9º Dia (Xamiquelengue – Cacolo)

 

No complexo do Tozé Salufuma fui dos primeiros a vir cá para fora e agradecer o dia que nos cumprimentava com os seus primeiros raios de luz. Aproveitei o sossego matinal para dar uma caminhada pelo DSCF2341átrio e pedir às cozinheiras para prepararem um pequeno-almoço substancial.  Sentia a pernas doridas e o corpo um pouco cansado, mas a vontade de arrancar para Cacolo era enorme. Eram pouco mais de 100kms, que com um pouco de sorte não levantariam grandes problemas e seriam completados em dois períodos de 3 horas, com intervalo de 1 hora para almoço em Xinje.

Antes da partida, fui convidado a conhecer as instalações da loja do Tozé Salufuma pela gerência local. Tratava-se de uma loja separada em duas partes. Uma de venda a grosso e a outra para comércio retalhista de todo o tipo produtos de consumo.

Achei que seria uma boa oportunidade para repor os meus stocks de géneros alimentares. Enquanto seleccionava os pacotes de bolachas e as latas de feijoada para comprar, ouvi o Carlitos (parte da gerência) a dizer: “Pode levar o que quiser… é por conta da casa.”

“QUÊ!!!?”… a única imagem que me veio à cabeça nessa altura, era eu a sair da loja com um carrinho de mão carregado com chouriços, latas de conserva, bolachas e refrigerantes. No entanto fiquei-me pelos modestos 3 pacotes de bolachas de chocolate, 2 colas, 1 feijoada enlatada, garrafas de água e latinhas de leite condensado.

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O tempo estava a passar rápido e eu tinha que apressar-me caso quisesse chegar de dia a Cacolo. Agradeci a hospitalidade à gerência de Xamiquelengue (Benedito e Carlitos) e a toda a restante equipa pelo fantástico acolhimento. Estava na hora de partir.

Mal me sentei em cima da bicicleta concluí que hoje iria pedalar muito tempo de pé (para alivio de alguns músculos). As pernas apesar de doridas, mantinham um nervosismo electrificante demonstrando a ansiedade por começar a debitar binário no centro-pedaleiro da bicicleta.

O vento estava de frente… como sempre. Começava a conhecer os vícios meteorológicos desta região. Vento sempre de frente desde os meados da manhã. Aumenta de intensidade logo depois de eu almoçar para abrandar ligeiramente 1 hora mais tarde. A partir das 15h00 vem o vento quente, húmido e abafado… sinal que se não me despacho, vou ter que vestir o impermeável.

Seguia animado e motivado pelo meio de uma paisagem de vegetação alta ao som do meu iPod. Pouco trânsito, o dia estava fresco, as pernas estavam a corresponder bem e as médias estavam dentro dos parâmetros que havia traçado para o dia de hoje.

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Sempre que passava por uma ponte, aproveitava para parar e presenciar as águas do rio. Por vezes era cor de barro, sinal que havia chovido a montante. Por outras vezes era completamente transparente onde podia observar o fundo e onde nas margens se lavava a roupa, a loiça ou até mesmo o corpo. Por outras vezes era apenas um misto de rápidos artificiais consequentes das ruínas das pontes de cimento que jaziam no fundo do rio, resultado das décadas de guerra.

Enquanto pedalava entretido nos meus cálculos no meio de colinas e vales, dou de caras com o primeiro espécime local. Este ainda tentou passar despercebido camuflando-se, mas a minha visão audaz detectou-o e evitou o pior.

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Estava a aproximar-me de Cacolo e por sua vez de Saurimo, pelo que o comércio tradicional voltava a aparecer (mesmo que raro) ao longo da estrada. Fiz as minhas compras para me alimentar durante o resto do dia e rumei em direcção a Xinje, lugar onde iria almoçar.

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Cada vez que eu parava para esticar um pouco os músculos ou para comer uma banana, poisavam sobre mim e sobre a bicicleta, várias borboletas de cor alaranjada. Se não fosse o facto de as borboletas não brilharem, de eu não estar pintado de azul e de eu não ter uma cauda, ter-me-ia sentido a Avatar.

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Pela segunda vez fui acolhido nas instalações do Tozé Salufuma (desta vez em Xinje) onde prontamente me ofereceram uma cola e almoço (funge). Toda a equipa da Sinergia tem sido espectacularmente acolhedora, dando sempre o seu melhor para o meu bem-estar.

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Depois de um estômago cheio e uns minutos de relax sentado debaixo de uma árvore, rumei em direcção a Cacolo. Estava a meio do percurso e sabia que seria capaz de chegar ao destino sem grandes complicações.DSCF2387 Pelo caminho apanhei algumas subidas longas e acima dos 5%, mas nenhuma se mostrou intransponível. Além disso estas subidas eram um pretexto para eu pedalar de pé, pois havia zonas do meu corpo que já tinham as costuras do selim marcadas na carne.

 

Foi nos meados das tarde, quando o vento abafado e húmido começou a soprar, que reparei o quanto dormente estava o meu corpo. As dores no pescoço, ombros e cotovelos deixavam de me incomodar. As pernas já não sentiam nada mas continuam a impor rotação na pedaleira. Os punhos e as palmas das mãos acomodaram-se ao formato do guiador e raramente acusavam o peso do meu tronco.DSCF2394 Tinha passado o limite e agora mais do que nunca sabia que precisava de dar algum descanso ao corpo, apesar de este continuar a debitar uma performance acima da dos dias anteriores. Creio que a vontade de chegar a Saurimo e a excitação do bom desempenho do dia de hoje, não permitiam os músculos de indiciar o desgaste físico em que se encontravam. Mesmo que eu me esforçasse numa subida, não havia um único musculo, tendão, ligamento etc que se queixasse. Por seu lado o coração, batia a um ritmo bastante baixo o que comprovava a minha teoria. Eu estava a pedalar há 9 dias consecutivos, a uma média de 6 horas por dia. O meu corpo estava cansado e eu tinha que passar uns dias a descansar! Mesmo que não quisesse. Esses dias seriam em Saurimo, depois da etapa do dia seguinte.

De repente, e apesar do céu a minha frente estar relativamente limpo, começou a chover com intensidade. DSCF2398Procurei onde estava a nuvem causadora de tal dilúvio (mesmo em cima da minha cabeça) e tentei estudar em que direcção esta ia. Não cheguei a conclusão nenhuma, mas como a chuva era tanta, decidi parar e vestir o meu impermeável. Para aplicar os impermeáveis à bagagem é sempre algo mais complicado porque apesar de estarem relativamente acessíveis é sempre um caso sério para os fixar. Já escorria água por todos os lados e as malas começavam a deixar passar àgua para o seu interior quando concluí a operação de impermeabilização da bagagem.

Nem cinco minutos depois pára de chover e logo a seguir vem um sol abrasador que fazia o alcatrão fumegar. Decidi parar e retirar todas as capas impermeáveis para secar não só a minha roupa como também as malas que tinham ficado molhadas.

Iniciei a pedalada mais uma vez numa tentativa de recuperar o tempo perdido, mas ainda nem tinha aquecido o selim quando caiu a segunda tromba de água em 10 minutos. Mais uma vez, encostei à berma e iniciei o ritual. Tira impermeável da bagagem, veste impermeável, tira capas impermeáveis para as malas, aplica capas, verifica se não vão raspar na roda ou rasgar-se em algum parafuso, segura a bicicleta mais os seus 30kgs, torna a verificar tudo outra vez… inicio da pedalada…

Parou de chover! Abriu o céu… fez-se sol…

Apeteceu-me arrancar os impermeáveis à dentada, mas mantive-me calmo e sereno e pus-me a analisar quais as causas destas inconstantes condiçõesDSCF2406 meteorológicas.  A razão era simples… ao contrário do que eu esperava, a tempestade estava atrás de mim e não à minha frente. Decidi manter-me equipado para a chuva e prossegui em direcção ao meu destino. Até à chegada a Cacolo os únicos pingos que caíram no alcatrão incandescente, foram os pingos de suor que escorriam da minha testa e se despediam de mim no meu queixo.

Poucos quilómetros antes de entrar em Cacolo, parei no posto de controlo para mais uma identificação. Deixava a Lunda Norte e passava a estar na Lunda Sul. Tal como em todas as paragens tive que satisfazer a curiosidade de quem pergunta, apesar de as questões serem sempre as mesmas. No entanto desta fez a situação ocorreu de modo diferente. No meio do interrogatório, um dos policias ofereceu-me um cacho de bananas que aceitei de imediato.

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À chegada a Cacolo, foi mais uma vez identificado no Posto da Policia. O Posto estava alocado na metade de um edifício que sobreviveu à guerra, enquanto a outra metade do edifício repousava a 45o, amparada pelas barras de ferro existentes nas vigas de betão armado.

Mais uma vez iria pernoitar nas instalações do Tozé Salufuma (desta vez de Cacolo) graças à intervenção do Sérgio, que de Saurimo ia orientando estas questões de alojamento. Quase toda a equipa veio para o átrio para me receber e depois das apresentações foi-me indicado o meu quarto.

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Tive direito a um quarto num anexo com cama e casa de banho privativa com chuveiro. Apesar de ter conseguido tomar banho todos os dias, esta era a segunda vez que tinha direito a banho de chuveiro (agua fria). Todas as outras foram com balde, com caneco ou com toalha molhada.

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À hora de jantar, senti-me mais uma vez um leão faminto que só consegue ver a comida à frente dos olhos, sem se importar com o que se passa em redor. Não posso dizer que comi duas tigelas de sopa, porque as mesmas foram engolidas de uma vez só. Não vou comentar o que aconteceu à travessa dos bifes, nem à panela do arroz, nem mesmo a caixa plástica completamente cheia de rodelas de ananás docinho e fresco. Acho que tenho que começar a controlar-me ou a comer qualquer coisa antes de me sentar à mesa, para não passar vergonhas.

O dia seguinte seria o dia mais longo em termos de quilómetros, mas provavelmente o mais excitante pois seria a chegada a Saurimo… O fim da primeira metade do circuito em território Angolano.

3 comentários:

  1. Apesar de teres herdado a loucura e o visonarismo , admiro a tua coragem e força . Estou a acompanhar-te dia a dia

    Ângelo

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  2. Grande Pedro,isso é que é uma viagem!!
    Se já sabes que em alguma hora vai chover, porque não andas sempre com os impermeáveis sobre a bagagem?...:))

    beijos e boas pedaladas

    Carla

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  3. Oi Pedro,
    Só hoje me actualizei sobre a tua viagem... vejo q apesar do cansaço está a correr tudo bem e até já és estrela de tv!! :-)
    Espero q continue tudo bem e agora continuarei a vir cá ver as novidades! Beijinhos. Ana Roma

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