Angola – O Último Dia (Lumbala N’Guimbo-Mossuma)

 

O acordar de hoje em nada diferia do despertar do dia precedente. As únicas diferenças eram que tratei de avisar o empregado, com a devida antecedência, acerca do carvão que “não queria acender” e que desta vez iria para o porto de motorizada pois a bicicleta já se encontrava no local de embarque.

Uma vez no porto e com a bicicleta confortavelmente instalada na proa da embarcação, preparei o bocado de madeira onde iria sentar-me pelas próximas 16 horas. Tinha o saco com as bananas e o pão de maneira acessível, pois além das bolachas e da água quente das garrafas, esse seria sem dúvida o meu almoço, lanche e jantar.

DSCF3012

Estava ansioso por partir naquela viagem de 16 horas, confinado à minha metade de metro quadrado de espaço em plano inclinado. O programa que havia feito dias antes de descansar ou mesmo montar a tenda dentro do barco eram completamente ridículos. Teria que me manter relativamente sossegado para evitar que a barcaça oscilasse muito.

Eram as 8h00 e estava na hora da partida. Últimas despedidas aos meus companheiros de banho de rio e saltei para cima da embarcação.

DSCF3014

Aos meus pés encontrei um par de coletes salva-vidas. Reparei que nenhum dos outros passageiros usava colete, talvez pela robustez e segurança da embarcação ou pelas águas do rio não serem muito profundas.

Optei por usar os meus coletes salva-vidas como almofada e como encosto para as costas.

DSCF3025

Seguíamos rio abaixo as cortar as águas azuis transparentes ao som de um motor que se desligava sozinho a cada 3 minutos.

DSCF3021

Tudo à nossa volta era água. As margens estavam ao longe onde se avistava um pouco de terra. Toda a vegetação que nos circundava, estava de facto submersa. Conseguia ver claramente os bancos de DSCF3047areia do fundo do rio e o capim mergulhado que não alcançava a superfície.

Havia bifurcações ao longo de todo o trajecto como se de um labirinto se tratasse.

 

O dono do barco dava ideia que conhecia o percurso como a palma das suas mãos, no entanto isso não evitava umas bruscas mudanças de direcção que faziam as madeiras da barcaça rangerem, nem evitava umas visitas ilegais ao capim onde desaparecíamos quase por completo.

DSCF3028

Ia enganando o estômago com o pão ainda quente que comprara durante as primeiras horas do dia e com bananas. Os outros passageiros vieram melhor preparados. Traziam panelas com funge e molho de tomate que os manteve entretidos por largos minutos.

O pequeno espaço onde me encontrava, começava agora a causar todo o tipo de incómodos ao meu corpo. As pernas necessitavam de ser esticadas e os músculos das costas estavam a pedir um encosto. DSCF3035A tábua onde estava sentado, mesmo com o colete salva-vidas a fazer de almofada, fazia-me ter saudades do selim da bicicleta. Aconcheguei as malas de outros passageiros para tentar fazer uma superfície de apoio às minhas costas,  pus as pernas em cima da borda do barco e deixava-me estar até sentir que tinha o corpo dormente.

DSCF3034

 

Nessa altura, estava na hora de trocar a nádega de contacto com o banco e de trocar a perna de baixo para cima.

 

Aqui e ali cruzávamo-nos com outras embarcações que faziam o transporte de mercadorias e passageiros, ou que simplesmente dedicavam-se à pesca. Para evitar algum inconveniente, o dono do barco abrandava o curso sempre que avistava outra barcaça.

DSCF3030

DSCF3041Até à fronteira havia apenas 2 paragens. A primeira para colher o extintor de incêndio do barco, que não sei como, mas estava com um indivíduo que encontrámos no meio do trajecto.

A segunda paragem, umas horas mais à frente, para alguns dos passageiros aliviarem, no meio das vagens de arroz, a tensão intestinal provocada pelo funge.

Eram 14h35 quando atracámos no porto de Mossuma. Fora 6h21m sentado numa tábua revestida a colete salva-vidas para fazer os 66,7kms que separavam os dois postos fluviais.

DSCF3055

DSCF3056Mossuma estava “isolada” do resto do território Angolano durante cerca de 9 meses do ano devido às cheias. Uma vez que a estrada encontrava-se submersa, o único acesso possível era o uso de embarcações do género do “True Colour Coach”.

 

DSCF3059 

 

Como estrangeiro, tive que me deslocar ao modesto gabinete do Chefe da Imigração a fim de colocar no passaporte, o carimbo de saída do país.

 

 

Os restantes passageiros estavam dispensados destas formalidades, no entanto os oficiais da Alfândega inspeccionavam as suas mercadorias e bagagens que estavam dispostas pelo barco.

DSCF3064

42 Minutos mais tarde estávamos postos para partir. Ainda tinhamos pela frente mais de 8 horas dentro da canoa a motor.

DSCF3066Enquanto observava as crianças a banharem-se num rio com “jacarés”, despedia-me com um soluço atravessado, daquele que seria o último pedaço de terra firme em território Angolano.

 

A margem afastava-se da embarcação movida pelos gritos dos pequenos banhistas que de uma maneira entusiasta se despediam do branco que um dia chegou ali com uma bicicleta em cima de um barco.

DSCF3068

Despedia-me de Angola e dos angolanos, despedia-me do caloroso acolhimento que tive nas aldeias e vilas por onde passei, despedia-me do característico “Bom dia sim”, do “Nada” e do “Ainda”, despedia-me do apetitoso funge, despedia-me da curiosidade sobre o motor da bicicleta e dos seus infindáveis pneus, despedia-me enfim… de Angola.

DSCF3038

Continuámos viagem por entre vagens de capim submerso onde frequentemente nos cruzávamos com outros navegadores nas suas “frágeis” embarcações carregadas de carga.

DSCF3076

Foram necessários mais 50 minutos e 13kms até que transpusemos a linha imaginária da fronteira Angola/Zâmbia.

DSCF3078

Agora estava na Zâmbia…

Para trás ficavam:

Kms percorridos: 1596kms
Tempo Total: 113hrs e 36mts
Tempo em Movimento: 90hrs e 28mts
Velocidade Média: 17,6km/h
Média Diária: 94kms/dia
Banhos de Chuveiro 10
Banhos de Caneco ou Balde: 8
Banhos a Toalha Molhada: 1
Banhos no Rio 3
Dias Sem Banho 1
Banhos de Água Quente: 10
Banhos de Água Fria: 12
Noites em Tenda: 4
   
Viagem de Barco  
Horas de Barco 7hrs e 54mts
Kms de Barco 79kms
Velocidade Média do Barco 10km/h

DSCF3080

12 comentários:

  1. ---falta a estatística do funge .Quantas vezes não comeste funge .

    Pelos vistos isso é uma viagem de "lord" !

    Abraço
    Ângelo

    ResponderEliminar
  2. ... e já agora das bananas, bolachas de chocolate e Coca-colas!!!

    Grande abraço

    Carlos Miguel

    ResponderEliminar
  3. Nem mais tens de actualizar essas estatísticas...
    Um abraço e força nas "canetas"

    ResponderEliminar
  4. Fónix, gajo...
    até eu quase que ia ficando com a lágrima no canto do olho.... dessa despedida de Angola...

    Beijos!
    (e cuidado com o sol... que qualquer dia não acreditam mesmo que és branco!!)

    Ah! Quando prevês chegar a Maputo? Quanto tempo pensas lá ficar?

    Mais beijos,
    Caucas.

    ResponderEliminar
  5. Gosto tanto desta tua veia sentimental... podias ser sempre assim... quer dizer, sempre, sempre, também não... senão eras um bocado totó... mas, mais vezes...

    (de certeza que o Marco (o Alentejano) concorda comigo... ihihih!!)

    ResponderEliminar
  6. Ah!!! Afinal ñ é só de bike... Devias atravessar o rio a pedalar!!! Ah pois é!!!!!

    ResponderEliminar
  7. Nao sei se reparaste mas a velocidade média que fizeste de bicicleta foi quase o dobro da velocidade média da "lancha".
    Dá-lhe binário...

    ResponderEliminar
  8. Para esse troço devias ter levado daquelas
    bikes q há na ria ao pé do Forum, Depois dormir é que já era mais complicado!
    Beijocas enormes
    Margarida

    ResponderEliminar
  9. Que bacana! Boa sorte a você aí na África!

    Nós pedalamos pelo Pantanal brasileiro!

    veja:

    http://trilhaspantanal.blogspot.com

    um abraço!

    ResponderEliminar
  10. Amigo Pedro Fontes,como já percebeu os encantos de África vão perdurar até ao fim das nossas vidas, são passagens que ficam gravadas para sempre nas nossas memórias. No meu tempo ao cimo da colina no Lumbala ficava o hospital de leprosos (que foi ocupado na guerra civil por um dos beligerantes e destruído quando começou a demandada, assim como a Igreja e quase todas as estruturas em construção civil existentes no tempo dos portugueses) hospital que era apoiado pela Missão de S. Bonifácio, que congregava os Salesianos e as Irmãs Teresianas, aliás tenho recebido algumas noticias da Superior, Teresa Kalende que é Directora Conselheira da escola secundária local de Lumbala Nguimbo. Do outro lado do vale, à esquerda no sentido norte/sul existe ainda uma pista para aeronaves, construída nos anos sessenta para apoio militar e ao lado existia o Aquartelamento de Comando do Batalhão do sub-sector operacional na zona, como aliás se pode ver no Earth Google, apesar da passagem dos anos. Em anexo seguem algumas imagens do meu tempo, o Quartel, o monumento ao aviador e geógrafo Carlos Viegas Gago Coutinho, a Igreja, e uma foto da ponte sobre o Mussuma onde passamos uns meses de "férias"
    Quero pedir desculpa, mas "abusivamente" extorqui-Lhe algumas fotos para o nosso Blog, devidamente identificadas quanto à sua proveniencia, como é óbvio.
    Tenho alguns comentários a postar na sua aventura, de alguns locais, agora nossos conhecidos, que deixaram boas e também más recordações para o resto da vida.
    um abraço

    ResponderEliminar
  11. Comcordo com a Caucas ; )
    Pauli

    ResponderEliminar
  12. Desculpa, quería dizer "concordo"

    ResponderEliminar