Moçambique (Metangula – Lichinga)

 

Eram as 6h22 quando olhei pela primeira vez para o relógio. Ainda era cedo e podia continuar no leito por mais tempo, mas os bichos-carpinteiros que tinha no corpo não me permitiam continuar na horizontal.

Prontamente saltei da cama e abri a cortina para receber o que o dia havia reservado para mim. Observava com bom agrado que o vento dos últimos dias tinha-se esgotado e que o céu mostrava-se azul com umas nuvens aqui e ali. Nada que me fizesse incomodar.

Não perdi tempo. Pedi para preparar o meu “mata-bicho” enquanto eu apetrechava a bicicleta com as respectivas equipagens.

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Despedi-me do Sr. Teófilo e de mais dois companheiros do serão anterior. Voltei a ouvir “Cuidado com os leões”. Era certo que voltaria a atravessar uma zona onde haveria a probabilidade de me encontrar com algum felino. Aconselharam-me a atravessar a área em cima de um carro pois ainda no mês anterior, um dos oradores havia-se cruzado com leões por 3 vezes no mesmo dia.

Registei a sugestão. Dedicaria algum tempo ao estudo e planeamento do novo itinerário aquando da minha chegada a Lichinga.

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Iniciei a etapa até Metangula às 8h30. Esperava fazer os 111Kms que me separavam da meta em 7 a 8 horas. Iria subir e atravessar uma cordilheira montanhosa, que se estendia ao longo do lago e que muito seguramente me causaria alguns entraves.

Ainda não tinha deixado o perímetro da pequena vila de Metangula, quando reparei que tinha o pneu traseiro furado. Parei nas bombas de combustível que estavam 50 metros à minha frente e dediquei algum tempo à reparação da câmara-de-ar.

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Pneu montado na bicicleta, iniciei a longa e íngreme subida que me levaria ao planalto situado no outro lado da cordilheira.

Pedalava com satisfação. Era um misto de alegria com origens climatéricas como também com origens geográficas. As duas conjugadas geravam uma motivação interior para enfrentar a mais dura das subidas.

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O vento estava fraco e o dia começava a aquecer. Era a 1ª vez, em mais de 3 semanas, que apanhava um dia quente onde as temperaturas passavam a barreira dos 30oC, fazendo-me suar em bica.

O conjunto de curtas mas acentuadas subidas exigiam dos meus joelhos um esforço adicional no entanto encarado com ânimo e serenidade. Para ultrapassar as zonas mais íngremes, pedalava em “zig-zag” com o objectivo de reduzir o gradiente da subida e consequentemente o esforço aplicado aos joelhos.

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À medida que ia progredindo na escalada, podia contemplar magníficos cenários sobre o lago e sobre Metengula.

Metengula era de facto um bocado de terra em formato de cogumelo que entrava nas águas do lago, criando 1 baía que outrora fora usada como base naval.

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Continuava a subir a ritmo lento. Estava neste esforço cadenciado há quase 2 horas quando ouço um barulho estranho atrás de mim. Um barulho semelhante ao arrastar de uma mangueira pelo cimento. Pensei que fosse um veículo na minha retaguarda e encostei-me à berma. No entanto não passava nenhum veículo. Olhei então para trás a fim de saber qual a razão porque o veículo não me ultrapassava.

Constatei que não havia veículo nenhum apesar de o barulho continuar. Simultaneamente comecei a sentir a bicicleta demasiado confortável. Era tal como se eu tivesse um amortecedor na traseira da bicicleta.

Somando os dois fenómenos, facilmente concluí que a causa do barulho e o conforto da bicicleta eram as consequências de um pneu a perder ar. Dois furos no mesmo dia, era o recorde de furos/dia.

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Perdi quase meia hora para colocar a bicicleta novamente operacional, onde a dificuldade não estava na reparação do pneu, mas sim em retirar e montar a roda ao mesmo tempo que segurava a bicicleta e os seus 30Kgs de carga.

Continuei até Maniamba, aquele que seria o último ponto onde poderia comprar alguma coisa para almoçar.

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Parei para comprar as habituais bananas (desta vez bananas moçambicanas) e acabei por encontrar goiabas à venda no mesmo local. Decidi então variar a minha dieta alimentar e encher os bolsos com este fruto.

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Em seguida desloquei-me à cantina em frente ao mercado para comer as minhas bananas ao sabor de uma Coca-Cola.

Almoço tomado, preparava-me para retomar a jornada quando o empregado da cantina alertou-me que a bicicleta tinha um pneu furado.

Terceiro furo do dia.

 

Desmontei o pneu na entrada da cantina sob o olhar de uma pequena multidão de curiosos. Uma vez mais, o furo era do lado de dentro do aro… e não era um furo, mas sim um pequeno corte. Começava a achar que a minha câmara-de-ar estava de alguma maneira danificada ou apodrecida, por estar a rebentar tantas vezes.

DSCF5654Problema resolvido e pneu montado na bicicleta, preparei-me para enfrentar o restante da etapa.

Ainda não havia alçado a perna por cima do selim para me colocar em na bicicleta, quando ouço um pequeno estrondo e logo de seguida o enervante “pssssssss”.

O pneu estava a vazar novamente.

Enchi-me de paciência. Pousei a bicicleta, voltei a retirar o estojo dos remendos da malinha e tornei a desmontar o pneu.

A multidão ia aumentando aos poucos. Desde miúdos a graúdos todos comentavam algo sobre a minha situação ou viagem, mesmo quando não sabiam o que diziam.

Analisei a causa do rebentamento da câmara-de-ar. Verifiquei que o remendo anteriormente usado havia cedido e o corte na câmara-de-ar havia aumentado.

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Uma vez mais voltei a colar um remendo, desta vez de maiores dimensões, onde contei com a ajuda de alguns populares.

Voltava a montar o pneu na bicicleta e preparava-me para arrancar. Antes, faltava a despedida àqueles que me ajudaram sem nunca pedirem nada em troca, desejando-me apenas boa viagem.

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Havia perdido mais de duas horas com todos os furos do dia. O facto de já serem as 14h00 onde ainda faltavam 80Kms para o final da etapa, faziam-me prever uma chegada a Lichinga durante a noite.

Continuei a subir por mais alguns quilómetros, para depois atingir um planalto com longos altos e baixos (desta vez menos acentuados).

Por onde passava era saudado pela população com um “Bom dia” (apesar de ser de tarde) ou com um simples “Boa Viagem”.

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Deixara de ouvir os imperativos “give me money” que tanto me coziam o cérebro aquando da travessia dos dois anteriores países.

Uma vez no planalto, a temperatura baixou bastante e o vento passou a se sentir com moderação.

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Não conseguia progredir à velocidade desejada, pois além do vento e das ligeiras subidas, tinha agora o joelho direito a dar problemas.

DSCF5672Sentia um choque gelado no interior do joelho que me impedia de aplicar a devida potência nos pedais.

Esta dolorosa impressão no joelho acompanhava-me desde a Zâmbia, todavia  aparentava que os dias de descanso no Malawi não haviam sido suficientes para a recuperação de “fosse lá o que fosse” que estivesse a doer.

 

O Sol desaparecia atrás de mim, deixando de aquecer o dia.

Apesar das tonalidades e dos contrastes coloridos fazerem crer que o dia se mantivesse ameno, a temperatura baixava progressivamente atingindo quase os 10oC.

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Queria parar a bicicleta e tirar algumas fotografias ao maravilhoso cenário que tinha diante de mim. Mas o facto de ter que parar a minha actividade física, de arrefecer o corpo e de atrasar ainda mais a etapa, fazia-me desistir da ideia. Limitava-me a tirar as fotografias em andamento, tal como havia acontecido até aqui.

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Neste momento só queria chegar a Lichinga e ainda me faltavam 2 horas em cima dos pedais.

O joelho continuava a marcar a sua existência. As picadas geladas que sentia no seu interior faziam-me suspeitar que alguma coisa não estava bem. Considerava cada vez mais a hipótese de uma visita ao Hospital Distrital, durante o dia seguinte. Dia esse, reservado para o estudo e preparação das próximas etapas da viagem.

Para suavizar a incómoda situação, aplicava menor esforço na perna direita compensando a perda de potência com uma pedalada redonda na perna esquerda.

DSCF5683 Em poucos minutos ficou de noite.

A quase meia-lua não era suficiente para iluminar a estrada. Apliquei os sinalizadores luminosos na retaguarda e na dianteira da bicicleta pela 3ª vez desde a minha saída de Luanda e segui viagem com pupilas dilatadas ao máximo.

DSCF5686Por diversas vezes encontrava-me com outros ciclistas que partilhavam a estrada comigo.

Considerava incrível como todos eles pedalavam no escuro sem qualquer tipo de iluminação ou reflector, enquanto eu esforçava-me para conseguir ver 2 metros para lá da minha roda dianteira.

 

No entanto e apesar do breu, ainda tive alguns despiques com ciclistas locais.

Cheguei Lichinga perto das 19h00, naquela que foi a etapa mais morosa desde o início da viagem. Haviam sido 10h25m para percorrer apenas 113Kms. Comparável com esta longa etapa apenas tinha o percurso de Xá-Muteba a Xamiquelingue (Angola) onde percorrera 132Kms em 10h18m.

Perfil

Não me encontrava muito cansado a nível de pernas, no entanto o joelho continuava a enviar impulsos ao meu cérebro informando que algo não estava bem.

O meu estômago era outro que não parava de marcar a sua presença. Este ficara mal habituado com os dias passados no Malawi, onde recebia uma refeição completa no intervalo de cada duas refeições.

Já era um pouco tarde e estava um frio de rachar. Decidi por procurar uma pensão para passar a primeira noite. Acabei na Pensão 2+1 no centro de Lichinga, a um preço relativamente modesto com direito banho quente e pequeno-almoço.

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Jantei na confeitaria do outro lado da rua, que era também restaurante e Internet Café.

Estranhamente, já no final do jantar, houve dois pormenores que me surpreenderam. Duas pequenas coisas, que por serem tão simples e habituais, só lhes damos valor quando nos encontramos desprovidos delas. E eu estava desprovido há meses…

A primeira era o facto de existir a secção de sobremesas no menu do restaurante (neste caso pudim e mousse de chocolate), a segunda era o facto de poder tomar um café (expresso) ao contrário de um café solúvel servido em uma caneca de meio litro.

Pequenas coisas que faziam a diferença.

Agora havia “o café” servido nas pequenas e típicas chávenas marcadas com o triângulo vermelho da Delta-Cafés.

Quando me desloquei ao balcão para efectuar o pagamento do meu jantar, um terceiro aspecto atraiu a minha atenção. Dentro de uma pequena vitrina jazia um par de pastéis de nata e um trio de bolos de arroz. Estava em Moçambique.

Uma curta caminhada nocturna pela cidade, foi suficiente para me aperceber o quão diferente era Lichinga, das cidades Zambianas e Malawianas, no entanto havia uma notável analogia com as cidades do interior de Angola.

Estava realmente num outro país, com outros hábitos, com outra cultura e com outras influências.

Estava em Moçambique.

Iria passar um dia ou dois em Lichinga para levar o meu joelho ao médico e para planear as etapas até Pemba, incluindo a travessia da zona de leões.

1 comentário:

  1. Parabéns!
    Conseguiste chegar ao destino,se bem que sempre com muita fome:) mas ao - com boa forma fisica!
    Quando voltares para o velho continente, vais esgotar algumas prateleiras dos supermecados:))
    Força aí branco maluco...pffffffffffff
    Abraço do teu priminho Nuno

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