3º Dia da Fase II (Dala – Luena)

 

Acordei ensopado em suor e com o corpo directamente num colchão repleto de marcas de outros indivíduos que nele haviam repousado. Os lençóis descansavam aos pés da cama, depois de uma noite de atribulada batalha. A transpiração era bom sinal… era sinal que a febre abandonara o meu corpo, durante a noite.

Às 5h30 da manhã já estava nas traseiras da cozinha a explicar à cozinheira que queria uma omeleta para pequeno-almoço e que comia também o macarrão que sobrou da noite anterior. Necessitava de sair o mais cedo possível pois não sabia o que esperar do restante da estrada até Luena. Eram as 6h10 quando reparo que a cozinheira airosamente deixou o seu local de trabalho e foi ao mercado. Pouco depois regressa com os ovos para fazer a omeleta que encomendei 40 minutos antes, mas este atraso ainda não era suficiente. Demorou outros 40 minutos até ter a omeleta pronta. Afinal o que eram 80 minutos de atraso num dia que seria passado a pedalar? A única questão era saber se conseguiria chegar a Luena com luz do dia, ou se chegaria no crepúsculo e artificialmente iluminado.

A omeleta gigante e o resto de macarrão que tomei como pequeno-almoço, deixaram uma bola de chumbo dentro do meu estômago. Não sei que tipo de correspondência poderia existir entre esta estranha noção de enfardamento com o facto de o meu nariz ter recomeçado a pingar e com o estado febril a enaltecer-se uma vez mais.

A vontade de chegar a Luena suportaria todos incómodos que daí poderiam emergir. Pela frente teria 100kms de saltos, previstos para umas 8 horas de viagem. Daria tempo suficiente para o metabolismo absorver a mais compacta das estruturas moleculares.

Principiei a pedalada às 7h20 em direcção a Sul.

DSCF2607A estrada com a sua característica cor avermelhada enobrecida pelo contraste com o azul do céu e com o verde do mato, convidada à auto-motivação. Fazia-me abstrair da bola de chumbo que carregava comigo e do facto de me ter esquecido de carregar a bateria do iPod. Estava condenado a ouvir a minha respiração e os barulhos da bicicleta durante o dia todo.

Conseguia manter uma boa velocidade média, mas de nada me adiantava em termos de média geral. Cada vez que me entusiasmava a imputar binário nos pedais, acabava sempre por acertar em cheio num ou mais buracos que faziam os alforges saltarem fora dos suportes. Tinha que conduzir com a máxima atenção não só para não danificar os alforges como também para não partir o meu suporte de 17,99€ que certamente não era o mais indicado para este tipo façanhas. Em todos saltos, lombas, buracos, etc sentia a roda de trás a pinchar tipo bola de basket, originado pelo elevado peso da carga e pela alta pressão do pneu.

DSCF2608 Era cada vez mais raro cruzar-me com alguém na estrada, mas aqui ou ali aparecia sempre alguma pessoa a carregar lenha ou a pé com a sua bicicleta. Avistava por vezes algumas cabras domésticas na berma da estrada, sinal que apesar de eu estar próximo da reserva da Cameia, não haveria leões por perto… ou talvez não…

Despertava em mim a curiosidade de conhecer a cidade que estava para lá desta via interminável e que por estar tempo seco permitia os veículos chegarem ao destino em apenas um dia. A cidade era Luena, capital da Província do Moxico e apesar de eu ainda estar longe, sabia que chegaria durante o dia de hoje.

A omeleta e o macarrão há muito que tinham sido assimilados pelo organismo e a fome começava a imperar. Contentava-me uma vez mais com as minhas bolachas, uma vez que não avistava qualquer tipo de fruta havia dias.

Começava a sentir toda e qualquer irregularidade da estrada nos meus punhos e ombros. O facto de possuir luvas com almofada de gel e de os punhos do guiador serem em esponja, já pouco ou nada faziam. A tormenta da estrada faziam-se sentir em todos os músculos que de uma maneira ou de outra seguravam o guiador impedindo que a roda da frente se enrolasse debaixo do quadro da bicicleta. Os movimentos súbitos que eu tinha que fazer com o corpo para contra-balancear as mudanças de direcção cada vez que surgia um buraco inesperado, eram de alguma forma um alívio. Era uma maneira inconsciente de aliviar os doridos causados pelo trepidar da bicicleta e pela dureza da estrada.

Não tinha iPod para dopar-me com música e o cenário constante da paisagem em pouco me impressionava.

Quando tinha que transpor algum rio, perdia agora mais tempo a contemplar as suas águas translúcidas onde as pontes de betão repousavam eternamente no fundo das mesmas. Apreciava o lençol esverdeado tecido a capim que inundava as margens do rio, enquanto na realidade eram as águas do rio que invadiam os campos de capim deixando apenas as pontas a deliciar-se com a luz solar.

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Parava com mais frequência numa tentativa de refrescar a mente com a água cálida que trazia nas garrafas, ao mesmo tempo que ingeria umas bolachas para recuperar energias. Aproveitava para fazer alguns alongamentos enquanto era assolado pelas inúmeras moscas que surgiam do nada como se de geração espontânea se tratasse. Tentava manter-me imóvel durante os breves segundos necessários para tirar uma foto, para logo a seguir ao “click” saltar numa dança desenfreada para sacudir a bicharia que voava em redor dos meus ouvidos.

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Cheguei a Camanongue perto das 11h00. Uma pequena vila com estradas em pedra e areia, mas onde existia rede de telemóvel e alguns edifícios governamentais com boa aparência. Estava  exausto, dorido e cheio de sede. Procurei por um lugar onde pudesse comer algo e saciar a aridez da minha garganta com uma bebida fresca e doce.DSCF2617 Encontrei um único local com o nome de cantina já quase à saída da vila, mas não servia refeições. Sentei-me numa cadeira oferecida pela dona da cantina, enquanto deliciava-me com uma Coca-Cola servida quase à temperatura ambiente. Várias crianças e curiosos vinham de todos os lados para ver quem era o branco que chegara à vila de bicicleta. Respondia pela milésima vez que a bicicleta não tinha motor e que os pneus eram os mesmos desde Luanda. Que tinha demorado 10 dias de Luanda a Saurimo e este era o terceiro dia da viagem de Saurimo para Luena…

Durante o meu momento de pseudo-relax, surge do meio do grupo de curiosos um indivíduo de uns 45 anos que se preparava para sentar-se ao meu lado, não sem antes sussurrar com um sorriso imbecil que me tinha visto a descer de um camião antes da Vila. Por momentos o meu carácter alterou-se, as pupilas dilataram e as veias brotaram das têmperas. Numa tentativa de controlar a brutidão das palavras que seriam cuspidas pela minha boca, limitei-me a lançar-lhe um olhar mergulhado num silêncio quase eterno, que lhe trespassou e remoeu a mais profunda das suas entranhas, de modo que o indivíduo nem aqueceu o lugar da cadeira. Em poucos segundos levantou-se, despediu-se e desapareceu pela estrada fora.

Depois de Camanongue e com o aproximar de Luena, a estrada ficava cada vez pior e mais dura. Mantinha os meus braços e ombros ocupados em segurar o guiador da bicicleta e a desviar-me das pedras cortantes que cobriam toda a largura da estrada.

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Por vezes as pedras davam lugar a zonas de areia, mas sinceramente qual delas a pior.DSCF2620 A bicicleta simplesmente não andava na areia e por vezes era tão difícil de controlar que algumas ocasiões quase acabei no chão.  Foi num destes troços de pedra que vejo uma pick-up Mitsubishi verde escura a vir em sentido contrário. A estrada estava danificada nos lados, por isso só passava um de cada vez. Com o aproximar da carrinha quase que consegui ler nos lábios do condutor: “PÔ CARA! QUÉ QUE AQUELE BRANCO TÁ FAZENDO AQUI SOZINHO??!!”. Era o Max Pimentel, um arquitecto brasileiro que trabalhava em Luena e dirigia-se para Camanongue. Conversámos um pouco no meio do mato e trocámos contactos. Ofereceu-se para me ajudar no que for preciso e combinámos encontrarmo-nos em Luena no dia seguinte.

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Continuei a pedalada numa via cada vez mais atribulada. Parecia que esta estrada tinha as 4 estações do todo-o-terreno. Pedra, areia, lama e buracos… tudo isto nos 100kms do dia.

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Os pedais de encaixe eram uma benesse para ultrapassar as zonas onde era exigido mais binário, no entanto teria que seguir com prudência máxima se não queria acabar com as nádegas e os cotovelos nas pedras ou dentro da lama.

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Captava a atenção dos habitantes das aldeias por onde passava, principalmente das crianças que descalças corriam ao meu lado por cima da areia e das pedras como se nada fosse. O baixo ritmo que a estrada me permitia seguir, possibilitava que a criançada me acompanhasse durante bastante tempo. De nada valia eu dizer-lhes para voltarem para a sala de aula porque não falavam português e assim continuavam a correr ao meu lado até que as suas pequenas pernas acusassem a fadiga.

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9h20m após ter saído de Dala, cheguei a Luena. Era perto das 16h30. Incrivelmente dou de caras com a cidade que mais me DSCF2636impressionara desde a minha saída de Luanda. Depois de 267kms (dos quais 200kms são picada) deparo-me com uma cidade bem organizada e com notórios sinais de reconstrução e recuperação.

 

DSCF2656Era como um  oásis depois de uma travessia no deserto. As ruas estavam organizadas em paralelas e perpendiculares e todas elas possuíam árvores plantadas nos passeios.

 

 

DSCF2685As avenidas eram divididas por um passadiço central  também este com árvores.As praças e pracetas com os seus jardins arranjados estavam um pouco por toda a parte. Em todas as ruas havia casas e prédios com linhas arquitectónicas de outros tempos.

DSCF2683 Descia deslumbrado pela avenida abaixo. Passei o edifício da Policia, o Cine Luena e a igreja em reconstrução. De repente deparo com uma viatura ao meu lado a apitar e a pedir para eu parar. Eram os repórteres da Rádio Moxico que queriam que eu facultasse uma entrevista.

Após a entrevista, dirigi-me à pensão do César onde iria passar a primeira noite. Tinha conseguido um preço especial para o alojamento devido a um colega de Saurimo (Jorge Nobre).

Depois de instalado e de um bom banho fui procurar onde jantar. Tarefa difícil, pois não havia tascos abertos apesar de ainda ser cedo. Após alguma pesquisa encontro um local aberto, mas onde a antipatia e o desprezo do jovem que estava a servir, fizeram-me comer um hambúrguer no pão e ir-me embora.

Havia contactado o Max. Amanhã mudar-me-ia para sua casa, pois necessitava de permanecer em Luenas uns dias para preparar as próximas etapas.

7 comentários:

  1. Viva,

    As aventuras de Fernando Laidley, que eu tanto admiro, que resolveu dar a volta a Africa num carocha, agora parecem coisa de meninos ao acompanhar a tua aventura! Espero que corra tudo bem! Vou acompanhar o teu diário de bordo ;)Boa sorte.


    Abraço


    Rui Caldeira

    PS: O que dará na cabeça de um individuo para resolver meter-se em cima de uma bicicleta e atravessar o continente africano?

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  2. Meu...

    Muito, pouco, nada de importante se diga... é sempre bom uma palavra amiga, por isso, aqui deixo o meu contributo de hoje!

    Bom descanso por essas bandas e prepara-te bem para as próximas etapas.

    Grande Abraço

    Carlos Miguel

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  3. A dimensão de um Homem mede-se na grandeza dos seus feitos………
    Força e saúde!
    Um abraço Ana Maria.

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  4. Ola Pedro ja vejo que com os precalcos devidos, vai correndo tudo bem. Boa sorte nessa tua odisseia e ja veras que o dificil mesmo vai ser regressar a outra realidade. Bons ventos te empurrem, boas gentes te acompanhem e forca nas pernas, que em havendo vontade tudo se faz e tudo se alcanca. Beijinhos

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  5. Como é Mein do Mato !!! não há noticias !!! Espero que estejas bem e coragem para a proxima étapa... Abraço e bjs de todos

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  6. Cada relato me entusiama mais e não deixo de os reler ...Não és homem de aceitar grandes elogios nem muita "música" , mas crê que te admiro.
    E afinal , "men" , até escreves bem ....
    Um abraço

    Ângelo

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  7. Força e Ânimo!!!!!!!!!
    Olha lá Pedro e as pretas???

    Hum?!??!?

    refiro-me as nódoas negras que deves ter nos nadegueiros de tantas horas sentado no selim da bike.

    Abraço Amigo
    N. Sacra

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