Ainda era noite escura quando o hipopótamo que passara a noite a ruminar a relva à volta do meu quarto, dirigiu-se convicto para a margem do rio. Parecia que a formosa criatura era conhecedora da hora e sabia que dentro de breves minutos, os primeiros raios de sol romperiam do outro lado do rio.
Desapareceu em silêncio nas águas tranquilas do Zambeze, sem se importar com os crocodilos e sem fazer uma única ondinha de agitação. Apesar do seu grande e pesado porte, o hipopótamo parecia completamente hidrodinâmico, deslocando-se em perfeita harmonia com o meio em que estava submerso.
O restaurante/bar da Breezers Lodge proporcionava magníficos cenários de “nascer-do-sol” a todos aqueles que se dispusessem a acordar cedo.
Era um espectáculo de contrastes com breves minutos de duração e que ultimava à medida que o Sol se elevava no céu para iluminar o dia com todo o seu entusiasmo.
A etapa do dia era até Mvuu Lodge, um local também nas margens do rio Zambeze mas já dentro da primeira área do Parque Natural. Segundo o que eu tinha conseguido apurar, a Mvuu Lodge estava preparada para receber campistas enquanto as restantes pensões do parque, acomodavam os visitantes nas suas próprias instalações.
Eu estava decidido a visitar o Parque do Baixo Zambeze, pelo que às 8h00 despedi-me da Marie-Anne e do Jay, para iniciar a curta etapa até à Mvuu Lodge.
Voltei a atravessar a “ponte” construída com sacos de areia e pedalei os poucos quilómetros de regresso à estrada (leia-se picada) principal.
Quase 40 minutos mais tarde estava parado novamente. Desta vez em cima do batelão, à espera que enchesse de passageiros para transpor o rio Kafue (um afluente do Zambeze).
Dedicava mais empenho nos pedais que o habitual. A etapa era curta o que me permitia expender algumas energias prematuramente.
O dia estava a correr bem. O vento não se fazia sentir e a temperatura estava bastante agradável para um “passeio” de bicicleta.
Como nada podia correr bem do início ao fim, o suporte de um dos alforges resolveu perder o parafuso que o sustentava, fazendo a mala cair.
Com uma boa dose de paciência tentei encontrar o parafuso e coloca-lo no lugar. Simultaneamente à operação de aperto do parafuso, levantava a mala caída com um cotovelo, segurava a bicicleta (que insistia em não estar quieta) com os pés e um ombro, apontava o parafuso com uma mão e a rodava a ferramenta com a outra… ao mesmo tempo que tentava abanar as orelhas para afastar as moscas que insistiam em pôr à prova a minha capacidade de auto-controlo.
Tudo isto rodeado por miúdos que me olhavam como um extraterrestre, sem nunca se terem oferecido para colaborar. Nem mesmo quando dei-me por derrotado e pedi para um deles segurar na bicicleta enquanto eu apertava a mala… ninguém se ofereceu… ou então não percebiam inglês…
Optei pela escolha do voluntário à força. Apontei o dedo para o maiorzinho e que aparentava ter corpo para poder segurar o meu velocípede. Com um inglês simplificado ao máximo sendo este acompanhado de alguma mímica, consegui me fazer entender. “You… here…”.
Estava resolvido este problema. Uma mão no guiador, a outra no acento e a bicicleta estava segura.
De repente surgiu um segundo problema… ou melhor surgiram vários problemas… os restantes miúdos perderam o medo e agora também queriam segurar na bicicleta.
Quarenta minutos depois, estava novamente em movimento e com os alforges reparados.
A estrada de terra vermelha estava em bom estado e convidava a andar.
A paisagem não mudara muito.
Estava repleta de capim seco, muito arvoredo de meia altura e algumas árvores de grande porte.
Faltavam 10 minutos para as 12h00, quando cheguei à primeira entrada do parque. Estava autorizada a circulação de bicicletas entre a primeira e a segunda entrada. A desta última, só era autorizada a entrada de veículos 4X4.
Preenchi o papel de registo apresentado pelo oficial em serviço e perguntei-lhe quais as precauções a tomar, uma vez que seguia de bicicleta.
Segundo o mesmo, não havia nada de especial a considerar. Apenas deveria me manter na estrada principal e evitar me aproximar dos elefantes.
- A esta hora os elefantes estão todos no rio a banhar-se… - afirmou veemente convicto.
Era o que eu queria ouvir. Faltavam poucos quilómetros para a Mvuu Lodge que poderiam ser facilmente percorridos em menos de uma hora. Sendo assim eu poderia sonhar em realizar um safari durante o período da tarde.
O calor apertava e consequentemente a sede, no entanto as pernas continuavam em boa forma e mantinham a capacidade debitar binário ao centro pedaleiro.
Pela primeira vez em muitas centenas de quilómetros, o iPod seguia desligado por opção.
Preferia ouvir os sons provenientes do silêncio do mato. Não só pela paz que este transmitia como também como um instinto de precaução.
À medida que eu avançava na estrada, encontrava vários novelos de palha com tamanho de uma bola de bowling. Havia também outros novelos completamente esborrachados, mas fosse qual fosse a condição das bolas, todas elas provinham da mesma fonte… Eram os excrementos de elefantes.
Afinal o guarda do portão estava certo. Os elefantes passavam por aqui para irem “tomar banho” ao rio. Ao final da tarde regressavam para o mato devorando todos os galhos que encontravam no caminho.
Podia agora distinguir as formas das patas dos elefantes marcadas na fina película de areia que cobria a estrada. Estranhei o facto de as últimas pegadas estarem muito nítidas e não haver marcas de pneus por cima delas, tal como nas pegadas anteriores.
Pedalava a olhar para o chão envolvido na minha análise a pegadas de elefante, quando subitamente surge à minha frente um riacho seco.
Esqueci as pegadas de elefante.
À pressa, preparei os travões e engrenei as mudanças que me iriam permitir descer e subir a vala sem cair nem colocar os pés no chão.
A descida da vala correu de maneira pacífica, no entanto a subida requereu algum esforço extra, devido ao facto de eu não ter engatado a mudança correcta.
Estava nos últimos 2 metros da subida quando ouvi um barulho do meu lado esquerdo.
Com uma ligeira rotação do pescoço complementada pelo movimento dos meus olhos, identifiquei uma figura majestosa a escassos metros de mim.
Era um embondeiro…
-Nada de especial – Concluí.
Mas encostado ao embondeiro estava a origem do barulho que eu ouvira segundos antes…
… Um elefante.
Olhámo-nos nos olhos… sem que eu abrandasse a minha cadência.
Estávamos tão perto um do outro que se eu estendesse o meu braço e o elefante estendesse a sua tromba, poderíamos trocar um bacalhau.
A beleza do encontro durou pouco mais que dois segundos. Assustado, o elefante rodou sobre ele próprio e saiu a correr para o meio do mato, onde estavam os restantes elementos do grupo.
Eu continuei a pedalar… para duas dezenas de metros e cinco segundos depois, sentir os joelhos gelarem e as minhas pulsações passarem a barreira das 160 bpm, sem que o esforço físico tivesse sido incrementado. Resultado do inesperado e pesado encontro no meio do mato.
Poucas centenas de metros mais à frente, reparo num jipe branco parqueado uns 8 metros fora da estrada.
Era o Tom e a Victoria Ryan com a Brigitta Cruikshank, que estavam a passar uns dias no Parque Nacional.
Haviam decidido estacionar a viatura naquele local numa tentativa de avistarem elefantes, que segundo referiam ainda não tinham visto.
Contei-lhes sobre o meu encontro espontâneo com um elefante mesmo antes da última curva, enquanto engolia umas tostas de salmão fumado regadas por uma Savanna gelada.
Permanecemos num saudável diálogo até que o tabuleiro das deliciosas tostas de salmão fumado, findou. Estava na hora de prosseguir viagem até à Mvuu Lodge.
Pedalava os últimos quilómetros da etapa com todos os meus sentidos no máximo da sensibilidade. O mato era agora mais denso e eu não queria ser apanhado desprevenido mais uma vez.
Cheguei à Mvuu Lodge às 13h30. A pensão estava colocada na margem do rio Zambeze. Do outro lado do rio podia avistar o Zimbabué.
Tal como a Zambezi Breezers Lodge, a Mvuu Lodge possuía tendas-quarto (totalmente equipadas) e também uma área para campismo.
Optei pelo campismo. Montei a tenda uns 70 metros do bar e equidistante entre o fogareiro e os quartos-de-banho.
Tinha à minha disposição uma cozinha completa e exclusiva.
Podia cozinhar o meu esparguete instantâneo com sabor a camarão, que serviria de almoço.
A possibilidade de participar num safari esta tarde, estava fora de questão. O veículo destinado a este tipo de passeios tinha um número mínimo de participantes… e eu era o único. Na melhor das hipóteses poderia ser que houvesse visitantes na manhã seguinte podendo assim partilhar a viatura.
Numa passeata pelas vizinhanças da minha tenda, identifiquei vestígios da passagem de hipopótamos.
Algo me dizia que iria ter a “aparadora da relva” ligada e a fazer barulho a noite toda mesmo do outro lado das lonas da minha tenda.
As linhas eléctricas haviam ficado alguns quilómetros antes da entrada do porque, pelo que a Mvuu Lodge dependia de baterias recarregadas durante o dia através de painéis solares.
De maneira a economizar a energia acumulada, toda a área de campismo era mantida às escuras. A única luz existente era em cima do balcão do bar.
Às 19h00 iniciei a preparação do meu ansiado jantar.
Trinta minutos mais tarde degustava, iluminado pela minha pequena lanterna, meio pacote de esparguete acompanhado por uma lata de almôndegas.
Estava com a barriga quase cheia e por ainda não serem 20h00, decidi deslocar-me ao bar da pensão. Após atravessar os 70 metros de relvado, verifiquei que os únicos dois vultos que se encontravam na zona, era o empregado de balcão e o guarda-nocturno.
Pedi uma bebida e sentei-me numa das mesas desocupadas enquanto apreciava a tranquilidade envolvente.
Não estava sentado há 5 minutos quando os funcionários informaram-me que iriam recolher. Retorqui que havia acabado de chegar ao bar e que não fazia sentido ir para a tenda quando ainda não tinha aquecido a cadeira onde me sentara.
Os empregados retiraram-se, deixando-me a luz do balcão acesa.
Permaneci sozinho no balcão, a ouvir os sons do Zambeze e a tentar adivinhar qual a sua proveniência. Possivelmente, eu era a única fonte de calor nas imediações pois parecia que todos os mosquitos do Zambeze voavam em meu redor.
Ainda não eram as 21h00, todavia aceitei que estava na altura de me abrigar nos meus aposentos livre de mosquitos.
Quando me preparava para descer os dois degraus do bar, capto um som familiar. Tratava-se do inconfundível triturar de um hipopótamo que resolvera sair do rio mais cedo para vir aparar a relva do jardim.
Estava a poucos metros de mim, mas pior que tudo, encontrava-se com todo o seu porte mesmo no meio do caminho que eu teria que percorrer. Só a cabeçorra é que se encontrava na relva.
Eu não podia fazer nada senão esperar que a grandiosa companhia se decidisse a ir “pastar” para outro lugar.
Permaneci na entrada do bar tentando acompanhar os movimentos do animal com a minha lanterna. No entanto esta não iluminava mais que 5 a 7 metros de distância… e eu não pretendia me aproximar da criatura, apenas com o objectivo de o ver melhor.
Esperei longos minutos até que o hipopótamo desapareceu na escuridão. Com o feixe de luz da lanterna percorri o horizonte em busca de uma silhueta oval e de grande porte.
Não havia nada. Respirei fundo e avancei em direcção à tenda.
Eram cerca de 70 metros que me separavam da minha tenda, mas parecia ser uma distância maior que a mais longa das etapas percorridas de bicicleta.
Caminhava com cautela sempre atendo ao que o feixe de luz encontrava.
De repente distingo duas bolas brilhantes no meio da negrura da noite. Eram os olhos do hipopótamo que uma vez mais encontrava-se no meio do meu caminho.
Não tinha nenhuma solução à vista para conseguir chegar à tenda. Regressei então para o bar mantendo um olho atento aos movimentos do animal.
Num dos móveis do bar, ainda estava o termo com água quente, a caixinha do café, as carteirinhas de chá e o açúcar. Pelos vistos nem tudo corria mal. Sempre podia beber um chá sentado numa varanda sobre o Zambeze… com um hipopótamo ao meu lado… e ao mesmo tempo que os mosquitos aproveitavam o meu corpo para fazerem a sua diálise.
Uns demorados minutos passaram, quando apercebi-me que o silêncio havia conquistado o seu espaço. Não se ouvia o “aparador da relva”. Possivelmente já se encontrava de barriga cheia e decidira regressar ao local de onde veio.
Uma vez mais iria tentar chegar à tenda. Repeti o ritual de precauções antes de descer os degraus do bar.
Iniciei a caminhada. Passei a primeira árvore e pouco depois passei a segunda árvore. Continuei com uma perna à frente da outra, completando passos cuidadosos e mudos.
Cheguei ao parque de estacionamento. Estava a meia distância da minha tenda e estava também em campo aberto.
Continuava sem avistar nem ouvir o animal. Avancei para os últimos metros do percurso com o máximo das cautelas. O hipopótamo tanto poderia estar dentro de água, como também poderia estar algures nas proximidades.
As minhas suspeitas estavam certas. Quando me preparava para sorrir e festejar a chegada à minha tenda, eis que surge detrás de uma árvore, uma barreira de gordura com quatro patas.
Parei de imediato e baixei a lanterna. O bicho ainda não me tinha visto. Em milissegundos pus todas as hipóteses (e os respectivos riscos) em cima da mesa. Tinha algumas escolhas quanto à solução a tomar.
- Continuava a caminhar para a tenda como se nada fosse, passando a menos de 5 metros do hipopótamo;
- Enfiava-me no arvoredo existente no meu lado esquerdo, caminhando escondido até chegar próximo da tenda. Corria o risco de me encontrar com outras bichezas (cobras);
- Tentava assustar o hipopótamo de maneira que este se refugiasse no rio;
- Voltava para o bar, percorrendo de volta os 2/3 da distância entre o bar e a minha tenda.
Tinha conhecimento que os hipopótamos eram animais territoriais e imprevisíveis.
Apesar do seu ar de “calmeirões” pachorrentos, os hipopótamos estavam à frente dos crocodilos no ranking dos “matadores de homens” e causavam mais mortes de humanos do que os leões, búfalos, elefantes e rinocerontes juntos.
Eu estava no parque como turista e o meu objectivo era chegar a Maputo de bicicleta.
Não tinha a pretensão de ser domador de animais nem muito menos, ser mais um número nas estatísticas dos ataques de hipopótamos.
Decidi voltar para o bar… sempre com os olhos postos no bicho… pois sabia que estes pesados mamíferos de patas curtas poderiam atingir os 50km/h.
A luz do balcão estava cada vez mais franca. Começava a ser difícil conseguir ver alguma coisa sem ter que usar a minha lanterna.
Fiz uma pesquisa ao móvel onde estava poisado o termo da água quente.
Abri as portas em busca de algo útil para o meu serão… e encontrei.
Encontrei as toalhas de mesa… o que era perfeito para a minha situação.
Retirei duas toalhas do armário e dirigi-me para o sofá existente no bar. Deitei-me naquilo que seria a cama e enrolei-me nas minhas novas cobertas para me proteger dos mosquitos.
Não valia a pena pensar em fazer nova tentativa para chegar à tenda sabendo que havia um animal, com uma boca na qual eu cabia de pé, algures no meio da escuridão.
Adormeci relativamente rápido, tendo em conta que estava deitado num sofá de 2 lugares e que todos os mosquitos do Zambeze tentavam perfurar as toalhas onde me empacotara.
No entanto acordei várias vezes durante a noite devido aos sons daqueles que coabitavam o espaço comigo.
Além do(s) hipopótamo(s) que insistia(m) em aparar a relva a poucos metros do meu sofá, parecendo uma(s) trituradora(s) de berlindes de vidro, ainda havia um elefante. Este não se cansava de aspirar uma dezena de litros de água com a sua tromba, para depois borrifa-los para o ar criando um efeito de chuveiro.
Restava-me adormecer e desejar que a noite passasse rápido…
Bons sonhos Pedro!
ResponderEliminarHATARI! :)
Dá notícias depressa...pois nos filmes de acção as coisas acontecem um pouco mais rápido!... (ainda nos matas de ansiedade mais depressa que os hipopótamos, elefantes e crocodilos a ti).
ResponderEliminarGrande Abraço
Cacita