Angola-Últimos Dias III (Luvei – Lumbala N’Guimbo)

 

O dia começou às 5h30 quando bateram na janela do meu quarto. Era sinal que o carvão estava pronto e ateado para ferver a água que utilizaria para cozer o meu esparguete instantâneo com sabor a galinha. Ao esparguete juntei 3 bananas como sobremesa que tinham sobrado dos dois cachos que comprara no dia anterior.

Esperavam-me 130kms de uma estrada que não conhecia o estado. As gentes locais diziam que havia bocados sem estrada mas que conseguia-se passar bem. Não teria qualquer tipo de problema nem com a estrada nem com a fauna local… desde que não andasse à noite.

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Antes de dar inicio às pedaladas do dia, resolvi passar na vendedora de bananas e comprar mais um cacho para a viagem. Teria um longo dia pela frente e não saberia onde poderia encontrar a próxima refeição. Planeara almoçar em Lutembo, mas correria o risco de não encontrar nenhum estabelecimento que servisse refeições, tal como já acontecera antes.

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Pouco passava das 7h00 quando iniciei a etapa, o que me permitia sonhar com a chegada a Lumbala N’Guimbo em tempo útil.

Sete minutos decorridos e eu já adivinhava que o dia seria difícil e custoso. A teimosia das pernas doridas impedia que fluísse com a ligeireza esperada.

Não pedalei mais que uma hora para que o vento até então inexistente, se fizesse sentir de forma notória e frontal… para não variar.

O estado da estrada com mais de 30 anos, piorara um pouco. Os vestígios de asfalto davam agora lugar a terra batida e alguns buracos que no entanto não dificultavam em muito o meu avanço. A principal dificuldade era sem dúvida o vento.

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Era facilmente perceptível que havia chovido na noite anterior. O cheiro a terra molhada que me invadia as narinas não deixava dúvidas e umas dezenas de metros depois, a confirmação sobressaiu numa das bermas da estrada.

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A etapa continuava agora algo monótona. Não se via nada nem ninguém… apenas a savana e algumas carcaças de veículos abatidos durante a guerra.

 

Tentava manter a mente ocupada com qualquer coisa para que o inconsciente deixasse de focar o factor “National Geographic”, evitando assim o nervosismo miudinho que me percorria as veias. Ainda faltavam mais de 5 horas até Lumbala N’Guimbo e teria que viver com esse sindroma durante o resto da etapa.

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A solução saudável era a de manter a mente a rasgar cenários hipotéticos ao som da música do iPod que por sua vez impunha o ritmo às minhas pernas. E se algum leão tivesse que aparecer, ao menos que fosse de frente… Assim poderia ter tempo para tirar umas fotografias e se calhar fazer um filmezinho.

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No meu plano inicial, eu passaria para a Zâmbia pela fronteira de Mossuma, cerca de 70kms para Este de Lumbala N’Guimbo. A trajectória seria aproximadamente mantida, mas o tipo de transporte teria que ser alterado (fluvial). Ainda permanecia na expectativa de encontrar a estrada para Mossuma num estado algo transitável, mas se tal não fosse o facto, teria que subir num barco e aproveitar o dia da viagem para descansar. A jornada de barco poderia ser até Mongu (Zâmbia) dependendo se as estradas do outro lado da fronteira estariam ou não submersas. Neste caso a minha viagem poderia durar 20 horas, o que daria tempo suficiente para relaxar as pernas, descansar ou até mesmo actualizar a escrita.

As pernas estavam aDSCF2925 tolerar o esforço do dia, talvez movidas pela excitação de estar numa das zonas mais remotas de Angola, onde o alcatrão havia dado lugar à terra vermelha aromatizada  e onde as pontes eram agora de madeira.

 

 

DSCF2929A savana predominava na paisagem contracenando com o azul do céu, enquanto os rios continuavam a fluir para Este com as suas águas translúcidas.

 

Ao longo destes dias a DSCF2887viajar sozinho, aperfeiçoei a minha capacidade de tirar fotos em andamento e os “auto-retratos” à distância de um braço. Era uma das únicas maneiras de eu aparecer nas fotografias e provar que tinha estado “lá”.

 

A outra solução seria a DSCF2894utilização do pequeno tripé e do modo de “disparo automático”.

Devido ao peso que trazia sob a roda dianteira, a condução sem ambas as mãos no guiador era sinónimo de pontos nos queixos.

 

A minha chegada a Lutembo não poderia ter sido em pior altura. Estava a decorrer um celeuma derivado da embriaguez de um ou mais indivíduos que haviam abusado dos pequenos pacotinhos de whisky. Para meu azar a balbúrdia decorria no único local onde eu poderia comprar uma Coca-Cola ou comer qualquer coisa.

Decidi por bem, prosseguir viagem e almoçar o que tinha disponível, ou seja bananas e bolachas de chocolate.

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DSCF2965Estava a percorrer aquele que seria o último troço em território Angolano o que me fazia reflectir nos 22 dias e mais de 1500kms passados desde o início da viagem, reflectir nos dias que ainda estavam para vir e reflectir nos dias antecedentes a tudo isto. Refletir nos tempos em que um dia me propus a fazer esta viagem, os seus preparativos, lutas, dúvidas, sonhos etc.

Nunca havia estado em Angola antes e de repente tinha mais de 1500kms percorridos pelo interior do país em cima de uma bicicleta e em modo solitário. Passara por zonas que alguns diziam que nunca iria conseguir ultrapassar. Estive em aldeias e vilas onde os mais velhos me disseram “Estes jovens nunca viram um branco…”.

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Não havia nenhum Adamastor do Mato depois de Luena. Havia simplesmente aldeias e populações tal como as que passara antes de Luena. Havia estrada transitável contrariamente ao que diziam os cépticos… e até ao momento não havia qualquer tipo de animal… Já afirmava o Fábio de Luena – “Não tem nem passarinho… eles comeram tudo”

Sabia que podia não chegar ao destino que me propusera chegar (pelas mais diversas razões), mas uma coisa já era certa: cheguei onde alguns disseram que nunca chegaria… e isso era como “nitro” para as minhas pernas.

Lembrava-me das palavras ditas por algumas figuras que conheci em Luanda, em que referiam não haver estrada transitável depois de Saurimo e que eu nunca chegaria a Luena… quanto mais pensar em chegar a  Lumbala N’Guimbo. Palavras essas proferidas principalmente por gente, que por viver e trabalhar em Luanda (uma cidade cosmopolita), achava-se radical, aventureira e conhecedora da realidade Africana. DSCF2918Inventavam situações, falavam de guerrilhas, criavam mitos e difuculdades inexistentes. Gente que se esconde por detrás de um frontispício de personalidade e numa tentativa de encobrir as suas frustrações decidia por agoirar os sonhos de outros.

Os 7 litros de água do rio que transportava para beber, parecia que não chegariam para o dia todo e mesmo estando a pouco mais de uma hora de Lumbala N’Guimbo não podia dar-me ao luxo de saciar a minha sede com a água que me restava nas garrafas. Circulava agora em modo “lei seca”.

 

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A chegada ao destino final deu-se perto das 15h20. De Luvei até Lumbala foram 127kms percorridos em 8h15m . Como já era hábito dirigi-me ao edifício da administração (onde já me esperavam), para informar da minha chegada e para ser identificado. Fui saudado pelos diversos funcionários da Administração local, onde no meio das perguntas habituais uma sobressaiu das outras todas: “Não viu leão? Tem leão mesmo, lá atrás no Lucusse!”

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Mais uma vez procurei informações sobre a estrada para Mossuma, agora com os habitantes locais. Confirmava-se que a estrada estava submersa e que a única altura do ano em que se conseguiria passar eram os meses de Setembro a Novembro, aquando do final da época seca e antes do início da próxima época das chuvas. A única alternativa para passar para a Zâmbia era de facto por via fluvial.

Restava agora saber como era esta questão de apanhar o barco para a Zâmbia. Seria preciso reservar lugar ou comprar bilhete com antecedência? Quais eram os horários? Havia transporte todos os dias ou só alguns dias da semana? Havia algum barco no Porto de Lumbala N’Guimbo? Quando partiria? E onde era o Porto de Lumbala N’Guimbo? Onde carimbaria o passaporte para a saída de Angola?

Instalei-me numa das DSCF2978pensões existentes na Vila e fui procurar resposta a todas as questões que pairavam na minha mente.

Antes de todo o processo, teria que satisfizer o meu vicio por refrigerantes (com gás e açúcar) que aumentava de dia para dia.

O Porto era a 9kms da Vila e ao que parecia, havia chegado um barco durante a noite que era suposto partir na manhã seguinte.

Facilmente arranjei uma boleia de motorizada até ao Porto para obter as restantes informações e reservar o meu lugar. Aproveitaria para tomar o meu banho e lavar a roupa no rio, pois a pensão não tinha água.

Depois de 9kms montado numa motorizada que pouco mais rápido andava que a minha bicicleta, eis que chego ao Posto Fluvial de Kayawe. Assim que saí-mos da estrada principal e descemos a pequena picada que nos levaria ao cais dou de caras com o barco que me transportaria até à Zâmbia numa viagem de mais de 16 horas.

Lá estava ele imponente e magnificamente atracado num dos embarcadouros. Chamava-se “True Colour Coach” e em principio a embarcação regressaria à Zâmbia na manhã seguinte.

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Rapidamente fiquei amigo dos funcionários da Alfandega e dos funcionários da Imigração, que na manhã do embarque, me ajudariam a inserir a minha bicicleta a custo zero no preço do meu bilhete de viagem para a Zâmbia. Um bilhete que seria cobrado em USD (nada barato), mas onde tentaria negociar e pagar o equivalente em Kwanzas.

Estava na hora da lavagem da roupa e do banho no rio.

Enquanto me aventurava um pouco mais além da margem ouço “Não vás praí que tem jacaré!”… decidi voltar para a margem e nem 2 segundos depois ouço “Cuidado que aqui tem sanguessugas!”….

“Há mais alguma coisa que eu deva saber acerca deste rio?”- Perguntei intrigado, limitando-me a chapinhar nas margens e a lavar a roupa perto dos outros.

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De regresso à pensão cozinharam-me uma panela de arroz por especial favor, pois não existia serviço de restaurante. O meu apetite voraz continuava a deixar-me embaraçado por isso achei melhor jantar sozinho na sala que outrora fora uma sala de refeições em detrimento de sentar-me na sala principal onde regressaria mais tarde para passar o serão com o resto dos clientes.

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Amanha seria outro dia, mas desta vez sem grandes pedaladas. Apenas a deslocação até ao Porto de embarque… o resto seria feito de barco.

Preparava-me para passar a minha última noite em Angola…

12 comentários:

  1. Pedro,

    mando muito respeito, não por chegares ao fim de Angola, mas por cumprires sonhos.

    Um grande abraço,
    D

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  2. Olá Pedro!

    É difícil saber o que dizer…. Ficamos reduzidos perante a grandeza dos teus relatos ! A sensibilidade a par da força para ultrapassar os limites não se aprende na faculdade, nasce com os “Grandes”! Nunca te esqueças que o “bom senso” é um talento precioso! Que te desejar de Portugal? Saúde, coragem e muita força!!
    (Sabes, África é o meu “mundo”, Moçambique é o meu país do coração, pelo que esta tua aventura tem para mim uma dimensão especial…)

    Um abraço, Ana, João e Joana.

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  3. Grande Aventura!!!!! São sem duvida relatos de uma grande viagem, cheios de emoções e realizações pessoais! Fico ansiosamente á espera do final desta história de coragem e determinação!!!!
    Um grande beijinho e Força Ai....
    Sónia "Capote Sacramento"

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  4. Viva!
    “Não vás praí que tem jacaré!”… foi bonito :)

    Parabéns pela concretização da primeira etapa. Imagino a sensação de missão cumprida que estarás a sentir.
    Mantem-te longe dos leões.
    Cá fico á espera de novos episodeos, agora na Zambia.

    Um Abraço,

    Rui Caldeira

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  5. dores nas pernas... mas tu treinavas todos os dias lá em KK! ooooooriiiight :D
    mais dia menos dia ja estas em KK para comer uma francesinha (com molho cláro)sim pq deves ter tantas saudades de KK q nao acredito q nao faças um desviozinho :D

    godspeed

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  6. Mas que grande barcaça...

    FORÇA!!


    Pedro Martins

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  7. Muita determinação,
    Reflexão e mais reflexão.
    Bananas e água fervida também,
    Fazem de ti um autêntico campeão!

    Força!Força!

    Um abraço de apoio.

    Celso

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  8. Meu, força aí!

    O primeiro capítulo está concluído!

    - sem leão,
    - sem jacaré,
    - sem sanguessuga,
    - sem complicação!!!!!

    Fico a aguardar, impacientemente, pelos próximos capítulos desta tua/ nossa aventura por terras africanas.

    PS: Atrevo-me a dizer nossa, pois julgo que todos os que te seguem, lá no fundinho pensam o quanto queriam ter a coragem e a força de vontade de estar ao teu lado e a vivermos todos os momentos por que estás a passar.

    Grande abraço

    Carlos Miguel

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  9. AS diferenças entre o True Colour Coach e o Titanc são pequenas. A mais importante é que o True, não ficou pelo caminho.
    Continuação de boa pedalada. Estamos juntos!

    Fernando Jorge

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  10. que pena me dá não poder estar aí mas fiquei-me pela maratona de portalegre com uma queda e os repectivos golpes das pedaleiras abaixos dos gémeos força aí e como diz o mzungu kayelekera é já ali

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  11. Mein do Mato...

    Foi nessa barcaça que passaste para a Zambia ! ! !
    Presumo que apenas contigo lá dentro !!!

    Abraço

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  12. Pedro,
    Quando soube, pelo teu pai, desta tua arrojada aventura, fiquei fascinado com a tua coragem e determinação.
    É grande o fascínio que o continente Africano e, especialmente, Moçambique exercem sobre mim.
    Por isso, desejo-te tudo de bom e que consigas levar avante esta etapa da tua vida.
    Saúde e felicidades
    António Marques, A.Fontes Aveiro

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