Moçambique Fase II (Mocuba-Quelimane)

Eram as 8h10 da manhã, quando dei início à etapa do dia. O destino proposto seria Quelimane, a capital da Província de Zambeze.

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Tinha plena consciência que era um objectivo difícil de atingir, principalmente devido aos mais de 150Kms que separavam as duas cidades. No entanto estava disposto a tentar.

 

As ruas de Mocuba estavam ligeiramente molhadas, devido à leve morrinha que se fazia sentir desde as primeiras horas da manhã.

Junto da sapiência local, confirmei as minhas previsões – “Isso já passa… daqui a nada ‘tá Sol…”.

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Na verdade, encontrava-me no pico da época seca e tudo fazia prever que a morrinha fosse passageira. Assim sendo, não necessitaria de procurar o meu impermeável no fundo das malas, nem de forrar os alforges com as capas de protecção. Estava decidido a desfrutar da “humidade” matinal, para mais tarde fazer face ao subir das temperaturas.

De facto, 20 minutos depois de ter deixado Mocuba, o céu passou a apresentar tons de cinzento claro e a estrada dava indícios de estar seca.

As gentes locais realizavam as suas tarefas diárias sem se importarem com as previsões meteorológicas. Em contrapartida, dedicavam alguma da sua atenção ao branco que passava com uma bicicleta quase tão carregada como as suas.

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Estava a conseguir manter uma boa velocidade média, sem que as minhas pernas acusassem qualquer sinal de desgaste. Pelas minhas mais recentes matemáticas, seria possível chegar a Quelimane pouco depois das 16h00.

A alegria da etapa acabaria por ser interrompida ao quilómetro 22, quando a bicicleta acusou os sintomas de circular com 2 raios partidos na roda traseira.

Enquanto tentava mater a bicicleta direita para substituir e afinar os raios partidos, a nuvem que pairava por cima da minha cabeça, resolveu descarregar toda a água que transportava com ela.

Numa típica teimosia minha, tentei afinar a roda antes de buscar o meu impermeável nos confins dos alforges. Tentava desesperadamente acertar com a chave-de-raios, nas cabeças dos mesmos ao mesmo tempo que esforçava-me para manter os olhos abertos e resistir às agulhas liquidificadas que se espetavam nas minhas vistas.

Os alforges começavam a deixar passar água para o seu interior, fazendo-me temer pelo bem-estar dos meus pertences. Por todos os lados da minha bicicleta (e sua carga) escorriam rios de água como se fossem caleiras de um telhado e os meus pés estavam agora mergulhados em alguns centímetros de água e areia.

Apenas quando surgiu um jorro de água pelas brechas do meu capacete que me impedia de manter os olhos abertos é que despertei para a realidade da minha (ensopada) bagagem. Estava na altura de ceder, intervalar a reparação da roda e dedicar algum tempo para colocar as capas nos alforges e procurar o meu impermeável para vestir.

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Retomada e concluída a operação de substituição dos raios e afinação da roda (que no total consumira 34 minutos), estava na altura de prosseguir na etapa e tentar recuperar algum do tempo perdido.

 

Pela frente tinha ainda 135Kms até Quelimane, que a julgar pela cor do céu, poderiam ser bastante “molhados”.

Observava com atenção os veículos que se cruzavam comigo, com o objectivo de verificar se traziam (ou não) o limpa-vidros ligados. Caso estivessem ligados, seria sinal que também estava a chover “lá”…

Por vezes, não era necessário esperar que os veículos se aproximassem para eu chegar a uma conclusão, pois os chuveiros ciclónicos produzidos pelos seus rodados, eram visíveis à distância.

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Cerca de 45 minutos depois de ter reiniciado a pedalada, voltava a sentir a roda traseira a saracotear de um lado para o outro. Tinha novamente problemas com os raios!

Desta vez não estava nenhum raio partido, apenas meia-dúzia deles desapertados. A operação de aperto e afinação, voltou a ser cumprida debaixo de chuva intensa. As bermas da estrada escoavam o excesso de água e lama, o que me impedia de deitar a bicicleta no solo.

Mais um teste à minha paciência para conseguir reparar a roda traseira, ao mesmo tempo que segurava na bicicleta com o ombro. Simultaneamente, tentava evitar que esta se deslocasse para a frente (ou para trás), colocando um pé sob um dos pneus. Para ajudar à festa, os fios dos auscultadores resolviam prenderem-se em todo e qualquer corpo que estivesse nas proximidades, arrancando-me as orelhas da cabeça cada vez que efectuava um movimento com o pescoço.

12 Minutos perdidos, alguns nervos queimados e estava pronto para sentar-me no selim e atacar os muitos quilómetros remanescentes até Quelimane.

DSCF7375 Faltavam 10 minutos para as 11h00 e o meu GPS contava com apenas 37Kms percorridos.

Apesar de ainda ter 6 horas de luz solar, aos poucos começava a ganhar forma, a ideia de pernoitar em Namacurra ou em Nicoadala.

A minha tolerância ao comportamento da roda (e dos raios) estava no limite, além que ainda não me cabia na cabeça o facto de estar a levar com a maior carga de água desde Angola, ainda por cima em plena época seca!

20 Minutos passaram, quando recebo a informação que tinha nova família de raios partidos. Os meus nervos começavam a fazer a água da chuva evaporar-se, secando-me a pele e as vestes, ao mesmo tempo que consumia os restos do pequeno-almoço que trazia no estômago.

Necessitei de mais 23 minutos para realizar, pela 3ª vez a operação de substituir raios e afinar a roda de trás.

Aos poucos e poucos o meu organismo começava a acusar uma genuína vontade em alimentar-se. A fraqueza ia lentamente chegando às pernas, obrigando-me a concentrar em outros panoramas para conseguir manter o andamento até então.

Ocasionalmente, avistava ao longe outros ciclistas que partilhavam a via comigo. Aumentava ligeiramente o meu ritmo para poder apanhar os ditos ciclistas e assim aproveitar o efeito do seu cone de ar.

Contudo, após chegar perto dos meus colegas, a realidade era outra. O ritmo imposto por estes nem sempre condizia com os meus propósitos, uma vez que (também) traziam avultadas cargas nas suas bicicletas.

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Eram as 13h30. Pedalava há 5h20m e contava com uns “meros” 85Kms percorridos. Pela frente teria 70Kms e pouco menos de 4 horas de luz. Matematicamente ainda era possível chegar a Quelimane antes das 18h00. Restava-me saber as surpresas que a minha roda traseira e as minhas pernas haviam reservado para a etapa do dia.

O cenário diante os meus olhos apresentava-se bastante negro, levando-me a crer que deveria ter trazido uma mascara de mergulho em vez de uns óculos escuros.

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Simultaneamente do meu lado esquerdo, como que para embelezar a paisagem ou para raiar os meus olhos de inveja, os céu azul dava um ar da sua graça, permitindo que o capim tivesse direito a uns longos minutos de exposição solar.

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A roda traseira continuava a dar-me problemas, mas de menor peso em termos de “minutos”. Adoptara uma técnica diferente para poupar tempo e células cerebrais. Consistia em apertar os raios soltos, antes que estes se desapertassem! Ou seja, à menor oscilação da roda, parava a bicicleta e com 1 ou 2 voltas às cabeças dos raios adiava o problema da roda até que estes se desapertassem outra vez.

O tempo passava mais depressa do que os quilómetros percorridos. As minhas pernas acusavam da pior maneira o desgaste psicológico que os raios da roda traseira originavam em mim. Contudo havia (recentemente) estabelecido como meta, chegar a Quelimane… fosse a que horas fosse. Mesmo que para isso tivesse que pedalar os últimos quilómetros sob a iluminação da minha lanterna.

Apesar de por vezes não conseguir manter os pedais a girarem à rotação desejada, a minha velocidade média mantinha-se ao nível dos meus melhores dias. Um paradoxo entre Espaço Vs Tempo, ao qual era difícil arranjar uma explicação. Talvez por não haver uma acção contrária do vento, ou simplesmente por ter delineado à última hora que Quelimane seria o destino final da etapa, ou por contar com a ajuda do cone-de-ar de um ou outro ciclista que resolvia pedalar à minha frente por breves minutos (até se cansar).

A poucos quilómetros de Nicoadala, e quando as minhas pernas incriminavam a falta de energia, surge um ciclista local ao meu lado.

DSCF7386Como não podia deixar de ser, este ultrapassou-me, impôs o seu ritmo e deu inicio à sua demonstração de velocista.

Em contrapartida, em vez de eu optar pelo contra-ataque, eu aderi pela via mais didáctica.

Despendi alguma energia extra para colocar-me ao lado dele e iniciei a conversação.

Em poucos minutos expliquei-lhe que teríamos muito mais a ganhar se pedalássemos juntos. Então o acordo era o seguinte:

Do meu lado, eu nunca tentaria ultrapassa-lo e assim seria o meu colega o herói do pelotão. Da parte dele, teria que abrandar o ritmo para que eu pudesse usufruir do seu efeito de “aspiração”, sem consumir muita energia.

E assim seguimos por 25 minutos até darmos entrada em Nicoadala, localidade onde nos despedimos e onde eu aproveitei para repor o meu stock de bananas.

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Eram as 15h15 e pela frente ainda teria entre 1h30m a 2h00m de pedaladas até entrar na cidade de Quelimane. Pelos tons do céu diante mim, eu enfrentaria mais uma valente carga de água antes do final da etapa. Algo que não me causava qualquer dissabor, uma vez que já me encontrava completamente encharcado.

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Iria regressar a Nicoadala uns dias mais tarde, quando deixasse Quelimane e iniciasse o trajecto rumo a Sul, mais concretamente até à cidade da Beira.

Seguia agora imerso nos quilómetros finais da etapa. Para abstrair-me das dores nas pernas, tentava concentrar-me nas músicas do iPod e manter a mente longe da bicicleta. No entanto havia sempre algo que chamava-me de volta à realidade. Se não fossem os raios da roda desapertados, seriam os auscultadores do iPod que deixavam de funcionar devido à chuva. Se não fosse nem um nem outro, então haveria sempre um raio que resolvia separar-se em dois, obrigando-me a encostar à berma para a sua substituição.

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A presença de outros ciclistas era praticamente nula, o que me fez “agarrar” o primeiro que surgiu e avançar para o modo didáctico, ainda antes que se desse início a qualquer picanço.

Poderia agora aproveitar a benéfica acção do seu cone-de-ar e seguir mais à vontade, além que teria quem me ajudasse cada vez que os raios partissem (algo que aconteceria um pouco mais tarde).

Passavam 10 minutos das 17h, quando iniciámos a aproximação à cidade.

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Ao longo da estrada de acesso a Quelimane, fui obrigado a colocar no guiador da bicicleta toda a perícia de condução que adquiri na viagem e assim desviar-me dos inúmeros mini-bus, machibombos e táxis improvisados, que circulavam pela via de qualquer maneira e feitio, para não falar nas carroças, pessoas e animais.

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Alguns minutos mais tarde, cheguei ao centro de Quelimane. Encontrei uma cidade praticamente sem estradas pavimentadas, onde o alcatrão dera lugar a muita lama e longas poças cobertas por água barrenta.

DSCF7404 Em poucos metros fiquei mais sujo de lama do que em qualquer outra etapa da viagem desde que saíra de Luanda.

Procurei alojamento junto do dono do Hotel Flamingo, que rapidamente arranjou uma solução à medida do meu orçamento. Iria pernoitar numa casa particular que pertencia ao mesmo.

 

Havia concluído a etapa Mocuba – Quelimane em 9h39m, onde 1h46m foram dispendidos a reparar raios e a comer bananas. Para trás ficavam 159Kms, dos quais 80% foram pedalados debaixo de água.

De uma maneira mais ou menos aproximada, estava concluído a Mapa Cor-de-Rosa de Roberto Ivens e Hermenegildo Capelo, mas desta vez em bicicleta.

Mapa

Viria a saber mais tarde, que os pombeiros luso-angolanos Pedro João Batista e José Anastácio haviam realizado o mesmo feito, anos antes dos exploradores portugueses.

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