2º Dia da Fase II (Caiaza – Dala)

 

Hoje era Quarta-Feira 14 de Abril e fazia 2 semanas que havia iniciado a minha viagem de bicicleta. Contrariamente à Quarta-Feira passada, hoje não acordei assim tão feliz, basicamente devido a duas razões. A primeira razão, foi que passei a noite com dores de garganta e sempre a fungar do nariz. A segunda razão, foram os ratos que não de deixaram dormir. Ontém à noite, assim que se deixou de ouvir barulho na Cantina Caiaza, os ratos invadiram o local na busca de alimento. Apesar de estar dentro na minha tenda, ouvia a correria no chão e sobre as prateleiras da cantina. Ouvia-os a mexer nos sacos plásticos onde provavelmente estaria o pão que eu iria comer no pequeno-almoço. Ouvia o retinir dos talheres que cediam sob o peso das pequenas criaturas. Distinguia o corre-corre para a frente e para trás. Conseguia perceber que alguns deles já estavam na segunda ou terceira prateleira da estante que estava por detrás do balcão enquanto outros já se aventuravam pelo balcão fora.

Por acaso costumo deixar sempre as malas da bicicleta fechadas e o restante das coisas, estavam em cima de um pilha de cadeiras plásticas. Neste ponto estava descansado. A bicharada nunca ia lá chegar.

Na realidade os ratos por si só não me causavam confusão. O problema era que estes não respeitavam quem estava adoentado e queria dormir. Não se limitavam a correr de um lado para o outro, comer e ir embora. Faziam questão de entrarem em todos os sacos de plástico e caixas. Se por acaso dava para ficarem presos e não conseguissem sair, o problema resolvia-se mandando tudo ao chão. Acho que nunca desejei tanto ter um gato comigo. Estava prestes a pôr os tampões nos ouvidos para que conseguisse abstrair-me da barulheira e adormecer quando sinto um atrevido a querer enfiar-me debaixo da tenda. Calmamente abanei um pouco a estrutura da tenda para assustar o bicho. Resultou, mas agora não podia pôr os tampões nos ouvidos. Se houvesse um contra-ataque poderia acontecer que os ratos roessem o chão da tenda e entrassem. Passei o resto da noite de sentinela a repelir aqueles que se aproximavam da tenda. Não só os que ficavam pelas extremidades da tenda, como também os que se enfiavam debaixo desta. A última coisa que eu queria era adormecer e rolar sobre um dos ratos com personalidade de mineiro. DSCF2526Isso quereria dizer que de manhã teria que andar a retirar ratos em forma de “calquitos” da tela da minha tenda.

 

Às 5h30 a tenda já estava empacotada e em cima da bicicleta. Tomei um pequeno almoço de funge com restos da carne de ontem e parti para Dala às 6h40.

 

A estrada continuava em péssimo estado, o que iria fazer com que os 95kms até Dala parecessem uma eternidade. Ainda mais que as dores de garganta e a ligeira dor de cabeça permaneciam. Não sei se esta irritação da garganta era originada pelo pó que “comi” ontem ou se era originada pela descida de temperatura.

Continuei aos saltos estrada fora, sempre na tentativa de escolher o melhor lugar para colocar a roda da frente. A condição da estrada exigia bastante cuidado não só para evitar cortar algum pneu nas inúmeras reparações feitas com cascalho solto, como também para poupar os suportes que sustinham os 30kgs de carga à bicicleta. A última coisa que podia acontecer era partir o suporte dos alforges.

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Em muitas ocasiões optava por seguir pela berma, pois com a sua fina camada de areia amortecia as irregularidades da estrada no entanto exigia mais das pernas.

Os camiões do empreiteiro chinês continuavam a passar a toda a velocidade sem se importarem com o pó que levantavam. Cada vez que passava um camião eu era obrigado a parar a DSCF2498bicicleta, pôr água nos olhos e bocejar um pouco de água para lavar a boca. Por vezes apetecia-me fazer parar um dos motoristas chineses, abrir-lhe bem os olhos e perguntar-lhe se por acaso ele não me tinha visto de bicicleta na estrada.

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Passava agora longos períodos sem ver vivalma, no entanto mais cedo ou mais tarde cruzava-me sempre com alguém de mota, de bicicleta ou mesmo a pé, o que auxiliava a abstrair-me da questão “Leão”.

 

 

À passagem sobre o rio Luachimo deparo-me com dois imponentes marcos dos tempos de guerra, em posição de defesa daquele que seria considerado um ponto estratégico – a passagem sobre o rio.

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Cheguei à aldeia de Luachimo às 10h30 da manhã, o que encarava como sendo bastante bom. Para trás ficaram 50kms de picada e saltos em 4 horas (paragens incluídas) de viagem. Se continuasse assim, poderia chegar a Dala no início da tarde.

DSCF2564Tentei almoçar na única cantina de Luachimo, mas esta cantina há muito que deixara de confeccionar refeições (nem mesmo funge), sendo apenas um posto de comércio tradicional. Ainda pensei em comprar um pacote de esparguete e preparar o meu almoço, mas esta solução roubar-me-ia muito tempo. Optei por algo mais rápido.  Comprei 5 bananas e 3 tomates (estes últimos a custo zero) que acompanhados por uma lata de leite condensado e 2 bolachas de chocolate, fizeram a delícia do dia.

Estava pronto para voltar à estrada não sem antes adquiri algum conhecimento na arte de manter um pneus a rolar.

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Antes de sair de Luachimo sondei uma vez mais a existência de leões na área. “Aqui não… só mais lá à frente…” era a resposta que constantemente recebia das gentes locais. Segui viagem com o iPod a tocar baixinho para que me permitisse ouvir os sons que provindos do mato. O vento, sempre em sentido inverso ao meu, não fazia grande transtorno devido à baixa velocidade que a estrada permitia rolar. Mesmo quando este levantou fazendo-me suspeitar que vinha aí chuvada.DSCF2566

 

A estrada continuava em péssimo estado, mas desta vez era possível encontrar vestígios de alcatrão que permitiam-me recuperar tempo. No entanto, logo a seguir estava novamente com mais um troço de pedras, buracos e areia pela frente.

 

Cheguei a Dala pouco passava das 14h00 - 7horas e 24minutos depois de ter saído de Caiaza.

DSCF2568Deparo-me com dezenas de jovens a brincar no rio e uma grande algazarra e berraria na margem. Era o Dia da Juventude e todas as crianças de Dala e arredores estavam numa festa nas margens do rio Tchihumbue.

Enquanto me dirigia para a pensão, era seguido por um entusiastíco grupo de crianças que desertara da festa da juventude.

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DSCF2585 A pensão era propriedade do Sr. Rafael director do INEA Saurimo (com quem tinha almoçado no Sábado anterior) e onde o alojamento com direito a alimentação eram gentilmente assumidos pela Mota-Engil de Saurimo (obrigado Paulo).

Assim que o meu corpo arrefeceu do esforço físico, comecei a sentir-me doente outra vez. O nariz entupiu em segundos e a cabeça começou a ficar pesada. Pelos vistos as 5 bananas, os 3 tomates acompanhados de leite condensado e bolachas de chocolate, não tinham dado a energia suficiente para o resto do dia. Enquanto preparavam o meu almoço na Hospedaria Tchihumbue, tomei um Red Bull para repor os níveis energéticos.

Almocei uma omeleta gigante e fui visitar as quedas de água de Dala onde, numa das margens, pemaneciam os restos de uma barragem inacabada construída pelos Cubanos décadas antes.  A barragem encontrava-se completamente ao lado das quedas de água, não DSCF2587afectando a sua beleza natural e onde se poderia retirar um elevado rendimento hidroeléctrico para a população local. Ao que me informaram, o governo Angolano estava a estudar a hipótese de reabilitar e concluir a construção da barragem.

 

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A Hospedaria Tchhumbue era provida de duas televisões, talvez cerca de metade das televisões da vila. Durante o jantar no bar da pensão, não me apercebi do cenário cinematográfico que me rodeava. Estava na hora da telenovela e enquanto eu consumia o meu macarrão, os outros clientes bebiam a sua cerveja, sempre atentos ao desenrolar do episódio. Até aqui tudo bem. O que me surpreendeu foi, quando saia da sala encontrar dezenas de pessoas sentadas no chão e outras tantas do lado de fora do gradeamento em silêncio a assistir a novela pela 2ª televisão que estava virada para a rua. Nada as impedia de entrar na sala e sentar, mas seguramente teriam que consumir alguma coisa. No meio de tanta gente sentada no chão e gente agarrada ao gradeamento, duvidava que todos conseguissem ver a imagem e/ou ouvir o som. Deixei-me estar por uns segundos a observar a cara das pessoas a ver a novela, quando subitamente o episódio acabou. Ainda nem tinha começado a passar o genérico, já a televisão estava desligada e recolhida para interior do bar. Simultaneamente os telespectadores levantavam-se e saiam em grupos desaparecendo no meio da escuridão da noite. Entretanto para aqueles que permaneciam a consumir, a televisão que estava dentro da sala continuava ligada e a passar programação.

Amanhã vou tentar chegar a Luena. São mais 100kms só que pelos vistos em piores condições do que aqueles que havia feito hoje.

15 comentários:

  1. Ratos ?
    Se fossem ratazanas , já tinhas a experiência do Benin .... assadas no espeto ! Iam que nem um figo ....

    Abraço

    Ângelo

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  2. Genial la fotografía tuya con la multitud de niños corriendo detrás...Triunfando como la cocacola, no? : D
    +Beijos
    pd: Yo coincido con Ângelo, esta historia da para un libro! o un documental

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  3. Olá
    Divulgamos a meio mundo …. Vamos ver se te fazem uma recepção condigna à chegada a essa cidade única – Maputo!!.
    Um abraço, Ana, João, Joana.

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  4. Grande pedro Que Coragem, fica aqui para reflectires algum significado da palvra coragem: Enfrentar os desafios com confiança e não se preocupa com o pior. O medo pode ser constante, mas o impulso o leva adiante. Coragem é a confiança que o homem tem em momentos de temor ou situações difíceis, é o que faz viver lutando e enfrentando os problemas e as barreiras que colocam medo, é a força positiva para combater momentos tenebrosos da vida.

    Abraço Amigo Nuno Sacra

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  5. Ao ler o comentário do Nuno Sacra , lembrei-me do pneu da bicicleta amarrado ..... que sendo um simples "farrapo" ilustra bem toda a definição .
    Confiança , sentido prático de vencer as dificuldades e capacidade em encontrar soluções .

    Abraço

    Ângelo

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  6. Pedro
    Estou a acompanhar a tua grande aventura.
    Imagina que eu , com 85 anos , ia na minha cadeira de rodas a acompanhar-te !
    Força e coragem . Estamos todos a seguir a tua viagem

    A tua avó Maria da Glória

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  7. A determinação e coragem é o essencial para se cumprirem projectos que abraçamos. Não há ratos, nem leões que resistam!!!
    Força e como se diz aqui na terra: A Luta Continua e a Vitória é Certa.

    Um abraço
    Fernando Jorge

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  8. Pedro,

    parabéns e força! estamos aqui em maputo a acompanhar. um abraço, hugo

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  9. Olá Pedro

    Demoras muito?
    Estou cheio de pressa. A minha bicicleta tem um pneu para remendar! ;)
    Juízo, tem muito cuidado.
    Desejo te muita força.
    Já tenho saudades tuas.

    Do teu irmão João

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  10. Habituas-nos aos teus comentários e depois estranho estar tanto tempo sem "aventura" .

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  11. Mas....ainda estou a pensar no pneu da bicicleta , amarrado com um cordel . É mesmo de "inginheiro" ......., prático , resistente e muito eficaz para andar na picada ou mesmo no alcatrão !

    Ângelo

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  12. Caro Pedro,

    A Ana Vizinho contou-me da tua aventura e enviou-me o teu blog, cujos ratos já me arrepiaram. Coincidência engraçada é que comecei Há pouco tempo a ler o livro do Serpa Pinto com a sua aventura de Angola a Moçambique, do Atlântico ao Índico. Ainda não percebi o trajecto dele nem, ainda, o teu mas deve o sentido é semelhante. Boa aventura e, não sabendo o objectivo nem as expectativas, se for como comigo, dar-te-á uma volta de 180º na vida. A minha foi tem-me sido muito gratificante, nada fácil como nada é mas muito gratificante.

    Um abraço e força, diverte-te.

    E podes também dar uma olhada nalgumas das minhas aventuras: http://filipepalma.blogspot.com/2010/04/blog-post.html

    Filipe Palma

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  13. Caríssimo: Continuas a surpreender-me com as tuas interessantes descrições, as quais me têm deliciado. Continua em grande e... vai pensando no livro que de certeza iria ser um best-seller. Abraço e mantêm-te firme... Carlos Mugeiro

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  14. Oi!
    Chegaste a avisar o dono da cantina dos ratos?
    Que tipo de espetadas eram aquelas? Eram de algo comestivel?
    E o que é isso de andar a tira fotos às próprias pernas...!
    Beijocas enormes e tudo de bom
    Margarida Pereira

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  15. Grande Pedro
    Estou a adorar ler as crónicas desta tua aventura . Desejo-te uma boa viagem de tudo de bom .

    Um abraço

    Sotto

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