Ainda não eram as 6h00, quando comecei a dar as primeiras passadas pela área circundante à minha tenda.
Resolvi receber os primeiros raios de luz, sentado numa espreguiçadeira que estava no pontão do restaurante.
Parti de Luanda a 31 de Março, o que quereria dizer que hoje celebraria um mês que havia iniciado a viagem, caso Abril tivesse 31 dias. Tal não era o facto e para não cometer nenhum erro festivo, decidi celebrar o feito apenas quando fizesse 2 meses que saíra de Lunda, ou seja a 31 de Maio.
O Hans já havia advertido que a estrada não iria melhorar grande coisa até poucos quilómetros antes da fronteira com a Namíbia (cerca de 120kms para sul). Informou-me que havia outro parque de campismo, entre 50 a 60kms de Sioma Camp, mas não tinha a certeza se estaria aberto. Em todo o caso havia uma Missão uns 15kms mais a sul, a qual era provida de quartos para alugar.
Estava sentenciado a demorar 2 dias para perfazer uma distância (120kms) que facilmente percorreria em um só dia. Obrigatoriamente teria que pernoitar a meio do caminho entre Sioma Camp e Sesheke. A questão era apenas evitar passar mais de 6 horas na estrada e aproveitar o resto do dia para relaxar.
Hoje o mundo celebrava o 1º de Maio, Dia do Trabalhador…
Eu iria celebrar a data à minha maneira… a empurrar a bicicleta na areia até ao próximo destino.
Eram as 9h05 quando me despedi do Hans e iniciei a etapa pelo trilho que me levaria à estrada principal. Em 20 minutos atingi a estrada nacional que me conduziria a Sesheke.
Permaneci a olhar para a estrada alguns segundos para saber se eu estava na estrada correcta. Não me parecia a estrada que havia feito no dia anterior. Esta estava em muito melhores condições e caso fosse sempre assim, poderia sonhar em chegar ao próximo parque de campismo ao início da tarde.
Segui viagem acompanhado pelo Zambeze, que cursava do meu lado esquerdo. Desta vez conseguia ver claramente o rio, fruto da matinal boa saúde mental em que ainda me encontrava.
A beleza da paisagem ia contracenando com a crescente degradação da estrada. A areia já começava a surgir em alguns troços, obrigando-me a pedalar junto às bermas para que conseguisse apanhar solo mais compacto.
Esta solução apesar de vantajosa para a minha progressão, tinha uma desvantagem penosa que era o facto de escoriar-me a pele das pernas nos inúmeros espinhos e ouriços abundantes na vegetação envolvente.
O cansaço ia apoderando-se das minhas pernas. Os troços de areia que iam surgindo esgotavam a energia remanescente do bom pequeno-almoço que havia tomado no Sioma Camp.
Voltava ao cenário do dia anterior… aplicava um pedalar enérgico até que a bicicleta estacasse por acção impeditiva da areia. Colocava rapidamente os pés no chão e ficava uns minutos a resfolegar até que conseguisse ter forças para alçar uma perna e conseguisse sair de cima da bicicleta. Depois era uma questão de atestar os pulmões de ar e dar o primeiro impulso aos pés e aos braços para fazer a bicicleta iniciar o movimento através de um mar de areia.
Permanecia a idolatrar o clã da “…very fine gravel road…” e dava comigo a questionar-me como era possível este trilho vir assinalado no mapa como sendo uma via principal.
Cerca de 3 horas depois de ter saído de Sioma Camp, eis que surge uma nova e boa razão para celebrar o Dia do Trabalhador. Pneu furado - O primeiro furo na Zâmbia.
Impasse resolvido e iniciei a pedalada mais uma vez. Passei a seguir os ciclistas locais, pois parecia que estes sabiam onde colocavam as rodas da bicicleta. No entanto a perseguição não era tarefa fácil, pois devido ao peso que carregava na bicicleta, esta enterrava-se com facilidade.
Mais cedo ou mais tarde acabava sempre com uma mão no guiador e a outra mão por detrás do selim, a puxar/empurrar a bicicleta.
De repente, a uns 100 metros, vi um cavalo a sair do mato do lado direito e a deslocar-se pela berma a passo lento. De inicio tive uma certa dificuldade em distinguir se o vulto vinha ou se ia na minha direcção. Mas à medida que me aproximava consegui diferenciar que o ser seguia no mesmo sentido que eu… e que afinal não era um cavalo… era algo diferente…
Era simplesmente uma mulher com um grande molho de capim à cabeça que, por ser tão longo, descia até à sua cintura tapando-lhe por completo a nuca.
Estaria com miragens?
Lembro-me de um curto folhear a um livro do Paulo Coelho acerca de uns viajantes que atravessavam o deserto. Referia o texto que 15 minutos depois das miragens, vinha a morte. E que a maioria das pessoas que morrem à sede no deserto têm os cantis cheios de água, pois não se apercebem da rápida desidratação a que os seus corpos estão sujeitos.
Ora, os meus cantis estavam quase vazios e apesar de toda a areia, eu não estava no deserto. Não chamaria à confusão Cavalo Vs Mulher-Com-Molho-de-Capim-à-Cabeça de “miragem”, mas sim de “ilusão óptica”... Por isso não estava a sofrer de desidratação… e consequentemente a morte não vinha aí… além que tinha o Zambeze a 100 metros do meu lado direito.
Equívoco justificado, estava na altura de e iniciar mais uma tortuosa caminhada colina acima.
Passava um par de horas das 12h00 e o calor apertava. Sentia as pernas a fraquejar e a ter cada vez mais dificuldades em retirar os pés dos pedais atempadamente. Sair de cima da bicicleta era agora uma tarefa penosa devido aos músculos cansados e doridos.
Olhei para o alto da colina… eram uns 200 a 300 metros de areia em plano inclinado. Ao fundo conseguia diferenciar duas mulheres que desciam a colina com alguns volumes à cabeça.
Iniciei a marcha, mantendo uma mão no volante e a outra atrás do selim. O meu tronco ia curvado para a frente cerca de 45º, enquanto as pernas iam lá atrás, lado a lado com os alforges. A cada passo que eu dava, sentia a areia ceder e os meus pés a deslocarem-se para trás. Nada podia fazer contra esta perda de rendimento em que parte do meu esforço era usado para remoer areia, em vez de fazer avançar a bicicleta.
A cabeça andava pendurada nos ombros através do pescoço e os olhos limitavam-se a ver por onde seguia a roda da frente.
A mão esquerda segurava o volante, tentando manter a roda dianteira no trilho ao mesmo tempo que a curvava ligeiramente para o meu lado.
A mão direita puxava a bicicleta pelo selim, de maneira a tentar aliviar o peso na roda traseira evitando que esta se “afundasse” no areal.
Olhei em frente para ver se ainda faltava muito… mas na realidade nem a meio da subida me encontrava. As duas mulheres estavam agora mais próximas de mim e conseguia distinguir que uma trazia um bidão de 20 a 30 litros de água à cabeça e a outra trazia um volume embrulhado em capulanas, também à cabeça. Deveriam andar na casa dos 40 a 45 anos de idade.
Continuei a minha penitência, com os pés comprimidos pelas toneladas de areia que trazia dentro das sapatilhas. Esvaziava-me em suor devido ao calor que se fazia sentir.
Os pequenos ouriços alojados nas minhas pernas, perfuravam-me a pele a cada passo que dava. Principalmente por detrás dos joelhos e entre o Tendão de Aquiles e o calçado.
Os dedos da mão direita estavam quase roxos devido ao estrangulamento da circulação sanguínea, originado pela dobra do selim e a pela força de tracção aplicada.
Ouço as mulheres a aproximarem-se… Esforço-me para erguer a cabeça e num gesto de simpatia, cumprimentar as senhoras que vinham em sentido contrário… Mas antes que eu pudesse dizer fosse o que fosse, ou mesmo focar as suas caras… eis que ouço a frase que me daria energia para fazer o resto da subida:
- Ó branco, dá-nos refresco… - ordenou imperativamente uma das mulheres.
Durante uns milissegundos, ou talvez um pouco mais, o mundo parou à minha volta. A minha cabeça efectuou uma translação rotativa. O Sol queimava-me o rosto e os pingos de suor saiam por todos os poros da minha pele, evaporando-se ainda antes de tocarem na areia.
- Ó branco, dá-nos refresco… - ecoou a frase na minha cabeça…
Tentei reagir e olhar para a cara delas, mas só o facto de ter que rodar o pescoço quase que me fazia cair, acabando sentado no chão com a bicicleta por cima de mim.
Entrei em ebulição e logo a seguir senti a explosão interior, como que um ovo que explode dentro de um micro-ondas. Revesti mentalmente as duas “senhoras” de todas as conjugações possíveis entre verbos, substantivos e adjectivos próprios para estas situações.
Apetecia-me saltar de cólera e sair num ciclone de fúria atrás das mulheres e de quem lhes ensinou esta falta de bom senso, falta de personalidade de falta de amor-próprio.
- Ó branco, dá-nos refresco… - ecoou mais uma vez na minha cabeça enquanto as minhas têmperas dilatavam…
Trincava verde de raiva a atmosfera circundante, sentia que a bicicleta ficava leve… tão leve que era capaz de a atirar ao ar. Senti o cabelo a crescer… senti os olhos a quererem saltar das órbitas… e senti que uma das abas laterais do selim estava partida.
Os elogios às senhoras continuavam mas de modo decrescente, no entanto o sangue continuava acima do ponto de ebulição.
De repente constatei…
Havia chegado ao topo da colina sem dar por ela. Com a cegueira da revolta interior, as pernas não pararam de puxar e subitamente estava no topo…
Continuei a minha etapa, efectuando alguns exercícios respiratórios com o objectivo de baixar a temperatura ao meu sistema nervoso.
Eram as 16h00 quando avistei do meu lado direito, uma pequena casa de bebidas.
Passavam 7 horas desde que iniciei a etapa e estava na altura de ingerir algumas calorias. Bebi um Coca-Cola e deixei-me estar uns minutos à conversa com o dono do estabelecimento.
Pelos vistos eu já estava perto da cortada para o parque de campismo, mas segundo referiam os meus colegas, a estrada estava inundada e eu teria que apanhar uma canoa… desta vez das tradicionais.
A situação não me preocupou muito, se não houvesse canoa ficaria acampado junto à estrada.
À chegada ao acesso que me levaria ao parque de campismo, conheci o responsável pela manutenção e segurança da pensão e também do parque de campismo. Era um indivíduo extremamente simpático e prestável que fazia-se deslocar numa moto 4.
Disponibilizou-se a levar-me até ao recinto através de uns caminhos alternativos, evitando a estrada submersa.
Fizemos uns 4 a 6 quilómetros extra só para dar a volta à zona inundada. Mesmo assim fui obrigado a tomar providências para atravessar algumas áreas.
O facto de estar a seguir a moto 4, não impediu ser forçado a empurrar a bicicleta na areia por mais alguns quilómetros.
À chegada à Kabula Lodge disseram-me que a pensão estava fechada. Não acreditei no que ouvira. -“Então a pensão estava fechada e o responsável não me havia avisado?”
Afinal não era bem assim. Estava fechada porque não havia clientes, mas como eu tinha chegado mandaram buscar o empregado do bar, que já se encontrava em sua casa do outro lado do rio.
Kabula Lodge estava situada na margem oeste do Zambeze. Estava provida de quartos individuais e também de zona para campismo equipada com casas de banho e área de cozinha.
Não havia corrente eléctrica e a única luz do bar era alimentada por baterias que eram carregadas durante o dia através de energia solar.
Montei a minha tenda ao lado de uma mesa de madeira (que seria a minha cozinha) e perto das casas de banho. Assim não teria que caminhar longas distâncias no meio do escuro.
Pouco depois de escurecer o barman regressou à sua casa do outro lado do rio.
Para garantir que eu não teria sede durante a noite, deixou-me algumas bebidas à consignação e uma bateria de carro para eu poder carregar o iPod e o telemóvel.
Fique sozinho, apenas com os dois guardas-nocturnos que andavam algures no meio do breu.
Estava entregue a mim mesmo. De lanterna à cabeça purificava com clorina a água do rio que iria beber no dia seguinte, ao mesmo tempo que preparava o meu jantar.
Iria utilizar o meu fogão pela primeira vez e cozinhar esparguete misturado com uma lata de feijoada à transmontana.
Havia sido o segundo dia mais improdutivo de toda a viagem.
Foram 64kms percorridos num total de 8h25m, das quais:
- Pedalei durante 4h49m para perfazer 58kms;
- Arrastei a bicicleta durante 1h46m, pisando e calcando areia num total de 5,9kms;
- Recuperei o batimento cardíaco num total de 1h49m;
- Não parei para almoçar;
- Por quatro vezes acabei deitado na areia com a bicicleta no meio das pernas e com os pés presos nos pedais.
Pedro, aprecio a admirável racionalidade que consegues assegurar nos momentos de dificuldade limite… Aliás, só por isso estás aí!
ResponderEliminarAgora a sério (?) gostar, gostar, gostei mesmo foi da feijoada, que ainda por cima não era uma feijoada qualquer, á transmontana vejam só !!!?
Um forte abraço da família !
Ana Maria
Pedro, apenas um conselho: nunca te esqueças das simpáticas senhoras do refresco e em três tempos estarás em Maputo.
ResponderEliminarAnabela
Estou a gostar de te ler.
ResponderEliminarParabéns pelaa aventura!
Continua a postar o resto da viagem.
Jorge R.
Os teus relatos estão a tornar-se de muito interesse pois são um verdadeiro roteiro gastronómico . Quem os lê não pode deixar de sonhar com uma viagem aos locais . Deixa àgua na boca , em especial :
ResponderEliminar- o funge em Angola
- o feijão , que não é "ao vapor" mas "ao alcatrão" , cozido no alcatrão da estrada , ainda em Angola
- o esparguete com sabor a galinha na Zambia
- o esparguete com sardinhas de conserva , também na Zambia
- o esparguete com feijoada à transmontana , na Zambia a caminho de Moçambique .
Merece uma viagem para seguir este verdadeiro "Guia Michelin" da gastronomia .
Continuo atento .
Ângelo
E as moças não te terem pedido uma imperial é uma sorte...
ResponderEliminarAbraço
FORÇA, ENG. PEDRO FONTES!!!
ResponderEliminarÉ concerteza um ENGENHEIRO DA MOTA-ENGIL!!
Um beijinho e boa-sorte!!
Paula Rodrigues
Este relato é de 1 de Maio . Aqui na Europa já são 20 de Junho o que mostra bem a diferença de fuso horário !!!!! Com a camada de ozono , tudo se alterou : são as variações climatéricas , é a distorção dos fusos horários ....
ResponderEliminarAguardamos os teus relatos e não te esqueças de dar a conhecer a gastronomia de cada local ...
Abraço
Ângelo
ONDE ANDAS TU, PÁ???!!!!!
ResponderEliminarAbraço
Carlos Miguel