estômago alinhados sobre o mesmo eixo.
Perto das 11h45, entrámos nas águas territoriais Moçambicanas.
Para trás ficava o Malawi, um país onde permanecera por pouco tempo e no qual pedalara apenas 363Kms.
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