Moçambique Fase II (Mocuba-Quelimane)

Eram as 8h10 da manhã, quando dei início à etapa do dia. O destino proposto seria Quelimane, a capital da Província de Zambeze.

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Tinha plena consciência que era um objectivo difícil de atingir, principalmente devido aos mais de 150Kms que separavam as duas cidades. No entanto estava disposto a tentar.

 

As ruas de Mocuba estavam ligeiramente molhadas, devido à leve morrinha que se fazia sentir desde as primeiras horas da manhã.

Junto da sapiência local, confirmei as minhas previsões – “Isso já passa… daqui a nada ‘tá Sol…”.

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Na verdade, encontrava-me no pico da época seca e tudo fazia prever que a morrinha fosse passageira. Assim sendo, não necessitaria de procurar o meu impermeável no fundo das malas, nem de forrar os alforges com as capas de protecção. Estava decidido a desfrutar da “humidade” matinal, para mais tarde fazer face ao subir das temperaturas.

De facto, 20 minutos depois de ter deixado Mocuba, o céu passou a apresentar tons de cinzento claro e a estrada dava indícios de estar seca.

As gentes locais realizavam as suas tarefas diárias sem se importarem com as previsões meteorológicas. Em contrapartida, dedicavam alguma da sua atenção ao branco que passava com uma bicicleta quase tão carregada como as suas.

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Estava a conseguir manter uma boa velocidade média, sem que as minhas pernas acusassem qualquer sinal de desgaste. Pelas minhas mais recentes matemáticas, seria possível chegar a Quelimane pouco depois das 16h00.

A alegria da etapa acabaria por ser interrompida ao quilómetro 22, quando a bicicleta acusou os sintomas de circular com 2 raios partidos na roda traseira.

Enquanto tentava mater a bicicleta direita para substituir e afinar os raios partidos, a nuvem que pairava por cima da minha cabeça, resolveu descarregar toda a água que transportava com ela.

Numa típica teimosia minha, tentei afinar a roda antes de buscar o meu impermeável nos confins dos alforges. Tentava desesperadamente acertar com a chave-de-raios, nas cabeças dos mesmos ao mesmo tempo que esforçava-me para manter os olhos abertos e resistir às agulhas liquidificadas que se espetavam nas minhas vistas.

Os alforges começavam a deixar passar água para o seu interior, fazendo-me temer pelo bem-estar dos meus pertences. Por todos os lados da minha bicicleta (e sua carga) escorriam rios de água como se fossem caleiras de um telhado e os meus pés estavam agora mergulhados em alguns centímetros de água e areia.

Apenas quando surgiu um jorro de água pelas brechas do meu capacete que me impedia de manter os olhos abertos é que despertei para a realidade da minha (ensopada) bagagem. Estava na altura de ceder, intervalar a reparação da roda e dedicar algum tempo para colocar as capas nos alforges e procurar o meu impermeável para vestir.

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Retomada e concluída a operação de substituição dos raios e afinação da roda (que no total consumira 34 minutos), estava na altura de prosseguir na etapa e tentar recuperar algum do tempo perdido.

 

Pela frente tinha ainda 135Kms até Quelimane, que a julgar pela cor do céu, poderiam ser bastante “molhados”.

Observava com atenção os veículos que se cruzavam comigo, com o objectivo de verificar se traziam (ou não) o limpa-vidros ligados. Caso estivessem ligados, seria sinal que também estava a chover “lá”…

Por vezes, não era necessário esperar que os veículos se aproximassem para eu chegar a uma conclusão, pois os chuveiros ciclónicos produzidos pelos seus rodados, eram visíveis à distância.

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Cerca de 45 minutos depois de ter reiniciado a pedalada, voltava a sentir a roda traseira a saracotear de um lado para o outro. Tinha novamente problemas com os raios!

Desta vez não estava nenhum raio partido, apenas meia-dúzia deles desapertados. A operação de aperto e afinação, voltou a ser cumprida debaixo de chuva intensa. As bermas da estrada escoavam o excesso de água e lama, o que me impedia de deitar a bicicleta no solo.

Mais um teste à minha paciência para conseguir reparar a roda traseira, ao mesmo tempo que segurava na bicicleta com o ombro. Simultaneamente, tentava evitar que esta se deslocasse para a frente (ou para trás), colocando um pé sob um dos pneus. Para ajudar à festa, os fios dos auscultadores resolviam prenderem-se em todo e qualquer corpo que estivesse nas proximidades, arrancando-me as orelhas da cabeça cada vez que efectuava um movimento com o pescoço.

12 Minutos perdidos, alguns nervos queimados e estava pronto para sentar-me no selim e atacar os muitos quilómetros remanescentes até Quelimane.

DSCF7375 Faltavam 10 minutos para as 11h00 e o meu GPS contava com apenas 37Kms percorridos.

Apesar de ainda ter 6 horas de luz solar, aos poucos começava a ganhar forma, a ideia de pernoitar em Namacurra ou em Nicoadala.

A minha tolerância ao comportamento da roda (e dos raios) estava no limite, além que ainda não me cabia na cabeça o facto de estar a levar com a maior carga de água desde Angola, ainda por cima em plena época seca!

20 Minutos passaram, quando recebo a informação que tinha nova família de raios partidos. Os meus nervos começavam a fazer a água da chuva evaporar-se, secando-me a pele e as vestes, ao mesmo tempo que consumia os restos do pequeno-almoço que trazia no estômago.

Necessitei de mais 23 minutos para realizar, pela 3ª vez a operação de substituir raios e afinar a roda de trás.

Aos poucos e poucos o meu organismo começava a acusar uma genuína vontade em alimentar-se. A fraqueza ia lentamente chegando às pernas, obrigando-me a concentrar em outros panoramas para conseguir manter o andamento até então.

Ocasionalmente, avistava ao longe outros ciclistas que partilhavam a via comigo. Aumentava ligeiramente o meu ritmo para poder apanhar os ditos ciclistas e assim aproveitar o efeito do seu cone de ar.

Contudo, após chegar perto dos meus colegas, a realidade era outra. O ritmo imposto por estes nem sempre condizia com os meus propósitos, uma vez que (também) traziam avultadas cargas nas suas bicicletas.

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Eram as 13h30. Pedalava há 5h20m e contava com uns “meros” 85Kms percorridos. Pela frente teria 70Kms e pouco menos de 4 horas de luz. Matematicamente ainda era possível chegar a Quelimane antes das 18h00. Restava-me saber as surpresas que a minha roda traseira e as minhas pernas haviam reservado para a etapa do dia.

O cenário diante os meus olhos apresentava-se bastante negro, levando-me a crer que deveria ter trazido uma mascara de mergulho em vez de uns óculos escuros.

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Simultaneamente do meu lado esquerdo, como que para embelezar a paisagem ou para raiar os meus olhos de inveja, os céu azul dava um ar da sua graça, permitindo que o capim tivesse direito a uns longos minutos de exposição solar.

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A roda traseira continuava a dar-me problemas, mas de menor peso em termos de “minutos”. Adoptara uma técnica diferente para poupar tempo e células cerebrais. Consistia em apertar os raios soltos, antes que estes se desapertassem! Ou seja, à menor oscilação da roda, parava a bicicleta e com 1 ou 2 voltas às cabeças dos raios adiava o problema da roda até que estes se desapertassem outra vez.

O tempo passava mais depressa do que os quilómetros percorridos. As minhas pernas acusavam da pior maneira o desgaste psicológico que os raios da roda traseira originavam em mim. Contudo havia (recentemente) estabelecido como meta, chegar a Quelimane… fosse a que horas fosse. Mesmo que para isso tivesse que pedalar os últimos quilómetros sob a iluminação da minha lanterna.

Apesar de por vezes não conseguir manter os pedais a girarem à rotação desejada, a minha velocidade média mantinha-se ao nível dos meus melhores dias. Um paradoxo entre Espaço Vs Tempo, ao qual era difícil arranjar uma explicação. Talvez por não haver uma acção contrária do vento, ou simplesmente por ter delineado à última hora que Quelimane seria o destino final da etapa, ou por contar com a ajuda do cone-de-ar de um ou outro ciclista que resolvia pedalar à minha frente por breves minutos (até se cansar).

A poucos quilómetros de Nicoadala, e quando as minhas pernas incriminavam a falta de energia, surge um ciclista local ao meu lado.

DSCF7386Como não podia deixar de ser, este ultrapassou-me, impôs o seu ritmo e deu inicio à sua demonstração de velocista.

Em contrapartida, em vez de eu optar pelo contra-ataque, eu aderi pela via mais didáctica.

Despendi alguma energia extra para colocar-me ao lado dele e iniciei a conversação.

Em poucos minutos expliquei-lhe que teríamos muito mais a ganhar se pedalássemos juntos. Então o acordo era o seguinte:

Do meu lado, eu nunca tentaria ultrapassa-lo e assim seria o meu colega o herói do pelotão. Da parte dele, teria que abrandar o ritmo para que eu pudesse usufruir do seu efeito de “aspiração”, sem consumir muita energia.

E assim seguimos por 25 minutos até darmos entrada em Nicoadala, localidade onde nos despedimos e onde eu aproveitei para repor o meu stock de bananas.

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Eram as 15h15 e pela frente ainda teria entre 1h30m a 2h00m de pedaladas até entrar na cidade de Quelimane. Pelos tons do céu diante mim, eu enfrentaria mais uma valente carga de água antes do final da etapa. Algo que não me causava qualquer dissabor, uma vez que já me encontrava completamente encharcado.

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Iria regressar a Nicoadala uns dias mais tarde, quando deixasse Quelimane e iniciasse o trajecto rumo a Sul, mais concretamente até à cidade da Beira.

Seguia agora imerso nos quilómetros finais da etapa. Para abstrair-me das dores nas pernas, tentava concentrar-me nas músicas do iPod e manter a mente longe da bicicleta. No entanto havia sempre algo que chamava-me de volta à realidade. Se não fossem os raios da roda desapertados, seriam os auscultadores do iPod que deixavam de funcionar devido à chuva. Se não fosse nem um nem outro, então haveria sempre um raio que resolvia separar-se em dois, obrigando-me a encostar à berma para a sua substituição.

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A presença de outros ciclistas era praticamente nula, o que me fez “agarrar” o primeiro que surgiu e avançar para o modo didáctico, ainda antes que se desse início a qualquer picanço.

Poderia agora aproveitar a benéfica acção do seu cone-de-ar e seguir mais à vontade, além que teria quem me ajudasse cada vez que os raios partissem (algo que aconteceria um pouco mais tarde).

Passavam 10 minutos das 17h, quando iniciámos a aproximação à cidade.

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Ao longo da estrada de acesso a Quelimane, fui obrigado a colocar no guiador da bicicleta toda a perícia de condução que adquiri na viagem e assim desviar-me dos inúmeros mini-bus, machibombos e táxis improvisados, que circulavam pela via de qualquer maneira e feitio, para não falar nas carroças, pessoas e animais.

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Alguns minutos mais tarde, cheguei ao centro de Quelimane. Encontrei uma cidade praticamente sem estradas pavimentadas, onde o alcatrão dera lugar a muita lama e longas poças cobertas por água barrenta.

DSCF7404 Em poucos metros fiquei mais sujo de lama do que em qualquer outra etapa da viagem desde que saíra de Luanda.

Procurei alojamento junto do dono do Hotel Flamingo, que rapidamente arranjou uma solução à medida do meu orçamento. Iria pernoitar numa casa particular que pertencia ao mesmo.

 

Havia concluído a etapa Mocuba – Quelimane em 9h39m, onde 1h46m foram dispendidos a reparar raios e a comer bananas. Para trás ficavam 159Kms, dos quais 80% foram pedalados debaixo de água.

De uma maneira mais ou menos aproximada, estava concluído a Mapa Cor-de-Rosa de Roberto Ivens e Hermenegildo Capelo, mas desta vez em bicicleta.

Mapa

Viria a saber mais tarde, que os pombeiros luso-angolanos Pedro João Batista e José Anastácio haviam realizado o mesmo feito, anos antes dos exploradores portugueses.

Moçambique Fase II (Mugulama-Mocuba)

Os muitos dias passados a pedalar em África, habituaram-me a dormir em condições menos ideais. O simples facto de faltar uma tábua no leito, não fora impedimento para o repouso do meu corpo. E nem mesmo o infindável corre-corre dos ratos dentro da parede do quarto, havia perturbado as minhas horas de descanso.

Com os primeiros raios solares, pude apreciar pela primeira vez, o cubículo onde pernoitara na noite anterior.

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Havia solicitado o meu pequeno-almoço para as 6h30, mas como era de esperar, este faria a sua aparição no bar da pensão com o devido atraso. Neste caso fora 1h10m de demora.

Comi a metade do pacote de esparguete que sobrara da noite anterior, ao qual juntei 2 pães (secos) e uma chávena de chá adocicado com leite condensado. Logo de seguida preparei mais uma vez o farnel para a viagem (que para não variar na dieta, seria um cacho de bananas) e despedi-me do simpático dono da pensão.

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A etapa teve o seu início às 8h10, cerca de 40 minutos mais tarde que o previsto. Pela frente teria 125Kms até Mocuba, dos quais metade, seriam em “estrada muito má” segundo as últimas informações colhidas em Mugulama. Algures a meia distância teria a povoação de Nampevo, local onde planeava parar para almoçar, hidratar a garganta e esticar as pernas.

O dia estava bonito, com temperaturas amenas e pouco vento. A estrada continuava em óptimas condições e o trânsito era ocasional. Tudo perfeito para um dia perfeito, não fosse o caso de as minhas pernas parecerem 2 blocos de cimento em processo de cura, que faziam de tudo para resistir ao movimento que lhes era solicitado.

Muito possivelmente estaria as sofrer as consequências dos “esticões” do dia anterior, quando intencionava chegar a Mugulama antes de o anoitecer. A concentração de ácido láctico nos músculos poderia ser também uma das razões para sentir as pernas emperradas e sem dinâmica suficiente para manter a bicicleta a rolar nas velocidades pretendidas.

Tal e qual como uma dobradiça oxidada que começa a mover-se lentamente após ser lubrificada, também as minhas pernas foram desenferrujando (com o passar dos quilómetros) e a dinâmica voltou a sentir-se nos pedais da bicicleta.

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A força anímica, que nunca chegou a esmorecer por completo, estreava agora sua ascensão fazendo melhorar a minha performance e consequentemente a velocidade média.

Aos poucos e poucos fui recuperando a vivacidade e a destreza, chegando ao ponto de aventurava-me a pedalar de pé, impondo alguns “puxanços” de curta duração cada vez que enfrentava uma ligeira subida.

No entanto o entusiasmo das “puxanços” era na maioria das vezes interrompido com uma pancada seca dos meus joelhos no volante da bicicleta. Tal acontecia sempre que eu estava de pé sobre os pedais e impunha um pouco mais de binário no centro pedaleiro. Devido ao desgaste das cremalheiras, a corrente saltava levando as minhas rótulas a chocarem violentamente com a extremidade do guiador. Nestes momentos sentia-me a ficar vermelho de dor e querer explodir de raiva, no entanto acabava por me controlar e soltar apenas algumas conjugações de vocabulário, para a atmosfera.

Mesmo com um hematoma em cada joelho, eu continuava a pedalar com um estranho mas conveniente ânimo que, mais uma vez, fazia-me lembrar os dias passados no interior Angolano.

Pedalava com a agradável impressão que todo e qualquer obstáculo que pudesse surgir, não seria suficientemente grande para me fazer parar (agora que tinha a roda traseira reparada).

Ao mesmo tempo, saboreava os quilómetros percorridos durante a etapa, como se fossem os primeiros de toda a viagem.

Sentia-me a fluír por entre as partículas de ar sem sofrer qualquer tipo de resistência aerodinâmica. As pernas desempenhavam a função para o qual haviam sido destacadas, enquanto a mente aproveitava para se concentrar noutras realidades que não a reparação de uma roda traseira.

Pouco antes da 11h00, cheguava a Nampevo, a vila onde planeara almoçar.

No entanto o programa não saíra como previsto. Nampevo não era mais que uma simples aldeia sem energia eléctrica, com vendedoras de vegetais em ambos os lados da estrada. Caía assim por terra, a ideia de almoçar calmamente num restaurante ou num bar à beira da estrada.

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A somar à desilusão sobre a povoação de Nampevo, viria a descobrir que a estrada alcatroada findava 50 metros à minha frente, dando-se início à picada, vulgo a “estrada má”.

Parei a bicicleta em frente ao único edifício com aspecto de estabelecimento comercial, depois do último telheiro de venda de legumes.

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O objectivo era comprar algumas peças de fruta ou bolachas que servissem de almoço. Mas após uma breve consulta ao mercado local, verifiquei que os únicos produtos disponíveis para venda eram, mandioca, batata-doce, feijão verde, arroz e amendoins.

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Produtos estes, que incompatibilizavam-se com a minha procura, levando-me a optar por almoçar 4 das minhas bananas, acompanhadas por 2 garrafas de Coca-Cola adquiridas no estabelecimento da frente.

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Enquanto saboreava o meu almoço, ia satisfazendo a curiosidade dos que se aproximavam e inundavam-me de perguntas, sem que me deixassem tempo para engolir as bananas.

As vendedoras de legumes, tubérculos e afins, tentavam (simpaticamente) vender-me algum dos seus produtos ao mesmo tempo que pediam para eu tirar-lhes uma fotografia.

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Outras deixavam-se estar na sua posição original sem se incomodarem com o alvoroço que girava à minha volta, simplesmente à espera que o dia voltasse ao normal.

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30 Minutos bastaram para que eu sentisse as minhas energias renovadas e assim poder enfrentar os 68Kms restantes até Mocuba.

Poucos metros depois de deixar Nampevo, eis que entro na dita “estrada má”.

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De facto a estrada fazia jus ao seu nome. Uma estrada de terra batida com alguns vestígios de alcatrão e muitos buracos, o que obrigava aos demais utilizadores da via a conduzirem os seus veículos, numa dança constante de um lado para o outro da estrada, a fim de se desviarem dos obstáculos.

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No meu caso específico, a situação não era assim tão negra. Teria que ter apenas algum cuidado para não me entusiasmar nas descidas e também estar em alerta com os buracos mais fundos para não partir nenhum suporte das malas, ou mesmo um aro.

Apesar da minha velocidade média baixar ligeiramente, notava com satisfação que os veículos motorizados com 4 ou mais rodas, tinham dificuldade em ultrapassar-me, tal era o estado degradado da picada.

O entusiasmo da picada fez-me esquecer da fome, que resolveu dar sinais de si poucos quilómetros depois de Nampevo. No entanto, quando a fraqueza chegou às pernas fui obrigado a iniciar um processo de racionamento do meu pequeno stock de bananas.

A procura de reforço do stock demonstrava-se completamente infrutífera, fazendo crescer exponencialmente a fraqueza nas pernas e o vazio no estômago.

Passavam poucos minutos das 14h00 quando consegui avistar Mocuba no horizonte. Pela frente ainda teria cerca de 1 hora de pedaladas, antes que pudesse sair da bicicleta e saciar a minha fome em qualquer café da cidade.

A estrada era agora de alcatrão e os quilómetros que me separavam de Mocuba poderiam ser percorridos de um modo menos fatigante para as minhas pernas.

Com o aproximar à cidade, as estradas ficavam mais povoadas com as gentes locais, dedicadas às suas tarefas diárias, tanto de carácter profissional como pessoal.

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Podia também observar várias construções de outrora deixadas à sua própria sorte ou em más condições de preservação, e onde funcionavam algumas escolas.

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Às 15h10 dei entrada na cidade de Mocuba. A cidade onde todos os caminhos se cruzam e Moçambique se abraça.

A receber os visitantes, estavam dois marcos da época colonial ainda com a cruz dos descobrimentos neles marcados.

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Debaixo da ponte que permitia a entrada na cidade, várias pessoas lavavam as suas vestes e louças. Outras, aproveitavam para tomar banho ou mesmo para brincar na água, sem grandes preocupações com a possibilidade de haver (ou não) um crocodilo por perto.

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Antes de procurar alojamento, aproveitei para dar uma volta por Mocuba. Deparei-me com uma cidade maior do que esperado e com bons sinais de recuperação urbanística. Os edifícios governamentais apresentavam a cara lavada e bem tratada. Na avenida principal, havia diversas vivendas, todas elas com claros indícios de manutenção e cuidado.

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A pensão escolhida para repousar o corpo e recuperar energias, seria a Pensão Cruzeiro. Uma pensão localizada no centro da cidade e com boa relação preço/qualidade.

De Mugulama a Mocuba percorrera 124Kms em 7h17m, dos quais 43 minutos foram utilizados para socializar, alimentar-me e para recuperar energias.

Com a chegada a Mocuba, estava assim concluído o “desvio” de 2200Kms que planeara aquando da minha estadia em Lilongwe (Malawi) – trajecto a vermelho. A rota assinalada a verde, representa o traçado mais directo de 550Kms.

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A etapa seguinte seria até Quelimane, a qual levantava algumas dúvidas se eu seria capaz de percorrer os mais de 150Kms até ao destino. Contudo, disponha de duas vilas antes de Quelimane (Namacurra e Nicoadala), onde eu poderia passar a noite, caso não conseguisse chegar ao final da etapa proposta.

Moçambique Fase II (Alto Molócué – Mugulama)

O dia amanheceu sem que eu soubesse se iria conseguir iniciar a etapa, fosse até onde fosse.

Nada estava resolvido quanto à minha roda traseira. Aguardava impacientemente pelas 8h00, hora que iria receber o telefonema do Manuel com novidades acerca do aro de 32 furos.

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Contudo, a espera tornara-se longa demais para a minha pachorra. Cerca de 1 hora antes do combinado, decidi dar início ao Plano B para que eu pudesse ter a bicicleta operacional, o mais breve possível.

O Plano B magicado na noite anterior, tinha tudo de “teoricamente” funcional. Iria passar o meu aro dianteiro (32 furos) para o meu cubo traseiro (32 furos) e na roda da frente iria aplicar o aro “novo” (36 furos) comprado ao Manuel.

A grande questão colocava-se agora na roda da frente. O aro adquirido ao Manuel não englobava o cubo dianteiro. O ajudante do Manuel não me vendia um cubo sem autorização do patrão… e o Manuel não atendia as minhas chamadas.

“Nada que não se resolvesse no mercado junto à Estrada Nacional”- pensei. Percorri a longa picada do centro de Alto–Molócué até ao cruzamento com a Estrada Nacional. Local onde havia diversos comerciantes que vendiam um pouco de tudo, inclusive peças usadas de bicicletas.

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Facilmente arranjei um cubo para o aro “novo” na banca do Manuel, após algumas palavras convincentes ao ajudante do mesmo. Para ajudar à festa, o cubo recém-adquirido não trazia as porcas de aperto do eixo, pelo qual fui obrigado a andar a basculhar todos os caixotes de material usado existente no mercado, até encontrar 2 porcas que enroscassem no eixo. A tarefa para encontrar uma ferramenta para apertar as ditas porcas, já foi de dificuldade residual, devido à abundância de ferramentas universais existentes no mercado.

O perito de bicicletas da noite anterior, apareceu na pensão relativamente cedo. Não aparentava sofrer as consequências dos abusos etílicos, muito pelo contrário, demonstrava uma energia fora do comum para concluir a operação de montagem das rodas.

Enquanto decorria a operação de armação dos raios, aproveite para passear um pouco pelo centro de Alto-Molócué.

Conseguia ver claramente a praceta que cruzara na noite anterior. Os vários edifícios que permaneciam em redor do quadrado central, possuíam as suas fachadas ornamentadas a cores vivas, com logótipos e slogans de marcas e produtos.

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Do meu lado direito, ao fundo da rua, estava o mercado dos géneros alimentares. Uma estrutura datada de meados do século passado, cercada por um muro de cimento e onde havia várias bancas no seu interior, também de cimento. O espaço deveria ser pouco dentro do recinto, pois parecia-me haver mais comerciantes e clientes em redor do muro, do que no interior.

Pouco passava das 9h00 e a minha consciência começava a concentrar-se em outro pontos, que não o mercado e as suas gentes.

O vento ainda não tinha dado sinal da sua graça, pelo que poderia avizinhar-se uma manhã tranquila. Todavia, e segundo a minha sina, assim que eu começasse a etapa, o vento haveria de aparecer.

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Numa breve inspecção a outros órgãos da minha bicicleta, analisei a folga que o desviador traseiro ostentava e observei o mísero estado em que a 2ª roda dentada se encontrava. Os dentes da cremalheira, estavam reduzidos a curtos alfinetes que não aguentavam qualquer tipo de acoplamento com a corrente. O desgaste no prato triplo, também era visível fazendo-me ponderar seriamente na troca para a corrente suplente (usada), antes que a corrente em uso danificasse completamente todos os carretos da bicicleta.

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Eram quase as 11h00 quando o perito entregou-me as duas rodas “enraiadas” e quase prontas. Um serviço feito a pensar nos “meticais” a extorquir ao branco e não na qualidade do trabalho, fez com que eu ficasse com duas rodas quase quadradas a um preço mais elevado que uma bicicleta completa do Manuel.

Valia-me a paciência e a experiência das andanças por estas terras, para explicar (em duas palavras) qual o valor que eu iria pagar pelo serviço prestado e faze-lo ver da miséria do seu trabalho.

De volta ao meu quarto (que mais parecia uma oficina de bicicletas), fui obrigado a despender um par de horas para alinhar e calibrar os aros acabados de “enraiar”.

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Por incrível que pareça, assim que coloco um dos aros na bicicleta, reparo que este está todo puxado para um dos lados, de tal modo que ficava pressionado no calço de travão.

Facilmente concluí ser o resultado de uma afinação a olho (de perito) sem ter em conta que as bicicletas tinham travões. Além disso os aros deveriam estar alinhados pelos centros dos mesmos e não por um centro imaginário que pairasse algures na mente de alguém.

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O Manuel continuava sem dar notícias. Eu não fazia a mínima ideia se o Manuel havia conseguido arranjar outro aro em Nampula ou não. Além disso o meu aro continuava à consignação, ou seja, ainda não tinha pago o material ao Manuel. Algo que poderia ser ligeiramente problemático se à hora que eu conseguisse dar início à etapa, o Manuel ainda não tivesse aparecido.

Os minutos foram passando, a paciência foi esgotando-se e a fome foi chegando.

Enquanto tentava dar uns últimos toques às afinações dos raios, apagava do meu roteiro os planos virtuais para a etapa do dia.

A distância até Mocuba era aproximadamente de 180Kms, o que teriam que ser percorridos em 2 dias. Nesta altura a questão que estava em cima da mesa, não era a de fazer duas etapas de 90Kms cada, mas sim qual a distância que ainda poderia percorrer para manter em aberto a possibilidade de chegar a Mocuba no dia seguinte.

Por vários avisos provenientes do meu estômago, constatei que as 12h00 aproximavam-se mais rápido do que o esperado. Pedi na recepção da pensão para preparem uma refeição ligeira enquanto eu tentava colocar a minha bicicleta operacional, afinando e desafinando raios de modo a colocar a roda centrada e redonda.

Acabei a almoçar um “pequeno” prato com ½ frango estufado acompanhado por esparguete e que veio contribuir (em muito) para renovar a energia cerebral, que já se demonstrava consumida.

Após o divinal almoço e uma vez os aros prontos, iniciei a fase final de toda a operação - a montagem dos pneus e os ajustes finais nos raios.

Eram as 14h00 quando finalmente dei a reparação por concluída. Pela frente tinha mais 3 horas de luz solar, o que levava o meu lado racional a indicar-me que seria melhor passar o resto do dia em Alto-Molócué e partir na manhã seguinte. Ainda mais que não tinha a certeza a que povoação iria chegar antes do lusco-fusco.

Do outro lado havia a vontade de voltar à estrada e o compromisso de chegar a Quelimane em 3 dias. Sabia que nas restantes horas de luz solar, conseguiria percorrer cerca de 60Kms. Então seria nessas proximidades que eu iria procurar um lugar para passar a noite.

Despedi-me da D. Manuela (deixei o dinheiro da roda do Manuel) e dei início à etapa às 14h20. O destino seria Mugulama, uma povoação a 63Kms de distância e que fora-me indicada pelo pessoal da pensão na hora da minha partida.

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Pouco depois encontrava-me de volta à estrada nacional que me levaria para Mocuba.

Com o problema da minha roda traseira resolvido e movido pela motivação do bom tempo, sentia-me o rei da estrada. Para trás ficavam todos os pesadelos que umas rachadelas no aro haviam causado à minha tranquila viagem. Podia finalmente concentrar-me em outras realidades que não fossem em torno de um aro. Tornava a magicar planos para voltar ao fora-de-estrada e assim pedalar pelos caminhos “menos” normais do território Moçambicano.

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No entanto manteria a rota planeada até Quelimane. Seguiria pela estrada principal (alcatroada), não só para servir de teste aos dois aros, como também para chegar à cidade de Quelimane na data programada.

O tempo estava bom e o vento não influenciava a minha prestação. A estrada bem pavimentada e quase sem trânsito permitia-me focar no único objectivo do dia. Chegar a Mugulama antes de escurecer.

 

Continuava a pedalar na tripla, jogando apenas com os carretos de trás para aliviar o esforço das pernas, sempre que surgia uma subida.

Mas nem sempre tal era possível, obrigando-me a utilizar a primeira mudança, para conseguir vencer o gradiente da estrada.

 

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Os minutos foram passando, assim como os quilómetros. Perto das 17h00 o Astro-rei iniciou o seu movimento descendente, desencadeando o processo de variação de tonalidades na paisagem envolvente, pintando de amarelo cor-de-fogo todas as vagens de capim e dando às árvores existentes, tons de verde vivo.

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Os últimos quilómetros antes de Mugulama foram percorridos já no lusco-fusco do dia e com a temperatura a baixar significativamente. Simultaneamente o meu estômago avisava-me que já não restava nada do frango estufado nem do esparguete, ingerido horas antes na pensão de Alto-Molócué.

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À chegada a Mugulama dou com uma pequena povoação à beira da estrada, desprovida de água canalizada e de electricidade. Nada que fosse novidade para mim desde que iniciei a minha viagem em Luanda. No entanto causava-me alguma surpresa a inexistência de energia eléctrica dada a proximidade a Cahora Bassa e às linhas de alta tensão.

No cruzamento da vila com a estrada principal, perguntei onde poderia comer e passar a noite. Automaticamente fui informado que a pensão estava mesmo à minha frente. Quanto a serviço de refeições, já era mais complicado visto a pensão não servir comidas e o mercado já se encontrar fechado.

Dirigi-me à pensão e aluguei um dos quartos que estavam localizados por detrás do bar.

Com a ajuda de 2 velas, instalei-me no pequeno cubículo mobilado apenas com uma cama e uma cadeira de madeira.

A janela não tinha vidros nem rede mosquiteira. O único obstáculo à entrada de insectos era uma portada construída com tiras de madeira mal ajustadas e por onde era possível enfiar os dedos de uma mão.

 

Estava visto que teria de deixar o meu “incenso anti-mosquitos” a queimar durante um tempo, com o objectivo de afugentar algumas bichezas voadoras (e não só) que insistiam em dividir o quarto comigo.

A casa-de-banho era comum a todos os quartos e era apenas uma. De decoração muito simples (tal como tantas outras visitadas ao longo da viagem), era resguardada por um velho muro de blocos e uma tela de palha. No seu interior havia apenas um buraco no chão, por onde se faziam as necessidades e por onde escorria a água do banho tomado a balde. A porta era inexistente e o alerta para saber se a casa-de-banho encontrava-se ou não ocupada era dado de forma verbal e curta. A iluminação era feita por uma das velas emprestadas pelo dono da pensão, o que fazia o simples acto de despejar água pela cabeça abaixo, num movimento de alta perícia. Em primeiro lugar para não apagar a vela com os salpicos de água, e em segundo lugar para não deixar a vela pegar fogo a tela de palha nem ao telhado de capim.

Conseguira negociar com o dono da pensão os preparativos da minha janta. Eu fornecia o pacote de esparguete e este pedia à sua esposa para o preparar. A refeição teria lugar numa das mesas do bar, iluminada por uma das velas ainda existentes.

De volta ao quarto e ainda antes de me deitar, retomei a inspecção a todos os orifícios e cantos existentes no quarto. A possibilidade do meu corpo ser terreno apetecível para um dos rastejantes ou esvoaçantes existentes no cubículo, obrigava-me a tomar cuidados extra através da queima de incenso e do uso de repelente e insecticida.

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Uma vez deitado na cama, conseguia sentir os intervalos das tábuas que deveriam sustentar o suposto estrado. Na ausência deste, restava-me adormecer sem me mexer muito, para não correr o risco de passar por entre as tábuas e ser engolido pela cama.

Assim que chegou o meu silêncio, chegou também o barulho de grandes correrias. Correrias de seres ligeiros que para se deslocarem poucos metros, eram obrigados a dar dezenas de passos – ratos.

Desde Caiaza (em Angola) que não adormecia ao som do corre-corre e dos distúrbios de ratos. No entanto desta vez os ratos estavam algures dentro das paredes e por cima do tecto do quarto. Corriam para trás e para a frente sobre o forro do tecto, sem o mínimo cuidado com o barulho.

Conseguia ouvi-los a correr ao longo do interior da parede do quarto e a mudar de “piso” na esquina do mesmo. Seguidamente voltavam ao mesmo sítio mas pelo “corredor” inferior…e andavam assim sucessivamente em correrias à volta do cubículo.

Antes de conseguir adormecer com tal chinfrim, realizei mais uma inspecção aos cantos do quarto e verifiquei se todos os meus pertences estavam fora do alcance das pequenas criaturas.

Estava tudo em conformidade. Nada indicava que estes haviam conseguido permissão para invadir o meu habitáculo.

De Alto-Molócué a Mugulama, percorrera 63Kms em 3h20m.

O destino para a próxima etapa seria a cidade de Mocuba.