Moçambique Fase III (Manhiça – Maputo)

Acordei cedo, ainda antes de o Sol soltar o seu primeiro raio de luz solar.

Encontrava-me coberto de bichos-carpinteiros pelo corpo todo, não pela ansiedade de percorrer a última etapa da minha viagem, mas sim pelo motivo completamente oposto.

Por minha vontade própria, queria dormir mais algum tempo. Mas nem o corpo nem a mente conseguiam voltar a acomodar-se à cama onde eu repousava.

Talvez pelo nervosismo da situação em que me encontrava, ou simplesmente por causa do ruído da electro-bomba que se ouvia constantemente da parte de trás do meu quarto, nunca mais fui capaz de fechar os olhos.

Fosse como fosse eu tinha que me levantar, pois havia alguém que teria de pedalar os últimos 80Kms que faltavam até Maputo… e esse “alguém” era eu.

Iniciei o ritual pela n-ésima e última vez, de arrumar tudo nos alforges da bicicleta. Sabia de cor e salteado a posição de cada coisa, podendo mesmo preparar as malas de olhos fechados.

Sabia que a caixinha dos recarregadores e cabos eléctricos cabia na vertical, junto à máquina fotográfica, que por sua vez seguia protegida pelo saquinho com a roupa interior.

Os mapas e os cadernos, seguiam na bolsa da frente debaixo do pacote das bolachas de chocolate. O material de uso rápido (ou de uso corrente) seguia instalado dentro de um saco cor-de-laranja amarrado atrás, juntamente com a tenda e o colchão.

Após a bagagem acondicionada na bicicleta, estava na hora de tratar de mim mesmo.

Iniciei pela última vez o ritual de me preparar para uma etapa.

Coloquei o creme em redor das virilhas e também nos mamilos, lugares onde existia maior fricção com as vestimentas.

Pela última vez, coloquei a banda do cardio-frequêncimetro à volta do meu tronco, para de seguida, com toda a calma do mundo, puxar as alças dos calções para cima. Vesti a camisola por cima das alças e apetrechei os seus bolsos com aquilo que sempre coloquei neles.

No bolso direito seguia o telemóvel, no bolso do meio seguiam alguns trocos entre notas e moedas e no bolso esquerdo não seguia nada.

Fora assim que saíra de Luanda e era assim que chegaria a Maputo.

Apertava o fecho da camisola lentamente e com cuidado tal, como alguém que arranjava o seu facto antes de sair de casa para ir a um casamento.

Lentamente, coloquei o iPod no meu braço esquerdo e os auscultadores nos ouvidos. Depois seguiam-se os óculos e por último o capacete.

Depois de um longo inspirar juntei a fivela esquerda do capacete com a fivela direita, de modo a que estas prendessem as hastes dos óculos e simultaneamente os cabos dos auscultadores.

Enfiei paulatinamente as luvas já gastas, nos meus dedos e… pouco depois estava pronto para partir.

Duas golfadas de ar antes de abrir a porta do quarto e… aí vai ele…

Estava fresco e o vento soprava forte. Não me importei com isso. Aliás, por mim até podia estar a chover, pois assim tinha pretexto para ficar mais um dia.

DSCF8939Dirigi-me à recepção. Paguei o quarto e despedi-me…

O meu pequeno-almoço seria tomado no restaurante Laurentino, onde eu tinha um encontro marcado com uma equipa da RTP África.

À chegada ao restaurante, encontrei a equipa da RTP África à minha espera. Estivemos uns minutos à conversa enquanto eu ia comendo de forma civilizada, o meu prego no pão com salada de fruta, galão e torradas.

Pouco depois estava pronto para a entrevista, que não durou mais de alguns minutos, pois o restante da “reportagem” estava planeado para acontecer em plena “acção”, ou seja a pedalar.

Iniciei a última etapa às 8h30.

Até ao destino tinha pouco mais de 80Kms pela frente, excluindo as voltas que daria pela cidade antes de dar por concluída a minha “odisseia ciclística”.

Logo à saída de Manhiça, deparo-me com o irritante “placard” que recordava-me perpetuamente a distância exacta até ao final de “tudo”. Contudo, ultimamente havia aprendido a ignora-lo e a seguir viagem sem matar células cerebrais a pensar no assunto.

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A temperatura ambiente ia subindo de forma notória. O vento, apesar de forte não estava a afectar em nada a minha progressão.

Era notório que o Inverno encontrava-se no final da sua permanência nestas paragens e que o Verão estava para chegar. Eu começava a sentir novamente o Sol a queimar a minha pele, algo que não sentia desde os primeiros dias na Zâmbia, há mais de 3 meses atrás.

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Seguia por uma estrada em bom estado e com bermas largas. No entanto ainda havia alguns motoristas que achavam que deviam passar tangentes aos alforges da minha bicicleta, numa atitude de mostrar a sua audácia ao volante, julgando-se os senhores da estrada apenas por seguirem sentados num veículo maior que o meu.

À medida que me aproximava de Maputo, aumentava o número de estabelecimentos comerciais, cafés, restaurantes, veículos, pessoas etc, etc, etc …

Em sintonia com a maior proximidade a Maputo, os carretos da bicicleta aumentavam os seus sinais de (acelerado) desgaste. Era rara a pedalada em que a corrente não saltasse das rodas dentadas, fazendo com que o meu esforço fosse totalmente em vão.

Em tripla era praticamente impossível de manter um ritmo constante. Apenas conseguia fazer alguma coisa com a mudança tripla, quando a estrada descia ligeiramente. De resto era para esquecer.

Voltei a recorrer ao 2º prato (mudança do meio) por algumas ocasiões, pois parecia-me que conseguia permanecer por mais tempo engrenado com a corrente, quando comparado com o 3º prato. Contudo era uma tentativa sem grande sucesso.

A única roda dentada que conseguia aguentar o esforço, era a 1ª roda. Esta, ainda tinha dentes e conseguia usar todos os carretos da roda de trás. Todavia, para que conseguisse progredir na etapa a velocidades decentes, eu era obrigado a engatar a 9º velocidade nos carretos traseiros.

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Esta solução fazia com que a corrente saísse do seu intervalo permissível de trabalho, para passar a desempenhar a sua função completamente na diagonal.

O elevado desgaste que a corrente apresentava (e todas as suas folgas mecânicas) permitiam que esta seguisse integralmente obliqua às superfícies dos carretos.

Cada vez mais me convencia que se a viagem tivesse mais uma só etapa, a bicicleta certamente não chegaria ao final sem levar um conjunto completo de “transmissão”.

Mas neste momento, a bicicleta teria forçosamente que aguentar mais umas vintenas de quilómetros, até que eu chegasse a Maputo.

Era enervante pedalar com relações tão curtas, pois a pedalada ficava demasiado solta, fazendo com que o meu corpo seguisse aos saltinhos em cima do selim da bicicleta.

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Para conseguir manter-me mais tempo sentado no selim, deixava abrandar a bicicleta até velocidades mais baixas. Depois voltava a pedalar lentamente até que os pedais ficassem soltos outra vez… para de seguida deixar de pedalar, de modo que a bicicleta perdesse velocidade mais uma vez… e assim sucessivamente.

Estaria condenado a seguir assim aos soluços por mais 3 horas até chegar a Maputo.

Já passavam das 10h00, quando algo inédito aconteceu.

De repente a bicicleta começou a ganhar velocidade sozinha.

A princípio pensei que estaria a descer ligeiramente e por algum tipo de ilusão óptica eu não era capaz de detectar o declive. Consultei o GPS… este dizia-me que, contrariamente ao que eu pensava… eu estava a subir ligeiramente.

Olhei para trás, por cima do meu ombro, com o objectivo de verificar se alguma coisa estaria a empurrar me, sem que eu desse conta disso.

DSCF8954 Mantinha-me acima dos 20Kms/h sem que no entanto tivesse que dar aos pedais.

Até que por fim percebo que estava a ser empurrado pelo vento.

Fiquei estupefacto!

Eu pedalara mais de 8.100Kms em 167 dias. Todos eles a levar com vento bem de frente nas bentas. E logo agora que eu não tinha pressa nenhuma de chegar é que o Sr. Vento, resolvia dar um “empurrãozinho”.

Continuei a minha pedalada rumo a Maputo.

O iPod debitava música gasta que em nada alterava o meu estado de espírito nem o meu andamento. Por vezes dava por mim a tentar lembrar-me qual a última música que este resolvera partilhar com os meus ouvidos, mas sem grande sucesso.

Era como se o iPod fosse desligado, pois eu não ouvia nem distingui os sons por ele emanados, tal era o meu estado de hipnopatia.

Dava por mim a ordenar ideias dentro da minha cabeça.

Sem entender muito bem porquê, estas começavam de trás para a frente.

Em primeiro lugar tinha a batalha ganha contra os pensamentos nostálgicos. Conseguia aceitar que a Viagem de Bicicleta entre Luanda e Maputo haveria de acabar um dia… e esse dia chegara (hoje) ao meu calendário… e com o objectivo (bem) alcançado.

Em segundo lugar, deixava de me martirizar por aquilo que gostaria de ter “vivido” e que não “vivi”… para passar a dar graças pelo que não havia previsto e acabara por viver.

Afinal de contas, era uma simples questão de inverter as polaridades aos meus pontos de vista, para que o meu cérebro assimilasse a realidade de um modo mais positivista.

Depois de arrumadas as ideias sobre a realidade actual, a minha mente evadia-se rapidamente por todas as etapas percorridas, mas na direcção oposta à da viagem… até que por último chegou a Luanda e aos dias que antecederam a partida.

Por fim, vinham os preparativos precedentes à chegada a Angola.

Recordava os momentos antes de “Tudo”.

Os meses passados a magicar uma viagem, fosse ela qual fosse…

As dúvidas, os receios, as incógnitas e os medos, que a minha completa falta de experiência originavam perante o desafio que estada disposto a viver, faziam-me vacilar (ligeiramente) quanto ao embarque neste tipo de aventura.

Nunca havia feito qualquer tipo de viagem tipo “itinerante”. Nem de bicicleta, nem de comboio, nem a pé.

Não fazia a mínima ideia do que iria fazer, quando o primeiro dia de viagem chegasse ao fim, e eu tivesse que cozinhar e acampar no mato… sozinho.

Comida, água, banhos, dormida, fronteiras, percursos, onde passar, vida selvagem, conflitos armados, isolamento, doenças etc… tudo fazia parte do meu saco de dúvidas iniciais.

Depois veio um sábio conselho da Joana Oliveira “… começar, é metade do caminho percorrido…”. A partir daí foi um agarrar firme do valioso dito e lançar-me á primeira metade do caminho… O Começo…

Recordava as 8 semanas de preparação física em Portugal, ao mesmo tempo que tentava decidir o trajecto a efectuar.

A um mês de dar inicio à Viagem, ainda não fazia a mínima ideia de “Onde para Onde” seria o percurso geral. Foi com um murro na mesa que decidi, com toda a convicção do mundo, que iria pedalar de Maputo até Luanda…

Uma semana depois alterava tudo de pernas para o ar e optava por pedalar de Luanda para Maputo.

A uma semana de viajar para Luanda, ainda não sabia quando iria viajar… e num acordar repentino, marquei numa terça-feira a viagem para a sexta-feira seguinte.

A 4 horas do check-in, almoçava tranquilamente num tasco da cidade… enquanto as minhas tralhas (e a bicicleta) aguardavam espalhadas pelo chão da casa, que eu me dedicasse a arruma-las e a prepara-las para o embarque.

A 2 horas do check-in, tocava o Alarme dentro mim e consequentemente eu entrava em “panic mode”… pois estava atrasado e ainda não sabia se as minhas “bicolatas” cabiam nas malas que havia preparado para a viagem.

No final, tudo correra bem… e no meio de muita trapalhada, correrias no aeroporto e excesso de bagagem, havia conseguido embarcar a tempo e horas no voo que me levaria ao “Começo”.

Quase 6 meses depois, encontrava-me no “Final”, capaz de me rir e gozar com a minha inexperiência inicial e preparado para novos (e mais audazes) desafios.

E com estes momentos na memória, seguia pedalando estrada fora, os últimos quilómetros de uma viagem de mais de 8.000Kms.

Às 11h00 cheguei a Marracuene, onde resolvi parar para comprar a minha habitual merenda de viajante.

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Estava com a fome a cintilar dentro do estômago, e das 4 bananas que acabara de adquirir, 3 delas tiveram a sua sorte traçada no momento. A última seria ingerida um pouco mais tarde, quando a vontade de comer, voltasse a pesar dentro de mim.

Estava agora a 13Kms do centro de Maputo. Pouco mais de 30 minutos separavam-me do fim da Viagem de Bicicleta entre Luanda e Maputo e… pela primeira vez em 168 dias, sentia ansiedade por chegar ao Final.

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O trânsito caótico da entrada de Maputo impedia a minha mente de retomar qualquer caminho virado para as nostalgias. Eu era obrigado a manter-me concentrado no mundo que girava à minha volta. Não só para evitar de enfiar a roda num buraco, como também para não “albarroar” nenhum dos milhares de machibombos (ou mini-bus) que circulam no mesmo espaço que eu, passando pelo cuidado de não ficar debaixo de nenhum camião, quando encontrava-me a uma dúzia de quilómetros do final da Viagem.

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Entrei na cidade de Maputo, já passava das 13h00. Percorri algumas das ruas do Centro, já em simbiose com o “Terminar de um Sonho”, gingando através do trânsito citadino e em direcção ao Ponto de Encontro – O Consulado Geral de Portugal em Maputo.

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Às 14h00 em ponto, e nem mais um minuto da hora combinada, cheguei ao Consulado Geral de Portugal onde fui recebido pela Dr.ª Cônsul Graça Gonçalves Pereira e pela direcção da Mota-Engil, entre outras individualidades principalmente da imprensa.

Luanda Maputo em bicicleta

Fui aplaudido e congratulado pelos presentes. Dentro de mim, reinava a calma e a aceitação de ter terminado a viagem.

De todos os cantos choviam perguntas e houve até quem tentasse ajudar-me a descer da bicicleta.

Eu encontrava-se tão “fresco” como se estivesse a percorrer a primeira etapa da Viagem. Para surpresa de alguns, comentei que “…se pudesse voltava para trás e fazia todo o percurso em sentido contrário… ou mesmo até Portugal…”

Não me encontrava desgastado fisicamente.

Mentalmente considerava-me completamente habituado, adaptado e moldado ao estilo de vida “nómada”, capaz de vencer qualquer desafio que fosse colocado na minha frente.

Sem grandes extroversões com os demais, despedia-me interiormente do Prazer de Liberdade Plena, que os últimos cinco meses e meio haviam-me proporcionado.

Passaram-se segundos, ou talvez minutos. Estava agora na altura de descer á Terra e dar um pouco de atenção àqueles que haviam aguardado pela minha chegada em Maputo.

Desliguei-me das evasões mentais e abri as condutas que levariam os sons envolventes aos meus tímpanos.

Desembaracei o nó que tinha na garganta, para começar a soltar alguns sons. Seguidamente saíram os monossílabos, para depois largar os polissílabos.

Pouco depois, fui capaz de articular frases com várias palavras e após alguns monólogos passei a conseguir manter uma conversa ordenada.

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No meio da “Apoteose”, deixei de pensar no passado para passar a concentrar-me no presente e no futuro próximo. Um futuro tão próximo que não deveria ter mais que 3 a 4 dias de distância (Exactamente o número de dias que eu tinha disponíveis no meu Visto, para permanecer em Moçambique).

Depois da calorosa recepção, fui conduzido para os meus aposentos.

Uma generosa oferta da Direcção da Mota-Engil em Moçambique, acabei alojado no Rovuma Hotel, mesmo no centro da cidade de Maputo.

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Na minha agenda para os próximos dias, estavam incluídos vários jantares, uma recepção na residência da Cônsul de Portugal e como não podia deixar de ser, uma visita detalhada de toda a cidade.

Dava por concluídas as etapas de Bicicleta entre Luanda e Maputo, contudo os dias que iria permanecer na Capital Moçambicana, também fariam parte da minha Viagem e certamente ainda iriam proporcionar-me bons momentos.

Nas minhas breves contabilidades, enumerava com 168 dias de viagem nos quais percorrera um total 8.205Kms a pedalar (sempre com a mesma corrente e cremalheiras) e onde teria que adicionar 510Kms “embarcado” em canoas a motor ou em “ferry”.

Aguardava agora pelas surpresas que Maputo teria para me “oferecer” de modo a concluir a minha estadia em Moçambique em grande… e uma delas seria a gastronomia.

Apesar de querer provar todos os pratos de culinária existentes nos restaurantes locais, jazia em mim um certo receio pelas minhas “maneiras à mesa”. Teria que me mentalizar que já não me encontrava sozinho no meio de nenhures, mas sim no meio de uma sociedade.

Queria “explorar” a cidade, monumentos e museus… e no meio disto tudo, arranjar tempo para estar presente nas entrevistas marcadas com alguns jornais, rádios e canais de televisão… sem me esquecer, claro está, de resolver a legalidade da minha estadia no país.

Já no conforto do hotel, ansiava pelos próximos dias na cidade de Maputo… e pela primeira vez em 168 dias, surgiu uma pitada de vontade em voltar a casa…

 

Moçambique Fase III (Bilene – Manhiça)

Acordei…

Diante mim, a magnifica vista da lagoa do Bilene.

Àquela hora, as águas azul-marinho ainda não sofriam influência das aragens características dos últimos dias.

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O Sol entrava na minha manhã pelo lado esquerdo, sinal que eu estava virado para Sul. À minha frente podia ver lá no longe, a espuma das ondas do Oceano que chocavam contra a língua de areia e que faziam a separação entre a lagoa e o Índico.

Apesar de ainda estar um pouco fresco àquela hora da manhã, parecia-me ser um bom dia para iniciar a penúltima etapa até Maputo.

Por seu lado, o sossego e a calma que pairavam naquele cenário, apelava à minha permanência no Bilene.

Por alguns minutos mantive-me no limbo entre a decisão de partir ou ficar.

Refugiei-me numa máxima que trazia comigo desde a minha partida de Luana, “é melhor comer, porque com a barriga cheia a cabeça pensa melhor”… Fui tomar o pequeno-almoço.

Não seria necessário chegar a metade do pequeno-almoço para conseguir chegar a um veredicto.

Iria arrancar para Manhiça!

Afinal de contas, ficar mais um dia seria apenas um adiar de uma decisão que tinha que ser tomada.

Já no meu quarto, verifiquei o estado do pneu traseiro. Estava tudo OK.

Contudo, e por incrível que parecesse, enquanto arrumava a minha tralha nas malas da bicicleta, o meu pneu traseiro fez “puffff” e esvaziou completamente.

Não foi algo que me agradasse aos ouvidos nem às vistas, principalmente porque veio-me à memória as dezenas de furos “inexplicáveis” que eu havia sofrido em Moçambique e também toda a saga com a roda traseira.

Se fosse noutras alturas, possivelmente teria arrancado o pneu à dentada.

Enchi-me de paciência e coloquei mão à obra. Depois de desmontar o pneu, encontrei o furo.

Era no lado interno da câmara-de-ar e tinha o formato de um pequeno corte… tal como as “centenas” de furos que me massacraram a cabeça ao longo dos últimos 3.500Kms.

Não podia acreditar que houvesse alguma coisa a cortar a câmara-de-ar por dentro do aro, tal como por exemplo o (outro) aro estalado.

Realizei o (conhecido) ritual de verificar o aro, o interior do pneu e a superfície da câmara-de-ar, mm2 por mm2.

Nada! Não encontrei nada que pudesse ter causado o corte no pneu… situação esta que para mim era uma espécie de dejá vu

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Remendei o pneu e em poucos minutos coloquei-o no aro da bicicleta. Enchi o pneu de ar e aguardei alguns segundos… Estava operacional.

Coloquei a bicicleta de pé para arrumar o resto da minha bagagem.

10 Segundos depois, ouço “psssssss”… o pneu vazara outra vez!

Desmontei a roda pela segunda vez e verifiquei que o remendo descolara… tal como seria de esperar, devido ao spray reparador que eu havia injectado na câmara-de-ar na noite anterior.

A solução passava agora por uma câmara-de-ar nova, a última que possuía comigo.

Já passavam das 10h00 quando iniciei a etapa até Manhiça.

Pela frente teria 33Kms de estrada secundária para depois pedalar mais 70Kms ao longo da Estrada Nacional Nº1 em direcção a Maputo.

Pedalava tranquilamente, com um choro interior por ser o final da minha Epopeia. De todos os obstáculos ultrapassados ao longo da viagem, havia apenas um que eu não havia conseguido vencer…

… O de adiar o final deste “passeio” de bicicleta entre Luanda e Maputo.

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Agora não havia nada a fazer. Já me tinha mentalizado que a viagem teria que acabar um dia. Neste aspecto, eu tinha “atirado a toalha ao chão” em sinal de lutador derrotado…

De momento, cumpria apenas calendário para percorrer os últimos quilómetros até à Capital Moçambicana… e forçava-me para manter a cabeça erguida, pois afinal de contas o objectivo estava praticamente conseguido.

A paisagem há muito que deixara de ser coqueiros e palmeiras. Os baixios verdejantes da zona de Xai-Xai também haviam sumido. Voltava o mato de baixa estatura, ainda semi-verde e que aguardava o início da época das chuvas.

A temperatura ia subindo à medida que o Astro Rei escalava as horas do dia. Por seu lado, o vento também ia dando um ar da sua graça, refrescando um pouco aqueles que pedalavam debaixo do Sol.

Começavam a ser cada vez mais frequentes os sinais que a roda (engrenagem) tripla da bicicleta, não aguentaria muito mais tempo. A corrente saltava cada vez com mais frequência e facilidade, impedindo-me de colocar potência nos pedais de um modo impulsivo. Era forçado a fazer uma aceleração progressiva, cada vez que quisesse aumentar a velocidade da bicicleta, mesmo que este aumento fosse mínimo.

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Nos momentos de paz concedidos pela minha corrente e respectivas cremalheiras, a minha mente evadia-se, perdendo-se em memórias dos últimos 167 dias assim como dos dias precedentes ao início da viagem.

Tinha constantemente que puxar o pensamento para realidades mais terrenas de modo a evitar uma “martirização” psicológica que corroía-me por dentro.

Com 33Kms percorridos, chego a Macia pouco depois das 12h00. Macia era uma vila adjacente à Estrada Nacional Nº1 e que era cortada pela estrada proveniente do Bilene.

Apesar de ter pouco tempo de estrada, o meu estômago já havia iniciado a sua comunicação com o meu cérebro referindo sinais de vácuo.

Parei no “Restaurante São Cristóvão e Bar”, que aparentava ser (ter sido) o ponto de apoio às bombas de combustível (que outrora) se situavam mesmo na sua frente.

Colmatei o meu estômago com um prego no pão e umas Coca-Cola’s, para pouco depois regressar à estrada rumo a Maputo.

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Acreditava cada vez com mais veemência que os dias de descanso no Bilene, haviam prejudicado a performance da minha bicicleta.

Em primeiro lugar, o pneu que furou sozinho dentro do quarto. Em segundo lugar o elevado desgaste na cremalheira tripla que já não me deixava pedalar sem que ocasionalmente, rebentasse com os joelhos no guiador da bicicleta. A corrente estava constantemente a saltar, impossibilitando a minha progressão. Em terceiro lugar, o selim… Este deveria ter sofrido alguma alteração das suas formas anatómicas, pois as minhas nádegas não sofriam tanto ardor, como desde os primeiros dias de Angola.

Para criar algum alívio das áreas doridas, era obrigado a pedalar de pé. Contudo (e por seu lado) a corrente e o 3º prato estavam de relações cortadas impedindo a cada pedalada tivesse o rendimento devido.

A 2 dias de chegar a Maputo, estava condicionado a pedalar sentado, empregando uma pedalada redonda, de modo a avançar na viagem. Logo de seguida e aproveitado o balanço, levantava-me por breves instantes com o objectivo de aliviar as nádegas.

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A paisagem era agora constituída (maioritariamente) por plantações de milho e de cana-de-açúcar, sendo raro avistar uma árvore.

Fazia 1 hora de tempo, desde que o meu estômago recebera o seu alimento, quando comecei a sentir o pneu traseiro demasiado “fofo”.

Olhei pelo meio das pernas, para constatar que tinha debaixo de mim, mais um pneu furado.

Voltei a temer o pior, ou seja mais um corte inexplicável no lado interior da câmara-de-ar. Numa questão de milissegundos, passaram-me (novamente) pela mente todos os furos que já sofrera na viagem e quantos deles haviam sido “cortes internos”.

Desmontei o pneu num ápice, debaixo de um sol ardente que me queimava a pele e o coco, tentado controlar a curiosidade de descobrir a causa do furo.

Mais uma vez passava pelo ritual de inspeccionar tudo. Aro, pneu e câmara-de-ar para pouco depois… voltar a sorrir.

Desta vez, o furo era mesmo um furo. Era um furo “verdadeiro” de feitio arredondado e no lado rolante do pneu. Um furo provocado por um espinho, arame ou algo parecido, em vez de ser o misterioso corte no lado interno da câmara-de-ar e que já havia criado tantos cabelos brancos na minha cabeça.

Reparei o furo com uma felicidade demente e segui viagem.

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Queria recuperar algum do tempo perdido, mas tal tarefa era completamente impossível. A corrente continuava a saltar cada vez que eu impusesse o mais ínfimo esforço para aumentar a velocidade. Por diversas vezes, recorria à 1ª cremalheira com a 8ª engrenada nos carretos traseiros, de maneira que conseguisse avançar. O elevado estado de desgaste apresentado pela corrente, permitia-me pedalar com esta cruzada de modo a utilizar a 8ª e a 9ª, enquanto à frente seguia na 1ª cremalheira.

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As dores nas nádegas voltavam a dar sinal. Algo que não entendia muito bem a razão da sua origem, uma vez que tinha mais de 8.000Kms de calo Africano e que os dias de descanso no Bilene não haviam sido assim tantos que pudessem ter desabituado o meu corpo ao formato do selim.

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Fosse como fosse, certo era que entre os problemas da corrente, o furo, as dores no cóccix e a fome (que já começava a dar sinal), faziam com que a minha mente se mantivesse ocupada sem ter tempo para olhar para trás à procura do passado nostálgico.

Eram as 16h22 quando chego à vila de Manhiça. Dirigi-me ao restaurante Laurentina para acalmar um pouco o meu estômago e onde travei os primeiros contactos acerca de um lugar para pernoitar – Express Lodge Manhiça.

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Já instalado nos meus aposentos, efectuei umas inspecções ao estado das cremalheiras e corrente.

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Era o mesmo conjunto que havia saído de Luanda comigo por isso seria natural que não aguentassem muito mais. A grande questão colocava-se na possibilidade de não durarem até Maputo, obrigando-me a pedalar em relações muito desmultiplicadas ou mesmo a pé.

Fosse como fosse, estava confiante que haveria de chegar, nem que para isso tivesse que retirar alguns elos à corrente de maneira a que esta permanecesse mais esticada.

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Após de sessão de mecânica, refugiei-me num género de retiro budista para me mentalizar que dentro de algumas horas chegaria a Maputo e consequentemente seria o término da minha viagem.

Interiormente, realizava vários balanços acerca da preparação da viagem e dos mais de 8.000Kms já percorridos.

Longinquamente idealizava cenários para uma próxima destreza, ainda sem roteiro nem datas, mas com 167 dias de experiências já vividas.

E num pensamento mais aproximo da realidade actual, preparava a minha chegada a Maputo com o sentimento de objectivo alcançado e (já) não com o sentimento de “derrotado”, por não conseguir estender em mais nenhum dia esta magnifica experiência.

Aguardava agora, numa espécie de ansiedade contida, pela minha chegada a Maputo…

Moçambique Fase III (Estadia no Bilene)

 

Encontrava-me no Bilene, disposto a dispensar uns dias do meu calendário para passa-los nestas paragens.

Encontrava-me alojado mesmo em frente à lagoa, onde a água salgada do mar se misturava com a água doce proveniente de rios e riacho que ali desaguavam.

Ao longe era possível avistar a barra natural composta por dunas de areia e por onde a lagoa fazia a sua ligação ao mar.

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A areia branca da praia, convidava para umas passeatas em torno da lagoa, no entanto não encontrava grande disponibilidade dentro de mim para passar umas horas a caminhar pela areia.

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Limitei-me a percorrer uma centena de metros para cada lado, com os pés mergulhados nas águas cálidas da lagoa e a ver os barquinhos que esperavam a sua hora de ir para a faina.

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Depois do reconhecimento das areias da lagoa, aventurei-me para dentro da vila.

Uma nova acção de reconhecimento aos recantos do Bilene, faziam-me ver com maior atenção, o contraste entre as velhas e as novas construções.

Muitas casas de baixa estatura com arquitectura “cinquentas” a “setentas”, rodeadas de amplos jardins, faziam-me suspeitar que o Bilene teria sido uma colónia de férias de outros tempos.

De facto, isso ainda verificava-se nos dias de hoje pois a maior parte das habitações e complexos hoteleiros encontravam-se fechados (por ser época baixa), e a densidade populacional da vila estava muito aquém do esperado, quando comparado com o número de habitações existentes.

Dirigi-me ao mercado local. Percorri algumas das suas ruelas registando as diferenças e semelhanças, com os outros mercados locais por onde passara anteriormente.

Vendia-se um pouco de tudo, tal como em qualquer mercado. Mas o que verdadeiramente mais me chamou a atenção e cativou, foi a existências de pequenos “tascos”, restaurantes e petisqueiras onde se podia sentar e apreciar boa comida.

Decide sentar-me num dos restaurantes típicos para almoçar. Depois de escolher o prato que pretendia para menu, trouxeram-me um punhado de peixes pendurados nos braços existentes no restaurante, para que eu escolhesse qual deles queria que passasse para a grelha.

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Fiz-me de entendido no assunto e escolhi o meu peixe…

Esperei e voltei a esperar. No meu relógio, vi os dígitos dos minutos a repetirem-se e o dígito das horas a mudar por duas vezes.

Finalmente o prato veio a seu dono.

Só de olhar, os olhos escorriam baba.

O cheirinho de alho e cebola picada em molho de manteiga com umas verduras raladas, faziam-me salivar pelas narinas.

Ataquei o peixe quase de olhos fechados à espera de sentir na minha boca, os primeiros impulsos gustativos…

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Abri os olhos… olhei para o peixe…

… Estava cru!

Lá dentro anda conseguia ver filamentos vermelhos de sangue, enquanto outras partes do peixe, apresentavam tons acinzentados que se podiam ver quase à transparência…

Mandei o peixe para trás… dediquei-me ao arroz…

Quis o destino que o mau tempo se instalasse no Bilene, obrigando-me a estar confinado ao meu quarto, de onde podia observar a chuva a bater na janela, a lagoa e mais ao longe a barra.

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Sentia-me numa câmara de descompressão, na qual aos poucos e poucos ia mentalizando-me que estava a 2 dias de Maputo e consequentemente no final da minha viagem de bicicleta.

Já não havia muito a fazer e as alternativas eram escassas, não só pela grande proximidade ao destino final, como também porque já não me restavam muitos dias de permanência legal dentro do país.

Olhava para trás com nostalgia. Estava na estrada há mais de 5 meses e com a barreira dos 8.000Kms ultrapassada, todavia sentia-me “fresco” tal como se tivesse iniciado a viagem na semana anterior.

Fisicamente estava bem… e mentalmente estava melhor. Sentia-me capaz de chegar a Maputo e percorrer de volta todo o percurso até Luanda. Habituara-me ao modo de vida “nómada”, solitário e ao prazer de fazer dos meus dias aquilo que eu bem entendia.

Cada dia passado em viagem, surgia na minha mente como por geração espontânea. O prazer de descobrir estava patente em cada minuto e em cada pedalada já passada.

Tentava descobrir dentro de mim o que eu ganhara com a minha viagem e qual a influência que esta havia tido em mim… mas conclusões eram poucas. No estado de hipnose em que me encontrava, não conseguia tirar nenhuma conclusão.

Procurava saber o que poderia ter vivido ou aproveitado e que na realidade não o tivesse feito… e neste caso chegava a uma conclusão…

Concluía que percorrera toda a distância de Luanda até ao Bilene demasiado rápido. Sempre com a preocupação de ir do Ponto A para o Ponto B, como se de uma corrida se tratasse.

Mapa Geral-Bilene

Ainda mais quando a distância entre pontos era, na sua grande maioria, acima dos 100Kms. Eventualmente poderia ter escolhido etapas mais pequenas e assim aproveitar outros momentos… ou talvez não…

As tormentas da minha roda traseira, haviam condicionado indubitavelmente o prazer de cada etapa, obrigando-me a manter a rota por estradas de alcatrão enquanto o verdadeiro deleite vinhas das etapas em que me encontrara “perdido” no mato e entre populações remotas.

Olhava para o meu mapa de Moçambique.

Com os olhos seguia todo o trajecto desde a minha entrada no País, em Metangula na Província do Niassa, até ao ponto onde me encontrava – o Bilene.

Moz

Neste momento e para saber a distância remanescente até Maputo, já não era necessário desdobrar o mapa mais que uma vez. Um nicho de papel era suficiente para “localizar” os poucos quilómetros que ainda teria de percorrer.

A fim de evitar que entrasse em algum tipo de demência mental, resolvi formatar a minha visão. Em vez de olhar para o passado com melancolia, eu era obrigado a mirar para o futuro como sendo o meu novo objectivo.

A viagem de bicicleta estava no final, e num futuro muito próximo eu estaria de regresso à vida do quotidiano. Era esta a realidade que eu teria que injectar na minha cabeça dura… custasse o que custasse.

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Depois de um par de dias de tempestade, eis que veio a bonança.

O Sol voltou a encher o dia de luz e de brilho.

As águas da lagoa regressaram ao sem tom transparente e límpido convidando-me para um passeio de barco até à barra de areia que se situava do outro lado.

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Á chegada á barra. Era possível ver o contraste entre as águas calmas e transparentes da lagoa, com as águas turvas e agitadas do Oceano Índico.

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O contacto entre ambas as águas era só possível ou com a maré alta, ou em dias de excesso de água na lagoa, ou em dias de elevada agitação marítima. Nos restantes dias, o cordão de areia mantinha uma distância de segurança entre as duas forças da natureza.

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A pequena praia que dava origem à barra, era rodeava de falésias virgens.

Do cume de uma delas, pude observar à distância uma baleia que de tempos em tempos vinha à superfície para respirar.

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Por seu lado, próximo dos rochedos da falésia, conseguia ver ocasionalmente uma ou outra tartaruga a nadar ao sabor da corrente.

Do ponto mais alto da falésia, olhei para Sul… Maputo era algures lá no fundo, onde a vista ainda não alcançava…

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A beleza natural do Bilene cativava-me, mas estava na altura de regressar a “terra” e iniciar os preparativos para mais uma etapa.

Na minha bicicleta residia um pneu vazio. Após batalhar longos minutos para a reparação do pneu, acabei por concluir que o problema não era 1 simples furo, mas sim 5 simples furos.

A falta de paciência para ligar com cada um dos furos, levou-me a usar o spray tapa-furos apesar de saber que não seria a solução ideal.

No final, e após algumas verificações, o spray tapa-furos acabara por revelar-se uma boa solução, fazendo com que o ar permanecesse dentro do pneu, evitando que este perdesse a pressão.

 

Estava agora preparado e mentalizado para reiniciar as pedaladas e percorrer as duas últimas etapas até Maputo.

Aguardava, talvez com excesso de ansiedade, o que as 2 últimas etapas haviam reservado para mim…

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Moçambique Fase III (Xai Xai – Bilene)

 

Durante a noite anterior havia estudado através do meu mapa em papel, o trajecto que me levaria de Xai-Xai até ao Bilene. Eram apenas 94Kms de distância, dos quais os últimos 33Kms seriam numa estrada secundária da qual eu desconhecia o estado e/ou o tipo.

Poderia considerar a actual etapa como a antepenúltima etapa de toda a viagem entre Luanda e Maputo. Após a Praia do Biliene, e segundo as minhas matemáticas, teria apenas mais 2 dias de viagem.

Despedi-me do hotel “Ponto de Encontro” às 8h20. O céu apresentava-se lavado e limpo, pela primeira vez em 2 dias que aliado ao vento ainda inexistente, faziam-me prever um dia agradável para andar sentado no selim da bicicleta a desbastar quilómetros.

Percorri a avenida (EN1) principal de Xai-Xai em direcção a Sul. Pude apreciar mais uma vez as suas habitações e edifícios recuperados, que davam um ar simpático e acolhedor à cidade.

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Ainda pedalava em modo de aquecimento de músculos, tendões, articulações (e tudo o resto que estivesse envolvido na actividade do pedal) quando encontro um velho amigo meu.

Desta vez pintado de azul, mas facilmente reconhecível recordando-me constantemente dos quilómetros restantes até Maputo.

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Não lhe dei grande importância, nem deixei que o meu subconsciente se auto-martirizasse com a provocação. Limitei-me a direccionar a minha concentração para os 100 metros de alcatrão que estavam diante dos meus olhos, de modo a evitar pensamentos fúteis.

A paisagem mudara completamente. Deixava de ser abundante em árvores e arbustos, para passar a ser maioritariamente constituída por terras baixas e verdejantes.

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Á minha volta, vários passarinhos cantavam, voando para trás e para a frente como se estivesse a celebrar a chegada das chuvas.

Do meu lado esquerdo, uma picada em terra vermelha pedia que eu a usasse em detrimento do monótono alcatrão. Segui-a com o olhar de maneira a descortinar para onde me levaria. Possivelmente acompanharia a Estrada Nacional 1 em toda a sua extensão… Possivelmente dava a volta à montanha que se encontrava à minha frente e iria desaguar no Bilene… Possivelmente não levaria a lado nenhum acabando por submergir em algum charco ou pântano…

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Fosse como fosse, esta abriu-me o apetite para arranjar uma alternativa que me levasse ao Bilene e que não a estrada principal. Queria agora um fora-de-estrada para aproveitar as últimas etapas até Maputo.

Com uma ligeira meditação sobre o assunto, concluí que seria um risco avançar para uma via alternativa, pois certamente iria encontrar bastante areia. Contudo era um risco para o qual eu estava disponível ainda mais quando queria usufruir de mais uma etapa no mato.

Não seria necessário esperar muito tempo até que cheguei a um aglomerado de gente e viaturas. Com a minha aproximação apercebi-me que se tratava de uma pequena povoação e que as viaturas parqueadas eram os mini-bus (chapas) que transportavam a população local de um lado para o outro.

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No meio da “confusão”, uma cortada para a esquerda que supostamente levaria até às praias chamou-me a atenção.

Pedi algumas informações a um dos motoristas que se encontravam parqueados. Em primeiro lugar, para onde seguia a estrada. Em segundo lugar se era possível passar de bicicleta.

A resposta foi simples e simpática, “… essa estrada vai para Nhabanga… o Bilene é depois…”.

De seguida acrescentou “… de veículo 4x4 é possível chegar a Nhabanga…”, para logo de seguida interrogar e concluir “…Vai assim mesmo?! De bicicleta?!... Nunca vi… mas vai chegar”.

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Valia-me o optimismo do motorista e a minha boa disposição para aceitar o “pseudo-desafio” de avançar por uma picada até Nhabanga… depois… até ao Bilene?… havia de se ver quando a estrada acabasse…

A picada encontrava-se em relativo bom estado (para a bicicleta). Algumas zonas de areia mais solta, obrigavam-me a escolher bem a trajectória da minha roda da frente, mas no geral era possível seguir viagem dentro dos padrões de velocidade previstos para este tipo de terreno.

As pernas pedalavam no topo das motivação, talvez movidas pela adrenalina de voltar a pedalar no meio de nenhures, ou talvez pela tranquilidade transmitida pela minha (nova) roda traseira, ou até talvez por ambas as razões. Mas certo era, que seguia a bom ritmo e sem me cansar. Toda esta conjuntura permitia-me usufruir de cada pedalada, incluindo as descidas ficando apenas limitado às subidas, onde a minha corrente já não aguentava a transmissão de esforço.

Aos poucos a via por onde circulava ia-se transformando para algo mais arenoso, dificultando a minha progressão. Dificilmente conseguia manter o guiador direito enquanto a roda traseira perdia constantemente a tracção.

Ao ver que era cada vez mais difícil avançar no meio da areia, apliquei uma velha dica usada nos veículos 4x4. Esvaziei ligeiramente os dois pneus de modo a ter maior superfície de contacto e consequentemente evitar que a bicicleta se enterrasse na areia.

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Enquanto concluía a operação de verificação da pressão dos pneus, passa por mim um pequeno grupo de autóctones. Aproveitei para esclarecer a questão do acesso ao Biliene através daquela via.

Todos disseram-me que não havia estrada… Só dava para passar a pé porque a estrada acabava em Nhabanga.

A minha teimosia não me permitia voltar para trás. Não restando outra hipótese, avancei e segui caminho até Nhabanga.

A paisagem era igual a tantas outras por onde passara anteriormente. Estrada de terra vermelha misturada com areia escura e rodeada de vegetação verde vivo. No entanto este cenário tinha uma beleza especial, assim como o seu sabor e atracção. Parecia que vivia naqueles quilómetros um “dejá vú” de outros quilómetros, anteriormente percorridos desde a saída de Luanda até àquele lugar.

Um outro factor que poderia estar a influenciar os meus sentidos e a minha maneira de ver a realidade, seria o caso de o meu (sub) consciente ter constantemente presente, a ideia que eu encontrava-me na antepenúltima etapa da minha viagem.

Talvez por essa razão, este quisesse aproveitar cada minuto passado, cada metro percorrido e cada pedalada dada, tal e qual como se fosse a primeira… ou a última (neste caso).

Faltavam 15 minutos para as 11h00 quando cheguei a uma encruzilhada rodeada por um punhado de casas.

Uma das construções era uma loja, que vendia aquilo que se podia encontrar.

Automaticamente o meu estômago deu o seu sinal de presença, assim que viu um placard publicitário de cores vermelhas. Afinal, nada me garantia que fosse encontrar mais estabelecimentos ao longo da via, até que chegasse fosse lá onde fosse.

Aceitei ceder ao pedido do meu estômago e parei em frente à entrada do estabelecimento para comer e beber algo.

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Comprei um cacho de bananas e uma Coca-Cola (para não variar muito a dieta), e estava tomado o segundo mata-bicho.

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Regressei à estrada de estômago já acomodado e capaz de enfrentar os quilómetros que estavam para vir.

Mas vá-se lá saber porquê, o relevo da via alterou-se drasticamente.

O piso plano de terra e areia dava agora lugar a longas e íngremes subidas repletas de areia solta, onde se podia observar as marcas das dificuldades que os veículos 4x4 sofriam, para conseguirem ultrapassar cada colina.

Vieram-me á cabeça os 3 dias passados na Zâmbia a empurrar a bicicleta numa estrada de areia, assim como todas as dificuldades que fora obrigado a vencer.

Afinal o desafio que tinha pela frente não era nada que ainda não tivesse sentido e uma vez mais, a minha teimosia imperou de maneira a que nunca colocasse a hipótese de voltar para trás até à EN1.

Avancei…

8 Minutos depois e (quase) completamente exausto por ter empurrado a bicicleta à mão ao longo da subida de areia… cheguei ao topo da colina, de sorriso no coração por ter vencido mais um obstáculo.

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Mal consegui recuperar o fôlego, quando 4 minutos depois avisto uma outra subida ainda maior e mais íngreme que a anterior.

Interroguei-me se estaria condenado a andar aos altos e baixos, a empurrar a bicicleta, até ao final da etapa.

Mas como a resposta fora nula, decidi avançar em direcção ao “gigante de areia”.

No sopé da “montanha”, preparei-me mentalmente para o desafio. Logo de seguida iniciei a caminhada, arrastando 40Kgs de carga pela areia fora.

À medida que o gradiente da subida ia aumentando, diminuía o meu rendimento na tentativa de avançar. A areia impedia que a roda dianteira seguisse em frente, simultaneamente a bicicleta teimava em descer de marcha-a-ré até ao ponto de partida.

DSCF8801Por cada 5 passos dados, parecia que avançava apenas 1. Devido ao esforço (e á inclinação da subida), a areia cedia e em vez da bicicleta avançar, eram as minhas pernas que iam para trás.

 

Era obrigado a interromper a marcha com alguma frequência, com o objectivo de retomar as forças e de baixar a cadência cardíaca, evitando assim que o coração saltasse pela boca e que as tíbias saíssem disparadas pelos joelhos.

Percebia agora as palavras do motorista do mini-bus quando lhe perguntei sobre o estado da estrada -“De bicicleta?!... Nunca vi…”

 

Passo após passo, metro após metro, eis que chego ao topo da serra, ainda com forças para olhar para trás.

 

Talvez originado pela desidratação, ou originado pelo sindroma do “fim da viagem”, a minha consciência transmitia-me a ideia que a subida não fora dura o suficiente.

Decidi sair rapidamente daquele lugar, não fosse a minha mente comandar o meu corpo para descer e fazer a subida novamente.

Prossegui.

Desta vez por um trilho onde era possível manter-me em cima da bicicleta, apesar das “acanhadas” dificuldades que surgiam ocasionalmente.

Pedalava numa espécie de planalto de areia, de vegetação de baixa estatura e com pequenos charcos espalhados um pouco por toda a parte.

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Aos poucos as pernas foram acusando o cansaço, maioritariamente devido ao excesso de esforço aplicado para subir as dunas de areia. Contudo na minha mente, os níveis de adrenalina estavam no máximo e bem capazes de despender uma boa quantidade desta “substância” de modo a alimentar de energia todos os músculos das minhas pernas.

Avançava, movido a energia anímica repleto de momentos nostálgicos de toda a viagem.

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Naquele troço de fora-de-estrada até à praia do Bilene, conseguia rever cada uma das etapas, desde a partida de Luanda até à chegada à contra costa. Cada trilho percorrido em Angola, cada passo dado nas areias Zambianas e cada pedalada no mato da província do Niassa, tinham a sua representação naquela curta distância entre a Estrada Nacional N1 e o Bilene.

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Como se de uma despedida se tratasse, eu fora brindado com um “digestivo” de cada etapa já percorrida, numa pequena etapa de um só dia. Tinha agora que aproveitar e saborear cada minuto vivido, pois sem dar por ela, eu estaria sentado num avião para regressar a casa.

DSCF8811 Deveria estar a aproximar-me de Nhabanga, pois o sinal feito de madeira assim o indicava. Todavia não era esclarecedor quanto ao trilho a seguir, na bifurcação situada alguns metros mais à frente.

Nada que não tivesse solução.

Uma análise aos trilhos para saber qual deles tinha mais movimento, uma olhadela ao GPS para saber a minha posição e a localização da de Nhabanga, um bocado de bom senso e estava encontrada a via a seguir.

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Minutos depois estava em Nhabanga e no final de estrada.

A estrada acabava na Lagoa do Uembje. Algures do outro lado, ficava o Bilene.

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Aproximei-me da praia. Por minutos fiquei a saborear o ligeiro odor a maresia. Estudei as minhas alternativas para chegar ao meu destino e depressa concluí que só me restava seguir ao longo da praia empurrando a bicicleta.

Ao longe conseguia avistar várias falésias que poderiam dificultar-me a vida. No entanto estada determinado a seguir em frente. Deixei-me estar mais uns minutos a apreciar a paisagem.

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Do meu lado direito, alguns locais usavam a lagoa de água semi-salgada para os cuidados da sua higiene diária.

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Um pouco mais afastado e plantadas ao longo das dunas, conseguia ver várias pensões (Lodges) destinadas a turismo de “retiro espiritual”. Algo que não era certamente o que eu procurava para passar a noite.

Dirigi-me para a orla costeira, onde a areia seria mais dura e de fácil progressão.

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Poucos minutos depois a caminhada era interrompida por um riacho que desaguava na lagoa. Pousei a bicicleta e fui estudar qual o local onde poderia atravessa-lo sem que a água chegasse ao nível dos meus alforges. Alguns passos para montante, outros tantos para jusante… alguns passos em frente pela água adentro, mas nada.

Facilmente a água chegava aos meus joelhos o que significaria que metade dos alforges ficaria submergida.

Levantar a bicicleta sozinho era algo que estava completamente fora de questão. Se o fizesse era mais certo que acabaria mergulhado com o queixo no fundo do riacho, do que molhar os meus próprios pés.

Aguardei alguns minutos até que apareceu a ajuda que eu precisava.

Alguns braços dispostos a ajudar-me a levantar a bicicleta era tudo o que necessitava para ultrapassar mais este obstáculo.

Assim que chegámos à outra margem, as mulheres automaticamente pediram o pagamento da ajuda como se tratasse de um acto obrigatório.

Enchi os pulmões de ar e num suspiro lento pleno de santa paciência, agradeci a ajuda. Depois, numa atitude assertiva e didáctica tentei explicar-lhes que Ajuda é… Ajuda… e não um serviço pago.

Não necessitei de dizer mais nada porque o Franz interpôs a sua posição:

- Esse White aí pediu para ajudar… se não queria ajudar, não ajudava… ia embora… viu?

Assim ficou resolvida a questão e segui viagem acompanhado pelo Franz, que continuava a ajudar-me a arrastar a bicicleta pela areia fora.

Ora em piso plano, ora nas subidas que surgiam pela frente.

 

Durante quase 1 hora tive a companhia do Franz ao qual ia contando as peripécias da minha viagem, até ele chegou ao seu destino. Agradeci-lhe todo o apoio prestado e despedimo-nos.

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Pouco depois consegui atingir uma via transitável. Voltava a colocar-me em cima do selim da bicicleta para pôr os pedais a rodar.

Minutos mais tarde, entrava no Bilene pela porta das traseiras, surpreendendo os vendedores ambulantes que mantinham a sua atenção nas pessoas que circulavam na estrada à sua frente.

Passavam poucos minutos das 15h30, o que dava-me tempo para uma volta de reconhecimento.

O Bilene era bonito e calmo. Talvez por ser época baixa, até era calmo demais para a quantidade de unidades hoteleiras que havia um pouco por toda a parte.

Realizei uma pequena prospecção de mercado, para saber onde poderia parar para comer e dormir. Contudo não era uma tarefa fácil, pois muitos dos estabelecimentos encontravam-se encerrados e aqueles que estavam operacionais apresentavam preços fora do meu orçamento.

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2 Horas depois acabei num empreendimento turístico (Aquarius) mesmo em cima da praia. Após alguns minutos de conversa com o André (Responsável de Operações), este cedeu-me um quarto a um preço simpático, convidando-me a ficar no Bilene por mais uns dias.

De Xai-Xai à praia do Bilene, percorrera 77Kms (contrariamente aos 94Kms previstos se tivesse optado pela via de alcatrão – trajecto verde), em 8h15m dos quais 65Kms foram de picada, dunas e areia da praia (trajecto vermelho).

Mapa Bilena

Eu estava decidido a passar um par de dias no Bilene,com o objectivo de efectuar um tratamento de “incubadora” e de “descompressão mental” antes de percorrer as duas últimas etapas até Maputo e consequentemente dar por terminada a minha viagem.

Com a chega ao Bilene, passava assim a barreira dos 8.000Kms percorridos.