O dia amanheceu sem que eu soubesse se iria conseguir iniciar a etapa, fosse até onde fosse.
Nada estava resolvido quanto à minha roda traseira. Aguardava impacientemente pelas 8h00, hora que iria receber o telefonema do Manuel com novidades acerca do aro de 32 furos.
Contudo, a espera tornara-se longa demais para a minha pachorra. Cerca de 1 hora antes do combinado, decidi dar início ao Plano B para que eu pudesse ter a bicicleta operacional, o mais breve possível.
O Plano B magicado na noite anterior, tinha tudo de “teoricamente” funcional. Iria passar o meu aro dianteiro (32 furos) para o meu cubo traseiro (32 furos) e na roda da frente iria aplicar o aro “novo” (36 furos) comprado ao Manuel.
A grande questão colocava-se agora na roda da frente. O aro adquirido ao Manuel não englobava o cubo dianteiro. O ajudante do Manuel não me vendia um cubo sem autorização do patrão… e o Manuel não atendia as minhas chamadas.
“Nada que não se resolvesse no mercado junto à Estrada Nacional”- pensei. Percorri a longa picada do centro de Alto–Molócué até ao cruzamento com a Estrada Nacional. Local onde havia diversos comerciantes que vendiam um pouco de tudo, inclusive peças usadas de bicicletas.
Facilmente arranjei um cubo para o aro “novo” na banca do Manuel, após algumas palavras convincentes ao ajudante do mesmo. Para ajudar à festa, o cubo recém-adquirido não trazia as porcas de aperto do eixo, pelo qual fui obrigado a andar a basculhar todos os caixotes de material usado existente no mercado, até encontrar 2 porcas que enroscassem no eixo. A tarefa para encontrar uma ferramenta para apertar as ditas porcas, já foi de dificuldade residual, devido à abundância de ferramentas universais existentes no mercado.
O perito de bicicletas da noite anterior, apareceu na pensão relativamente cedo. Não aparentava sofrer as consequências dos abusos etílicos, muito pelo contrário, demonstrava uma energia fora do comum para concluir a operação de montagem das rodas.
Enquanto decorria a operação de armação dos raios, aproveite para passear um pouco pelo centro de Alto-Molócué.
Conseguia ver claramente a praceta que cruzara na noite anterior. Os vários edifícios que permaneciam em redor do quadrado central, possuíam as suas fachadas ornamentadas a cores vivas, com logótipos e slogans de marcas e produtos.
Do meu lado direito, ao fundo da rua, estava o mercado dos géneros alimentares. Uma estrutura datada de meados do século passado, cercada por um muro de cimento e onde havia várias bancas no seu interior, também de cimento. O espaço deveria ser pouco dentro do recinto, pois parecia-me haver mais comerciantes e clientes em redor do muro, do que no interior.
Pouco passava das 9h00 e a minha consciência começava a concentrar-se em outro pontos, que não o mercado e as suas gentes.
O vento ainda não tinha dado sinal da sua graça, pelo que poderia avizinhar-se uma manhã tranquila. Todavia, e segundo a minha sina, assim que eu começasse a etapa, o vento haveria de aparecer.
Numa breve inspecção a outros órgãos da minha bicicleta, analisei a folga que o desviador traseiro ostentava e observei o mísero estado em que a 2ª roda dentada se encontrava. Os dentes da cremalheira, estavam reduzidos a curtos alfinetes que não aguentavam qualquer tipo de acoplamento com a corrente. O desgaste no prato triplo, também era visível fazendo-me ponderar seriamente na troca para a corrente suplente (usada), antes que a corrente em uso danificasse completamente todos os carretos da bicicleta.
Eram quase as 11h00 quando o perito entregou-me as duas rodas “enraiadas” e quase prontas. Um serviço feito a pensar nos “meticais” a extorquir ao branco e não na qualidade do trabalho, fez com que eu ficasse com duas rodas quase quadradas a um preço mais elevado que uma bicicleta completa do Manuel.
Valia-me a paciência e a experiência das andanças por estas terras, para explicar (em duas palavras) qual o valor que eu iria pagar pelo serviço prestado e faze-lo ver da miséria do seu trabalho.
De volta ao meu quarto (que mais parecia uma oficina de bicicletas), fui obrigado a despender um par de horas para alinhar e calibrar os aros acabados de “enraiar”.
Por incrível que pareça, assim que coloco um dos aros na bicicleta, reparo que este está todo puxado para um dos lados, de tal modo que ficava pressionado no calço de travão.
Facilmente concluí ser o resultado de uma afinação a olho (de perito) sem ter em conta que as bicicletas tinham travões. Além disso os aros deveriam estar alinhados pelos centros dos mesmos e não por um centro imaginário que pairasse algures na mente de alguém.
O Manuel continuava sem dar notícias. Eu não fazia a mínima ideia se o Manuel havia conseguido arranjar outro aro em Nampula ou não. Além disso o meu aro continuava à consignação, ou seja, ainda não tinha pago o material ao Manuel. Algo que poderia ser ligeiramente problemático se à hora que eu conseguisse dar início à etapa, o Manuel ainda não tivesse aparecido.
Os minutos foram passando, a paciência foi esgotando-se e a fome foi chegando.
Enquanto tentava dar uns últimos toques às afinações dos raios, apagava do meu roteiro os planos virtuais para a etapa do dia.
A distância até Mocuba era aproximadamente de 180Kms, o que teriam que ser percorridos em 2 dias. Nesta altura a questão que estava em cima da mesa, não era a de fazer duas etapas de 90Kms cada, mas sim qual a distância que ainda poderia percorrer para manter em aberto a possibilidade de chegar a Mocuba no dia seguinte.
Por vários avisos provenientes do meu estômago, constatei que as 12h00 aproximavam-se mais rápido do que o esperado. Pedi na recepção da pensão para preparem uma refeição ligeira enquanto eu tentava colocar a minha bicicleta operacional, afinando e desafinando raios de modo a colocar a roda centrada e redonda.
Acabei a almoçar um “pequeno” prato com ½ frango estufado acompanhado por esparguete e que veio contribuir (em muito) para renovar a energia cerebral, que já se demonstrava consumida.
Após o divinal almoço e uma vez os aros prontos, iniciei a fase final de toda a operação - a montagem dos pneus e os ajustes finais nos raios.
Eram as 14h00 quando finalmente dei a reparação por concluída. Pela frente tinha mais 3 horas de luz solar, o que levava o meu lado racional a indicar-me que seria melhor passar o resto do dia em Alto-Molócué e partir na manhã seguinte. Ainda mais que não tinha a certeza a que povoação iria chegar antes do lusco-fusco.
Do outro lado havia a vontade de voltar à estrada e o compromisso de chegar a Quelimane em 3 dias. Sabia que nas restantes horas de luz solar, conseguiria percorrer cerca de 60Kms. Então seria nessas proximidades que eu iria procurar um lugar para passar a noite.
Despedi-me da D. Manuela (deixei o dinheiro da roda do Manuel) e dei início à etapa às 14h20. O destino seria Mugulama, uma povoação a 63Kms de distância e que fora-me indicada pelo pessoal da pensão na hora da minha partida.
Pouco depois encontrava-me de volta à estrada nacional que me levaria para Mocuba.
Com o problema da minha roda traseira resolvido e movido pela motivação do bom tempo, sentia-me o rei da estrada. Para trás ficavam todos os pesadelos que umas rachadelas no aro haviam causado à minha tranquila viagem. Podia finalmente concentrar-me em outras realidades que não fossem em torno de um aro. Tornava a magicar planos para voltar ao fora-de-estrada e assim pedalar pelos caminhos “menos” normais do território Moçambicano.
No entanto manteria a rota planeada até Quelimane. Seguiria pela estrada principal (alcatroada), não só para servir de teste aos dois aros, como também para chegar à cidade de Quelimane na data programada.
O tempo estava bom e o vento não influenciava a minha prestação. A estrada bem pavimentada e quase sem trânsito permitia-me focar no único objectivo do dia. Chegar a Mugulama antes de escurecer.
Continuava a pedalar na tripla, jogando apenas com os carretos de trás para aliviar o esforço das pernas, sempre que surgia uma subida.
Mas nem sempre tal era possível, obrigando-me a utilizar a primeira mudança, para conseguir vencer o gradiente da estrada.
Os minutos foram passando, assim como os quilómetros. Perto das 17h00 o Astro-rei iniciou o seu movimento descendente, desencadeando o processo de variação de tonalidades na paisagem envolvente, pintando de amarelo cor-de-fogo todas as vagens de capim e dando às árvores existentes, tons de verde vivo.
Os últimos quilómetros antes de Mugulama foram percorridos já no lusco-fusco do dia e com a temperatura a baixar significativamente. Simultaneamente o meu estômago avisava-me que já não restava nada do frango estufado nem do esparguete, ingerido horas antes na pensão de Alto-Molócué.
À chegada a Mugulama dou com uma pequena povoação à beira da estrada, desprovida de água canalizada e de electricidade. Nada que fosse novidade para mim desde que iniciei a minha viagem em Luanda. No entanto causava-me alguma surpresa a inexistência de energia eléctrica dada a proximidade a Cahora Bassa e às linhas de alta tensão.
No cruzamento da vila com a estrada principal, perguntei onde poderia comer e passar a noite. Automaticamente fui informado que a pensão estava mesmo à minha frente. Quanto a serviço de refeições, já era mais complicado visto a pensão não servir comidas e o mercado já se encontrar fechado.
Dirigi-me à pensão e aluguei um dos quartos que estavam localizados por detrás do bar.
Com a ajuda de 2 velas, instalei-me no pequeno cubículo mobilado apenas com uma cama e uma cadeira de madeira.
A janela não tinha vidros nem rede mosquiteira. O único obstáculo à entrada de insectos era uma portada construída com tiras de madeira mal ajustadas e por onde era possível enfiar os dedos de uma mão.
Estava visto que teria de deixar o meu “incenso anti-mosquitos” a queimar durante um tempo, com o objectivo de afugentar algumas bichezas voadoras (e não só) que insistiam em dividir o quarto comigo.
A casa-de-banho era comum a todos os quartos e era apenas uma. De decoração muito simples (tal como tantas outras visitadas ao longo da viagem), era resguardada por um velho muro de blocos e uma tela de palha. No seu interior havia apenas um buraco no chão, por onde se faziam as necessidades e por onde escorria a água do banho tomado a balde. A porta era inexistente e o alerta para saber se a casa-de-banho encontrava-se ou não ocupada era dado de forma verbal e curta. A iluminação era feita por uma das velas emprestadas pelo dono da pensão, o que fazia o simples acto de despejar água pela cabeça abaixo, num movimento de alta perícia. Em primeiro lugar para não apagar a vela com os salpicos de água, e em segundo lugar para não deixar a vela pegar fogo a tela de palha nem ao telhado de capim.
Conseguira negociar com o dono da pensão os preparativos da minha janta. Eu fornecia o pacote de esparguete e este pedia à sua esposa para o preparar. A refeição teria lugar numa das mesas do bar, iluminada por uma das velas ainda existentes.
De volta ao quarto e ainda antes de me deitar, retomei a inspecção a todos os orifícios e cantos existentes no quarto. A possibilidade do meu corpo ser terreno apetecível para um dos rastejantes ou esvoaçantes existentes no cubículo, obrigava-me a tomar cuidados extra através da queima de incenso e do uso de repelente e insecticida.
Uma vez deitado na cama, conseguia sentir os intervalos das tábuas que deveriam sustentar o suposto estrado. Na ausência deste, restava-me adormecer sem me mexer muito, para não correr o risco de passar por entre as tábuas e ser engolido pela cama.
Assim que chegou o meu silêncio, chegou também o barulho de grandes correrias. Correrias de seres ligeiros que para se deslocarem poucos metros, eram obrigados a dar dezenas de passos – ratos.
Desde Caiaza (em Angola) que não adormecia ao som do corre-corre e dos distúrbios de ratos. No entanto desta vez os ratos estavam algures dentro das paredes e por cima do tecto do quarto. Corriam para trás e para a frente sobre o forro do tecto, sem o mínimo cuidado com o barulho.
Conseguia ouvi-los a correr ao longo do interior da parede do quarto e a mudar de “piso” na esquina do mesmo. Seguidamente voltavam ao mesmo sítio mas pelo “corredor” inferior…e andavam assim sucessivamente em correrias à volta do cubículo.
Antes de conseguir adormecer com tal chinfrim, realizei mais uma inspecção aos cantos do quarto e verifiquei se todos os meus pertences estavam fora do alcance das pequenas criaturas.
Estava tudo em conformidade. Nada indicava que estes haviam conseguido permissão para invadir o meu habitáculo.
De Alto-Molócué a Mugulama, percorrera 63Kms em 3h20m.
O destino para a próxima etapa seria a cidade de Mocuba.
Onde é que está mesmo o botão do like?!! :P Tudo está bem, quando acaba bem, certo?! Ou seguem-se novas desditas com o aro, raios, pneus, etc., etc.?!! Bjocas S.C.
ResponderEliminar