Apesar do trajecto até Mecufi ser curto, eu queria iniciar a pedalada o mais cedo possível.
Em primeiro lugar para aproveitar as horas matinais em que o vento não estava muito forte. Em segundo lugar porque a estrada até Mecufi seria picada e eu não sabia se haveria troços de areia. Em terceiro lugar porque quanto mais cedo chegasse ao destino, mais tempo poderia despender para aproveitar a proximidade ao Oceano Índico.
Tomei o pequeno-almoço às 7h00 e ainda antes das 8h00 já tinha tudo pronto para deixar o quarto do Hotel Cabo Delgado.
Tinha tudo pronto, excepto um pequeno detalhe… Quando ia a montar a bolsa dianteira (a que vai montada no guiador), reparei que o suporte plástico estava partido num dos lados.
Poderia seguir viagem assim mesmo, mas a qualquer momento o suporte iria partir e a mala cairia ao chão.
Pensei em arranjar uma maneira de atar tiras de borracha de uma câmara-de-ar velha, de maneira que o suporte não fosse muito solicitado aos solavancos da condução, no entanto as ideias que vinham da minha mente não eram de grande confiança.
Já estava completamente equipado para sair, o que fazia-me ferver de raiva sobre o porquê de não ter descoberto antes que o suporte estava partido.
Lembrei-me de uma solução colante que trazia numa das malas, mas se não me falhava a memória, essa solução era uma cola metálica e não serviria para plásticos.
Tentei ler as indicações/instruções no rótulo dos tubos de cola, contudo os quilómetros passados juntamente com parafusos e porcas, haviam removido qualquer mm2 de tinta dos respectivos tubos.
A única coisa que diferenciava os 2 tubos de solução era que um deles tinha uma tampinha preta e o outro tinha uma tampinha branca.
Decidi arriscar e preparar a solução que dispunha comigo, na esperança que a mistura resultante colasse plástico.
Preparei, limpei e colei o suporte. Deixei a peça debaixo de um dos pés do cadeirão do quarto a fim de manter a pressão sobre as superfícies a colar.
Entretanto aproveitei para reparar outros dois suportes que se haviam partido nos últimos dias. O suporte da garrafa de água e o suporte interior da mesma bolsa.
Esperei alguns longos minutos até que a solução ficasse completamente rígida. Dei mais um minuto de tolerância e fiz o primeiro teste de fiabilidade ao suporte.
Passou!
Voltei a montar tudo novamente na bicicleta, incluindo a bolsa dianteira. Não tive que esperar mais que 2 segundos para ouvir um PLACK!
O suporte da bolsa partiu, o que quereria dizer que afinal a cola era mesmo para metal e não colava plástico (tal como seria de esperar).
Os outros 2 suportes que entretanto aproveitara para colar, também partiram. Todavia estes não me causavam grandes transtornos para a minha partida.
Começava a sentir a minha carne a cozer debaixo da roupa. Não porque o dia estivesse quente, mas sim devido à pilha de nervos originada pelo barulho dos vidros da janela do meu quarto que estremeciam por acção do forte vento Sul.
Subitamente lembrei-me que na porta vizinha à entrada do hotel, havia uma ferramentaria e que muito possivelmente poderia encontrar Araldite à venda (ou algo semelhante). Seria certamente uma solução para o meu problema.
Voltei a abrir as malas da bicicleta e troquei de roupa, apenas para sair à rua e comprar a tão desejada cola milagrosa. De regresso ao quarto, apliquei a nova solução na peça plástica e voltei a coloca-la debaixo do cadeirão estilo anos 60.
Após algumas considerações resultantes da leitura das instruções de secagem da Araldite, decidi não montar a mala no guiador e assim dar mais algumas horas de secagem à solução. Seria melhor aguardar as 8 horas sugeridas nas instruções até que a mistura atingisse as características desejadas.
Agora teria que arranjar espaço na traseira da bicicleta para nela colocar a bolsa do guiador, Algo que só foi possível através de alguma engenharia.
Com tanta peripécia para conseguir reparar o suporte da bolsa da frente, acabei por deixar o hotel às 10h15, ou seja com 2 horas de atraso. No entanto nada estava perdido e se tudo corresse bem, conseguiria estar em Mecufi à hora do almoço.
Continuava a usar os meus collants que comprara em Lichinga a fim de manter os joelhos protegidos do vento que se fazia sentir.
À saída de Pemba apercebi-me de quão forte estava o vento, tornando-se difícil manter os 15Km/h. Não sabia se devido à humidade resultante da proximidade com o Oceano ou se simplesmente devido à “idade”, mas sentia as tíbias geladas mesmo sabendo que a temperatura exterior estava de certo modo tolerável. Era uma sensação algo incómoda e que juntamente com o vento, impedia-me de pedalar a ritmos desejados.
Seguia agora com menos 3kg na dianteira da bicicleta, o que fazia com que a roda da frente tendesse para andar no ar.
Fazia contas à etapa e facilmente concluí que se o vento continuasse com esta intensidade, iria necessitar de 3 a 4 horas para fazer os simples 50Kms até Mecufi.
Continuei a pedalada tentando entreter a mente com as desgastadas musicas do iPod, ao mesmo tempo que contabilizava os azares dos últimos dias.
Agora que estava quase no “fim” da viagem, parecia que todo o material acusava cansaço e necessitava de férias.
Era o aro da roda traseira que se abriu em duas metades, era os raios que se partiam, era o desviador da corrente que estava empenado, eram as rodinhas do desviador que já não tinham dentes, era um suporte da garrafa que partiu (e uma garrafa perdida), era o suporte plástico da bolsa do guiador partido e era o suporte metálico do interior da mesma bolsa que também dera as últimas.
Por este andar iria chegar a Maputo com a bicicleta aos bocados.
Passava uma hora desde que deixara Pemba. A qual qualquer momento iria rumar para a esquerda em direcção ao litoral, pela tão aguardada picada que me levaria até Mecufi. Antes de chegar à cortada de terra batida eis que vejo à minha frente um carro parado com 2 vultos a olhar para mim. Eram os meus amigos da Associação Desportiva de Pemba (o China e o Pato) que pararam para, mais uma vez, desejar-me boa viagem e dar-me alguns contactos por esse Moçambique fora.
Pouco depois, cheguei ao entroncamento que me levaria para Mecufi. Uma estrada de terra batida, ligeiramente coberta com areia mas de fácil progressão.
O vento forte não me deixava ouvir as músicas que os auscultadores debitavam, forçando-me a exigir da minha mente uma capacidade adicional de abstracção, não só para combater a fome que começava a dar sinais de si, como também para fazer face à baixa performance causava pelo próprio vento.
A picada estava em relativo bom estado. Atravessava várias aldeias, o que obrigava-me a pedalar com atenção redobrada para não atropelar ninguém. Não muito longe conseguia ver o Oceano Índico, no entanto a contemplação da paisagem era completamente desvirtuada devido à acção infausta do forte vento.
Cerca de uma hora depois de ter iniciado a pedalada, e já quando o meu estômago alertava-me que estava na hora de reabastecer, eis que surge o que eu menos desejava… mas que ao mesmo tempo era o que eu mais suspeitava que viesse a acontecer.
Um pneu furado. Não era bem um simples pneu furado. Era o meu pneu traseiro furado. O mesmo pneu que estava tão cheio de farripas de borracha que quase que não havia espaço para o “ar”.
Saí da bicicleta devagar. Pela minha mente passava a realidade em que me encontrava. Desta vez, o simples facto de chegar às ferramentas e ao kit de remendos era uma tarefa mais complicada, pois todos os utensílios encontravam-me na bolsa do guiador. Que por sua vez, seguia algures amarrada na traseira da bicicleta.
Mesmo antes de iniciar a tarefa de tirar o pneu do aro, já tinha perfeita noção que não seria uma missão pacífica. Nos meus dedos ainda estava por colar a pele que se despegara da carne quando tentava montar o pneu no aro (no último furo à saída de Montepuez).
Um pouco céptico, experimentei desmontar o pneu do aro. Em primeiro lugar tentei com os desmontas de plástico. Partiram-se todos os 5 desmontas. Agora não tinha desmontas para pneus…
Em segundo lugar tentei com os dedos e por último lugar com os dentes… Nada.
O pneu não saiu do aro. Lembrei-me da catana que trazia comigo, mas esta nem sequer conseguia entrar entre o pneu e o aro. Usei-a para afiar os desmontas que se haviam partido, mas mesmo assim o pneu não dava qualquer sinal de querer saltar para fora do aro.
Sem ferramentas, não havia nada a fazer. O pneu nunca iria sair do aro pelos métodos tradicionais devido à quantidade de câmaras-de-ar velhas que protegiam as fissuras do aro. Necessitava de algo mais forte, tipo uns desmontas de metal.
Encontrava-me sem solução aparente para remover o pneu do aro.
Afastei-me da bicicleta e dei umas passadas de um lado para o outro da estrada numa tentativa de arejar a cabeça ao sabor do forte vento. Olhei para o embondeiro que calmamente pairava à minha frente como se eu tivesse todo o tempo do mundo para estar ali plantado. Apeteceu-me deitar no meio da estrada, mas com a minha sorte de certeza que nesse momento havia de passar a toda a velocidade o único veículo utilizador da via.
Recentemente havia lido algures que um bom viajante não tem planos fixos nem faz intenção de chegar… Ora tal filosofia era totalmente desacertada para a minha situação. Eu tinha um plano e fazia intenção de chegar a Mecufi (no mínimo) antes de escurecer.
Enquanto divagava à volta da bicicleta surgiu na minha mente uma pequena solução. Se o furo na câmara-de-ar não tivesse sido provocado pelas arestas cortantes do aro, então haveria a hipótese de o mesmo ter sido provocado por um objecto exterior, tipo um espinho ou um arame. Caso tal se verificasse, o resto do spray reparador que ainda trazia comigo poderia ser capaz de aguentar o ar dentro do pneu.
Apliquei o spray cheio de esperanças de ver o pneu a encher. A cada cm3 de espuma branca que a custo passava pela válvula da câmara-de-ar, eu testava a consistência do pneu com a outra mão. Estava a resultar. O pneu ia enchendo devagar até que adquiriu a rigidez pretendida. Esperei uns segundos para ver se o ar se aguentava dentro da câmara-de-ar e logo de seguida montei a roda na bicicleta.
Estava pronto para seguir viagem, desta vez com um pneu cheio de tiras de borracha e espuma reparadora de furos.
À minha frente seguiam paisagens de vegetação esverdeada contracenando com o azul do céu e com o avermelhado da estrada de terra batida.
Todavia tal não era suficiente para distrair a minha mente que não parava de tentar arranjar uma explicação para o facto de sempre que eu tinha um trajecto curto pela frente, este levava muito mais tempo que o planeado.
E hoje era o perfeito exemplo disso mesmo. Uns meros 50Kms até Mecufi encostado ao Índico, através de uma paisagem agradável, mas num dia de vento como eu nunca apanhara até então e um furo na bicicleta justamente quando eu não tinha meios para desmontar o pneu.
Com o passar dos quilómetros abstrai-me dos azares do dia e iniciei a contemplação do cenário que me rodeava. Por vezes do alto das colinas conseguia ver o Oceano, o que fornecia um encanto especial ao dia. As poucas gentes que comigo se cruzavam, pouco ou nada diziam. Limitavam-se a olhar espantados para mim e para a bicicleta. Alguns cumprimentavam-me em inglês ao qual eu respondia com um grandioso “Bom Dia!”, com o intuito de sinalizar a minha proveniência. Contudo o efeito pouco importava para as gentes locais.
E foi quando eu seguia animado, já com Mecufi no horizonte, que o meu pneu traseiro resolveu dar-me mais uns minutos de tensão arterial. Mais um furo.
Decidi não tentar mais nada. Limitava-me apenas a encher o pneu e a percorrer os 2Kms permitidos até que o pneu esvaziasse novamente. Depois repetia o ciclo. Encher o pneu, percorrer mais 2Kms, etc etc etc.
Enchi o pneu meia dúzia de vezes até que dei entrada na Vila de Mecufi. Passavam 20 minutos das 14h00.
Mecufi, tal como tantas outras, era uma vila simpática e com notórios vestígios de abandono e degradação. Dei uma volta pela praceta principal sob o olhar atento daqueles que repousavam nas entradas dos poucos estabelecimentos comerciais.
Dirigi-me para a praia à procura do estabelecimento indicado pelo China e pelo Pato. Um modesto restaurante em frente à praia onde eu poderia encontrar abrigo.
À chegada fui recebido pelo pessoal da casa, que após algumas negociações arranjaram-me local para dormir e ainda se voluntariaram para me ajudar a reparar o problema da minha roda traseira.
A operação era relativamente simples. Com algumas ferramentas emprestadas e a ajuda de terceiros, havia decidido retirar definitivamente o pneu em uso de circulação. Estava na altura de aplicar o pneu novo que comprara no Malawi, quase um mês antes e assim tentar evitar furos escusados.
Aproveitei para reparar a câmara-de-ar que, apesar de nova já contava com dois furos provocados por espinhos gigantes.
Roda traseira reparada e estômago forrado com um delicioso peixe grelhado, estava na altura de virar as minhas atenções para a bolsa do guiador. Uma vez que a cola já estava seca, era o momento de amarrar alguns bocados de arame a reforçar o suporte partido. O dia do teste seria na manhã seguinte.
O serão foi passado na companhia dos meus ajudantes e de um animado professor de história, que tentava ensinar os valores da independência aos mais jovens, ao mesmo tempo que pedia ao “branco” para lhe pagar mais uma cerveja.
“Todo o homem carrega com ele, um mundo feito de tudo o que viu e viveu…”
A etapa contou com 48Kms percorridos em 4h18m, em que 1h06m foram dispendidos na reparação de furos impossíveis. A velocidade média (em movimento) foi de 15Km/h.
Viva Pedro,
ResponderEliminarObrigado pela tua visita no meu blog.
Eu já acompanho a tua aventura à algum tempo. E cada vez que leio mais um episódio, aumenta a vontade que tenho de começar a minha aventura.
Um forte abraço,
Leonardo Maia
De volta à actividade narrativa... Muito bem e muito bom! Continua a aguçar-nos a curiosidade pela aventura! Bjs, S.C.
ResponderEliminarola pedro tudo bem? sou a bela que vive na beira
ResponderEliminarespero que a tua aventura tenha corrido como desejado por agora estou em portugal ate dia 30 de abril e nao resisti em ver o que ja tinhas escrito. vejo que ainda nao escreves-te sobre a beira. fico a aguardar entretanto desejo-te tudo de bom. Bjs e abraços Bela e Joca. esperamos por ti um dia novamente em Moçambique.