Ainda não eram as 7h00 e eu já estava em frente à jante de camião (entenda-se, fogareiro), à espera que a água fervesse.
Preparava-me para cozinhar o meu pequeno-almoço. Cerca de meio pacote de esparguete com duas sardinhas enlatadas.
Certificara-me com o dono da pensão acerca da estrada para Sioma e qual o seu estado. A resposta foi a que eu esperava – “Sais da pensão e viras à direita…”, ou seja para Sul.
As minhas suspeitas do dia anterior estavam confirmadas. Pelo menos o início da estrada seria areia solta. No entanto mantinha a expectativa que o cenário melhoraria, uma vez que tornei a ouvir a expressão “…very fine gravel road…”.
Pequeno-almoço tomado e bagagem aparelhada na bicicleta, estava na hora de iniciar a jornada. Dirigi-me para o meio da estrada, verifiquei que horas eram e mirei para Sul. Eram as 8h45 e pelo menos durante 5 minutos presenciei o fundo da estrada numa tentativa de ver até onde ia a zona “pavimentada” a areia… Iniciei a pedalada…
Não foram necessários 5 minutos a tentar pedalar na areia para eu suspeitar que o dia não ia ser fácil. No entanto permanecia na constante esperança de encontrar o troço de “… very fine gravel road…” que todos referiam.
No estado em que a estrada estava, era impossível conseguir pedalar. A única solução era arrastar a bicicleta à mão pelos trilhos delimitados.
A etapa de hoje seria até um parque de campismo 10kms depois de Sioma, que pelas minhas contas corresponderia a uns 40kms de Nangweshi. Previra cerca de 3 horas para perfazer o percurso, mesmo considerando que a estrada não estivesse nas melhores condições. No entanto nada fazia prever que eu iria arrastar a bicicleta (mais os seus 30kg de carga), durante quilómetros por uma estrada “… very fine gravel road…”
Nas zonas em que era possível montar na bicicleta e pedalar, tentava inutilmente recuperar algum do tempo perdido. O uso de “pedais-de-encaixe” permitiam-me optimizar a pedalada e consequentemente conseguir com que a bicicleta progredisse no meio do areal. No entanto teria que tomar atenção redobrada para evitar que eu acabasse estatelado no chão devido a não conseguir tirar os pés atempadamente dos pedais.
A condução com areia solta era custosa e imprevisível. O tormento dado gratuitamente às pernas em nada era compensado pelo avanço na etapa, além que a qualquer momento, a roda da frente saracoteava desenhando serpentes na areia solta e acabando quase a 90o com o quadro da bicicleta.
Era então o momento para pôr os pés no chão para não cair, recuperar fôlego e passar alguns minutos a dizer mal da minha sorte e do “…very fine gravel road”.
Dava por mim a tentar perceber o que é que me escapara… que parte da frase é que eu não tinha entendido… “… very fine gravel road…”
Todos disseram que agora a estrada estava boa e que se passava bem.
Seria que antes a estrada estava pior? Teriam os meus informadores a noção que uma bicicleta não é um 4X4? Ou seria apenas um mal entendido e na gíria local, “…very fine gravel road…” significava “estrada de areia muito fina…”?
Fosse qual fosse a resposta, eu teria que empurrar/puxar a bicicleta como podia. Ora com as duas mãos no volante, ora com apenas uma mão, enquanto a outra mão puxava a bicicleta pelo selim numa tentativa de evitar que a roda de trás se enterrasse.
Apenas uma parte de todo o esforço aplicado à bicicleta era reflectido no avanço da mesma. A outra parte destinava-se a segurar e manter a bicicleta numa posição direita. Para isso fixava o guiador ligeiramente curvado para o meu lado, a fim de evitar que esta se afastasse do meu corpo.
A parte mais inglória era sentir os pés a enterrarem-se na areia cada vez que aplicava força para a bicicleta mover-se.
Estava completamente exausto e nem a constante presença do rio Zambeze à minha esquerda fazia com que o dia parecesse bonito.
De repente vi ao longe as antenas das operadoras de telemóveis. Era sinal que estava a chegar a Sioma. Fez-se ânimo. Quase 4 horas depois da saída de Nangweshi e alguns quilómetros a carregar a bicicleta, iria finalmente poder descansar e saciar a minha fome e sede. Acreditava que o pior já tinha passado e que de Sioma para a frente, a estrada estaria em melhores condições. Assim sendo eu poderia chegar ao parque de campismo ao início da tarde. No entanto e devido à fadiga que o meu corpo acusava, caso encontrasse uma pensão em Sioma, aproveitaria para passar a noite ali mesmo.
Desde que avistei as antenas até eu entrar na vila, passou-se quase uma (interminável) hora. Quando tudo parecia estar à distância de um braço, surgia mais um troço de areia solta, ou mais uma subida ou mais uma fraqueza… ou mesmo tudo junto.
Entrei em Sioma às 13h05 e rapidamente apercebi-me que teria que continuar para o parque de campismo para passar a noite. Não havia nada em Sioma, apenas meia-dúzia de casas de um lado e de outro da estrada fazendo parecer uma cidade fantasma do Farwest.
Dirigi-me à única loja que vendia bebidas frescas e perguntei se serviam refeições. Responderam-me que não. No entanto poderiam preparar um bocado de nshima, caso eu quisesse. Preferi a solução nº2 que era comprar 2 ovos, pedir para estrelar e come-los com pão adquirido na padaria do outro lado da rua.
Depois de Sioma, a estrada em pouco melhorou. Tinha mais troços onde poderia pedalar no entanto a areia solta, continuava bem presente.
Passei pela entrada do “Sioma-Ngwesi National Park” e decidi parar para tirar umas fotografias às quedas de água.
Ideia rapidamente abandonada quando o oficial no dever me pediu US$20 só para ver as cascatas.
Às 15h50 encontro a placa que tanto ansiava nas últimas 7 horas. A indicação da cortada para o parque onde iria acampar e descansar.
Avancei pelo acesso fora, cheio de ânimo e com a ideia que a etapa do dia estava cumprida.
Todavia, não podia estar mais errado.
Poucos metros depois, eu já estava a levar a bicicleta à mão devido à muita areia existente no trilho. Continuava a dizer mal da minha vida e do inteligente que resolveu montar um parque de campismo num lugar sem estrada de acesso. Seria possível não ter pensado que nem todas as pessoas têm um veículo 4X4?
Curva após curva, subida após subida, olhava em frente até onde a vegetação me permitia ver, sempre com a ansiedade de encontrar a placa a dizer “Wellcome to Thebe River Safaris Camp Site”.
Estava tão cansado que nem me passava pela cabeça a questão dos elefantes, tal como um dos apologistas da “…very fine gravel road…” havia-me advertido.
Arrastava a bicicleta há mais de 40 minutos desde que saíra da estrada principal, quando avistei um sinal no meio da vegetação. Tudo indicava que estava no caminho correcto.
Exactamente 60 minutos após ter visto a indicação “Thebe River Safaris” na estrada principal, eu chegava ao local do parque de campismo e da pensão…
Ou melhor… chegava ao local onde estes deveriam estar…
Não havia nada à minha volta a não ser umas mesas e uns bancos feitos de troncos de árvore… Mais nada… Nem uma torneira, nem uma luz… nada, nada, nada… Por alguns minutos fiquei paralisado só a olhar. Estava esgotado. Não tinha forças para ter um ataque de fúria nem desatar a berrar no meio do mato. Só pensava que por causa de uma tabuleta colocada onde não deveria estar, eu tinha arrastado a bicicleta por mais uma hora extra.
“Se fosse para acampar no meio do nada, tinha ficado acampado na berma da estrada principal” – pensava eu. Além que agora teria que arrastar a bicicleta por mais uma hora de volta à estrada principal… quer isso fosse hoje ou no dia seguinte.
À medida que ia recuperando o fôlego e apercebendo-me o que uma placa mal posta tinha-me feito passar, o sangue ia fervendo e os olhos raiando. Só me apetecia partir o sinal na cabeça de quem o colocou e de quem o mandou colocar naquele lugar.
Antes que eu cometesse alguma loucura, apareceu um jovem para me ajudar. Disse-me que havia um outro parque de campismo uns quilómetros ao lado. Para lá chegar, teria que voltar à estrada principal, em seguida continuar para sul uns 4kms e quando visse a placa de “Sioma Camp” deveria cortar à esquerda para a estrada de areia. “Outra vez?”
Eram as 17h00 e a solução proposta pelo meu novo amigo, para mim não era solução. Simplesmente porque teria que arrastar a bicicleta durante mais uma hora até à estrada principal, para em seguida enfrentar cerca de 5kms que não sabia em que estado poderiam estar. Tinha pouco mais que uma hora de luz solar, por isso a opção a escolher teria que ser rápida e concisa.
Insisti pelo trajecto alternativo. Sabia que havia corta-matos que poderiam poupar a estrada de areia que eu já havia feito e encurtar a distância.
Surpreso pela minha insistência em seguir pelos caminhos pedonais utilizados pela população local, o meu novo amigo decidiu-se a levar-me até ao primeiro cruzamento.
Uma vez no local, explicou-me que era sempre a direito e que o parque de campismo era “já ali à frente”.
Seguia por um trilho estreito e repleto de ramagens secas, que me arranhavam a pele das pernas para depois partirem-se nos alforges da bicicleta.
Um par de quilómetros mais à frente, deparo-me com algo para o qual não estava preparado.
Uma rotunda… no meio do mato!
O meu amigo disse-me para seguir sempre em frente, mas não referiu nada acerca de uma rotunda. Decidi poisar a bicicleta e ir averiguar o local.
Após alguns passos nas duas saídas possíveis, reparo que no centro da rotunda havia uma tabuleta caída.
Tal como nos filmes, coloquei o sinal de volta à sua posição original e segui na direcção indicada.
Mais uns quilómetros pelo meio do mato através de trilhos em que só passava uma pessoa de cada vez e chego à estrada de acesso para o “Sioma Camp”.
“Sioma Camp” era um complexo de Ecoturismo situado nas margens do Zambeze e gerido pelo Hans Aaskov, um dinamarquês a viver na Zâmbia (www.siomacamp.com).
Após apresentações, Hans mostrou-me o lugar onde eu poderia montar a minha tenda. Em seguida convidou-me para jantar com ele e com um casal amigo que se encontrava hospedado no Sioma Camp.
Uma vez à mesa, tive que controlar novamente o meu apetite sequioso. Apenas servi o primeiro prato e pouco depois repeti… no entanto mais tarde, acabei por rapar o tabuleiro de tal maneira que se não fosse pelas marcas de azeite, poderia dizer que não tinha sido utilizado para assar as batatas.
Havia sido o dia mais improdutivo de toda a viagem.
Foram apenas 57kms percorridos num total de 9h18m, das quais:
- Pedalei durante 3h59m para perfazer 48kms;
- Arrastei a bicicleta durante 2h41m, pisando e calcando areia num total de 9,2kms;
- Recuperei o batimento cardíaco num total de 1h50m;
- Almocei em 48 minutos;
Teoricamente, na manhã seguinte faria um mês desde que saíra de Luanda.
Este relato é empulgante . Digno de um "Indiana Peter " ...... Não é difícil imaginar as situações descritas , mas é difícil imaginar quais seriam as reacções se me visse numa situação dessas ! !
ResponderEliminarForça !
Ângelo
Olha lá: Os gajos têm uma certa razão em afirmar "very fine gravel road", pois há muitas praias por este mundo afora que dariam "o rabinho e 5 tostões" por uma areia tão boa como esta!!!
ResponderEliminarGrande abraço
Carlos Miguel
hey pedro muito ánimo en tu travesía por zambia, estamos esperando tus próximos reportes de tus aventuras, mucha fuerza y saludos desde Barcelona
ResponderEliminarEstava a ver que não……. Os teus amigos do facebook já estavam a pensar destacar meios para ir em teu auxilio! Estavas há tanto tempo em silencio que já estávamos a desanimar , afinal a questão era somente “areia de mais para a tua bicicleta”…. Um abraço do João e família.:)
ResponderEliminarPedro... não imagino nem um bocadinho esta provação... a força tem de ser realmente muita para sozinho no meio do nada não desesperar... é realmente o AVANÇAR que impera... o que gostei mais foi ter aparecido ALGUÉM para te indicar o caminho alternativo... :)
ResponderEliminarUm beijinho... FORÇA...
PS: O pai Toni e a mãe Sãozinha pediram-me para te enviar um beijinho... estão a torcer por ti e muito orgulhosos...
Não tinha ficado com a noção da penosidade, quando falámos.
ResponderEliminarMas isto só confirma a sua determinação e vontade.
Mas as etapas de 1x1 (2 pernas) já pertencem a um passado quase longinquo. São os imprevistos de uma Áffica profunda mas bela.
Um forte abraço
Fernando Jorge
Do not forget: In Zambia very fine gravel road = caminho de areia LOL
ResponderEliminarForça aí, apesar dos azares tudo se resolve da melhor maneira!;-)
Beijinhos
Ana Roma
Já estou a ver que a Zambia é uma prova de fogo à tua paciência!
ResponderEliminarEste sioma parque parece ser impecável, só é pena ser no cú de judas... e então a ementa? De certeza que não foi o habitual?
Beijocas enormes e tudo de bom.
My good friend, vejo que andas bem, tens areia mais fina que nós aqui em Luanda na praia.
ResponderEliminarContinuação de uma boa viagem e continua a dar notícias.
Força Indiana Fontes.
Abraços
A mais distante meta é atingida por quem tem uma sábia esperança.
ResponderEliminarPara encontrar o caminho, não importa tanto onde se esteve, mas sim aonde se quer chegar.
Força Ai, Indiana Fontes (gostei dessa)!!! ;)
Beijinhos
Sónia "Sacra"
Quase fiquei sem fôlego!Segui este dia em suspense! És incrível! TITI
ResponderEliminarÉs um granda cromo.
ResponderEliminarDito por quem sabe!
A pedalar desde 1972
2tempos
Vasco Azinhaga