“Apenas” 142kms e talvez 8 horas me separavam de Saurimo - o primeiro ponto onde tinha planeado descansar.
Aproveitei a simpatia do cozinheiro da Sinergia para pedir um pequeno-almoço substancial, iria precisar do máximo de energia para chegar a Saurimo. Esta era a etapa mais longa desde o início da viagem e eu sentia as pernas a fraquejar mesmo antes de me colocar em cima da bicicleta.
Antes da partida, ainda tive direito a uma visita às instalações do Tozé Salufuma, a duas t-shirts e a sessão de fotos.
Arranquei perto das 8h00 não sem antes ir ao posto da Policia comunicar que estava de partida. Os primeiros metros foram passados a estudar a meteorologia local. O céu estava a escurecer e o vento estava a levantar, o que fazia suspeitar que eu ainda iria usar o impermeável hoje.
Logo desde as primeiras pedaladas que as pernas fizeram questão de assinalar o seu cansaço no entanto a motivação era maior e facilmente superava qualquer tipo de mau estar. Seguia uma vez mais ao som do meu iPod, numa estrada calma e com alguns altos e baixos.
Com a proximidade a Saurimo parecia que as aldeias brotavam ao longo da estrada, talvez espaçadas de 10 a 15 kms. Por volta das 9h30 passei a ponte sobre o rio Cuilo. Mais uma ponte destruída pela guerra e agora em reconstrução.
Dizia a regra que em cada vale existe um rio… e em cada rio existe uma aldeia… e nesse rio há sempre alguém a lavar a roupa, a lavar a loiça ou mesmo a tomar banho. Até agora não tinha havido excepções, à falta de água canalizada as pessoas fazem as suas lides de casa no rio.
Muitas das vezes os usuários das margens do rio nem sequer davam pela minha passagem, ou quando se apercebiam, já era tarde. Eu já tinha passado.
No entanto, nas aldeias a situação não funcionava desta maneira. Bastava que uma criança soltasse o mote sobre o branco que passava de bicicleta, para que dezenas de outros miúdos aparecessem de todos os cantos, a correr para a estrada numa tentativa de acompanhar-me o mais que podiam. Corriam descalços sobre o alcatrão mais depressa que algumas vez eu correria com as melhores sapatilhas.
Gritavam “Chinês,…chinês,…chinês…”. Nunca entendi o porquê de me chamarem chinês. Será que só os chineses é que andam de bicicleta? Ou será devido aos óculos escuros que não lhes permitem ver que eu não tenho os olhos rasgados?
A comunicação com esta nova geração, era um pouco complicada. Não era comum encontrar quem falasse português. Apenas os mais crescidos é que soltavam algumas palavras, os restantes falavam o dialecto local.
Ia parando de hora a hora para esticar os músculos e para comer qualquer coisa. Continuava a bolachas, pois as bananas acabaram logo pela manhã.
As borboletas do dia anterior continuavam a seguir-me poisando sobre a bicicleta sempre que eu parava na berma da estrada.
A paisagem mudara ligeiramente. Deixava de estar em zonas predominantemente de mato, para passar a estar em zonas onde prevalecia a savana. Era uma paisagem algo semelhante ao nosso Alentejo em época de chuva, ou às paisagens do National Geographic com as suas manadas de búfalos e com leões sempre presentes. Pessoalmente optei pela primeira comparação.
Seguia animado e motivado. Estava a andar mais rápido que o previsto. Sempre que quisesse impor um ritmo mais forte (mas por um curto período), as pernas correspondiam bem. No entanto esta situação era anormal, o organismo andava a acusar o cansaço e a prestação conseguida durante o dia de hoje vinha maioritariamente da mente e da excitação de chegar a Saurimo. Por vezes o andamento baixava momentaneamente devido à sensação estranha de parecer que eu tinha os pés dentro de dois blocos de cimento. Era o desgaste muscular a dar sinais. Comia mais duas das minhas bolachas de chocolate como se fosse a poção do druida do Asterix e as pernas voltavam a dar para mais uns quilómetros.~
Ao longo da estrada estavam pintados em forma de tortura, os quilómetros restantes até Saurimo. Era angustiante ser constantemente recordado dos quilómetros remanescentes até ao destino, principalmente quando essa distância trasladada para unidades de tempo traduzia-se em cerca de 3 horas a pedalar.
Afinal não choveu e as nuvens deixaram que o sol Angolano viesse tostar um pouco a minha cabeça que andava ocupada com o balanço de 10 dias na estrada.
Meditava sobre qual o trajecto a seguir após Saurimo. Todas as opiniões que eu escutara até hoje eram que a estrada para Luena estava intransponível e que a solução seria ir à volta pelo Luau. A acrescentar às condições da estrada (que não me faziam grande confusão), teria o factor “vida selvagem” e por isto entenda-se… Leões. Mas enfim, a busca da melhor alternativa para entrar na Zâmbia seria algo que iria certamente ocupar-me em Saurimo.
No meio das minhas navegações espirituais concluí que a viagem até Saurimo tinha sido bastante acessível e fácil. Nunca tive nenhum tipo de problema, andava bem alimentado, nunca precisei de cozinhar, tinha tomado banho todos os dias e dormira sempre em lugares seguros, as pessoas eram simpáticas e hospitaleiras. De Saurimo para a frente é que iria dar que falar. Muito pouca gente tinha circulado na estrada de Saurimo para Luena e praticamente ninguém havia seguido para sudoeste de Luena. As informações sobre o provável ponto de entrada na Zâmbia eram muito escassas, o que despertava ainda mais a minha curiosidade de lá chegar. O único receio que tinha era o tal factor denominado por “vida selvagem”. De resto tudo se resolveria.
Não tenho quem tire fotografias à minha viagem, por isso acho que estou a ficar profissional em tirar auto-fotos,.. mesmo estando em cima da bicicleta.
Os 10 dias a pedalar em Angola permitiam-me fazer uma pré-avaliação de Angola e do seu povo. Angola é um país em reconstrução depois de décadas de guerra. É bem visível o esforço do governo, e dos angolanos em geral, para levantar o país e implementar condições ao melhor nível.
O povo é simpático e acolhedor, principalmente fora dos centros urbanos e em faixas etárias acima dos 50 anos de idade. Estão sempre disponíveis em colaborar com informações e demonstravam nos seus sorrisos e nos seus olhos o orgulho de ver um português de bicicleta a passar pela aldeia deles. Contavam histórias do antigamente, faziam mil e uma perguntas sobre o motor da bicicleta e se este era a gasolina ou a diesel (Eu respondia que era a funge, a bananas e a bolachas de chocolate). Questionavam inúmeras vezes quantos pneus havia utilizado de Luanda até agora e esbugalhavam os olhos acompanhado de um “Xiiiiiiiiii!!!!” quando eu lhes dizia que ainda eram os pneus originais. Alguns já me tinham visto na TPA e orgulhosamente respondiam na minha vez às questões levantadas pelos restantes… mesmo quando não sabiam a resposta.
As autoridades apoiavam sempre com as melhores sugestões e palavras de apoio. De um modo geral eu sentia que havia um orgulho nos angolanos em demonstrar que o seu país era seguro e que os tempos de guerra faziam parte do passado. Para isso, nada melhor que um estrangeiro passar sozinho de bicicleta pelas estradas do interior do país, onde a guerra havia sido mais sentida.
Estava a cerca de 20kms de Saurimo e levava já 7 horas de viagem desde que deixara Cacolo. Continuava motivado e ansioso o que fazia-me esquecer da condição física do corpo. Durante todo a dia havia descansado apenas 40 minutos de acumulado mas o facto de saber que Saurimo estava apenas a 1 hora de distância não permitia mais paragens. A ansiedade era agora quem dominava todos os músculos utilizados para pôr os pedais a rodar, mesmo tendo que pedalar de pé para alívio das zonas de apoio ao selim.
Antes de entrar em Saurimo ainda fui contemplado com uma boa subida debaixo de um sol convidativo, que encarei como o derradeiro teste à adrenalina que percorria as minhas veias.
Em Saurimo, rapidamente fiquei rodeado de motorizadas que acompanharam-me a apitar sinfonias com as suas sirenes automáticas, tipo cortejo de casamento. Pelos vistos já estavam avisados da minha chegada, ou através da rádio ou através de outros automobilistas. Os frenéticos jovens motociclistas andavam à minha volta num delírio constante. Ora ultrapassavam-me ora travavam a minha frente para que eu passasse, sem se importarem minimamente com a segurança deles ou com a minha. Não interessava se vinha carro de frente ou de lado, a estrada era deles e o meu objectivo era passar no meio das motorizadas sem raspar com os queixos no chão. O som das buzinas atraía ainda mais curiosos para o meio da estrada o que fez a minha entrada em Saurimo parecer um jogo de computador do ZX Spectrum. Subitamente reparo que atrás de mim vem uma carrinha com um operador de camera da TPA. Isto estava a ficar interessante.
Dirigi-me para as instalações da Toyota em Saurimo, propriedade também do Tozé Salufuma, onde fui recebido pelo Gonçalo Sérgio (gerente da Toyota) e pelo Paulo Matos (direcção da Mota-Engil em Saurimo). Apresentações e agradecimentos consumados, seguidos de uma entrevista para a TPA e fui conduzido ao meu novo quarto.
Esta era a terceira noite em que eu iria usufruir da hospitalidade e acolhimento do Tozé Salufuma e do Gonçalo Sérgio.
Tinha chegado a Saurimo na sexta-feira 9 de Abril de 2010, 10 dias depois de iniciar a minha viagem de bicicleta em Luanda.
Para trás ficavam:
Kms percorridos: | 960kms |
Tempo Total: | 68hrs e 08mts |
Tempo em Movimento: | 53hrs e 18mts |
Velocidade Média: | 18km/h |
Média Diária: | 96kms/dia |
Total de Banhos: | 10 |
Banhos de Chuveiro: | 4 |
Banhos de Caneco ou Balde: | 5 |
Banhos a Toalha Molhada: | 1 |
Banhos de Água Quente: | 1 |
Média de Água/dia: | +/- 5,5 litros |
Refeições de Funge: | sem conta… inúmeras |
Noites em Tenda: | 3 |
Agora era tempo para repousar as pernas e passar uns dias em Saurimo a recolher informações para a nova fase do trajecto em território Angolano e qual a fronteira de entrada na Zâmbia.
Gostei do teu relato , embora já tenha informação posterior por sms . Vê se consegues trazer dessas bolachas milagrosas ....A estatística é completa !
ResponderEliminarSempre acreditei que é possível voar . E porque não atravessar Àfrica de bike ?
Abraço e continuação de força anímica.
Ângelo
Epá!!!!
ResponderEliminarO que é que te posso dizer... sem ser malcriado!!!
Força aí!!!
Carlos Miguel
PS.: Quando tiver oportunidade digo-te todas as asneiras que me apetecia dizer!!!!
Grande Epopeia...
ResponderEliminarSe sobreviveste ao Binda o resto do percurso tambem se fará.
Força!
Grande Pedro,
ResponderEliminarTemos seguido a tua fantástica aventura africana, através dos teus saborosos e completos relatos.
Boa sorte para o resto da viagem.
A receita para a força nas pernas já a conheces(bananas+funge+bolachas de chocolate)!
Celso
PS - Na estatística o nº. de refeições correcto são 11!
Antes de mais, parabéns e votos de grandes sucessos !!!
ResponderEliminarSubir o Binda, até de GMC era dificil !!!!!!!!!!!!!!!! e no Dondo
os mosquitos!!!!!!!!!!! Já passou............zP