Uma vez mais estava provado que de nada adiantava pedir, justificar e repetir para que o pequeno-almoço ficasse pronto às 6h30. A essa hora ainda se estava a pensar em acender o carvão. Consequentemente ficaria adiada para as 7h20, a refeição mais importante do dia.
Enquanto o pequeno-almoço não ficava pronto, eu aproveitava para tentar deslumbrar o efeito que os primeiros do Sol tinham na paisagem envolvente.
Ao longe, por entre os reflexos de luz nas inúmeras poças de água, conseguia distinguir as silhuetas pertencentes àqueles que andavam na apanha de bivalves.
Outros havia, que por esta altura já regressavam a “terra” prontos a venderem a sorte de uma madrugada de trabalho.
Atrás de mim estava o estabelecimento feito em caniço, onde eu passara a tarde e o serão do dia anterior. As mesas já estavam do lado de fora da arrecadação, o que quereria dizer que a minha refeição estaria quase pronta.
Antes de me retirar para o salão dos pequenos-almoços, ainda tive tempo para me dedicar às previsões climatéricas.
Apesar de o dia ter amanhecido com pouco vento, notava-se uma aproximação presencial do mesmo, cada vez mais patente.
Iniciei a etapa às 8h04m (cerca de 1 hora depois do previsto), em direcção ao centro da vila de Mecufi e depois em direcção a Sul.
O destino planeado para a etapa do dia era Memba. Uma cidade, ou vila alguns quilómetros a Sul de Mecufi.
Nada sabia sobre a povoação de destino e pouco sabia sobre o percurso, mas contava chegar num só dia de viagem, mesmo sabendo que havia um pouco de discórdia entre o mapa que trazia comigo e o aparelho de GPS.
A questão da discórdia podia ser explicada de uma forma muito simples. Segundo o meu mapa, havia uma “estrada” ao longo da costa que me levaria até Memba. A distância percorrida seria aproximadamente de 100Kms. Enquanto o GPS indicava uma outra “estrada”, um pouco mais para o interior e onde eu teria que pedalar cerca de 166Kms até chegar a Memba.
Fosse como fosse, os primeiros 40Kms eram comuns a ambas as soluções. Só depois de percorrer esta pequena distância de simultânea concordância, é que eu iria procurar saber se as estradas sugeridas existiam ou não.
Apesar de eu preferir a via ao longo do litoral, não só por ser a mais curta mas também por ser aquela que aparentemente trazia maior contacto com gente remota, havia dois importantes pormenores que me faziam tender para a sugestão exposta pelo GPS.
Em primeiro lugar a simples questão que quando mais próximo da costa, maior a probabilidade de a estrada ser de areia fina. O que era sinónimo de passar 2 a 3 dias a empurrar a bicicleta. E em segundo lugar a questão da foz do rio Lúrio e do rio Mecuburi (entre outros possíveis riachos), as quais não estavam providas de pontes mas contavam com a possível presença de crocodilos.
A larga estrada de terra vermelha rodeada de vegetação rasteira, dava agora lugar a uma via com metade da largura, onde o alcance visual era encurtado devido ao capim e aos arbustos de média altura.
O vento, esse seguia pela mesma via mas em sentido contrário. Considerava-o como o meu inimigo omnipresente quanto à minha harmoniosa progressão em toda a viagem. Principalmente nesta etapa onde eu poderia desfrutar de um simpático e agradável passeio de bicicleta pelo remoto litoral Moçambicano, enquanto na realidade lutava para manter a bicicleta a rolar acima dos 10Kms/h.
Havia saído de Mecufi há 1h15m quando chego ao primeiro obstáculo com presença existencial. A foz de um riacho. Nada que me causasse grandes problemas, a não ser o facto de ser obrigado a percorrer umas dezenas de metros a empurrar a bicicleta pelo areal.
Nas margens dos pequenos charcos, várias mulheres lavavam os utensílios de cozinha e a roupa da casa. Outras aproveitavam para tratar da higiene diária sem se importarem com quem passava, enquanto a criançada concentrava-se no seu pequeno mundo de areia, completamente alheia a tudo ao seu redor.
Um par de quilómetros percorridos na outra margem do rio e a paisagem mudara completamente. Os tons verdes haviam sido banidos do quadro paisagístico, que contava agora com muitos castanhos e cinzentos, originados pelas frequentes queimadas. Afinal, encontrava-me em plena época seca.
O cheiro a fuligem invadiam-me as narinas ao mesmo tempo que ouvia as ramagens carbonizadas a estalarem, cada vez que as rodas da bicicleta fugiam dos trilhos demarcados.
A minha roda traseira estava a dar-me tréguas, talvez por seguir apetrechada com um pneu novinho, made in China e comprado no Malawi há cerca de um mês atrás. O suporte da bolsa da frente também parecia estar a atravessar um período de estabilidade de consistência, no entanto havia outra razão para grandes contentamentos.
Desta vez era o desviador traseiro que começava a dar-me grandes dores de cabeça. Desde que o desviador das mudanças sofrera um “ligeiro” empeno há umas centenas de quilómetros atrás, que este nunca mais fora o mesmo.
Mesmo depois de eu ter conseguido fazer regressar o desviador à posição de origem, nunca arranjei maneira de eliminar as folgas originadas pelo uso e desgaste do mesmo. As rodinhas do desviador já não faziam o efeito de “guia”, pois os dentes haviam sido completamente carcomidos pelos quilómetros percorridos.
Como consequência do desgaste deste material, sempre que o desviador seguia com menos tensão na mola do esticador de corrente, arriscava-me a que a corrente saltasse das rodas guia, prendesse no braço do esticador e por fim enfiasse o mesmo entre os raios da roda traseira.
O resultado deste incidente (cada vez mais frequente) era desastroso para o material que já estava cansado, além que acabava sempre por danificar os raios da roda. Isto para não falar nas consequências que estas paragens não programadas tinham na minha tensão arterial.
A dada altura a estrada quase que se dissimula na paisagem ao meu redor. Seguia há alguns quilómetros por um simples carreiro, usado apenas por peões ou velocípedes. Não havia em lado nenhum, marcas de terem passado veículos de 4 ou mais rodas, pelo menos nos últimos tempos. Fiquei na dúvida se na bifurcação que passara poucos minutos antes, deveria ter seguido pela via da direita, apesar de não fazer grande sentido.
Afinal de contas a via da direita iria para o interior, enquanto eu teria que me aproximar do litoral a fim de chegar ao rio e à vila de Lúrio. Fiquei na expectativa de encontrar um autóctone que me pudesse esclarecer as minhas dúvidas, contudo este nunca apareceu.
Movido pela adrenalina de pedalar no incerto, decidi seguir viagem. Afinal de contas eram situações como esta, que tantas vezes haviam espoletado as minhas pernas para aumentar o rendimento da pedalada e que ao mesmo tempo, mantinham-me a sorrir para o desafio seguinte.
O GPS indicava-me que o rio Lúrio estava alguns quilómetros à minha frente e enquanto houvesse trilhos pedonais eu conseguiria avançar na etapa. Ainda mais que os trilhos haviam de ir dar a algum lado. Não me parecia lógico que alguém andasse a fazer caminhos no meio do mato, sem que estes levassem a algum lugar.
Ao longo do percurso, deparava-me com diversas bifurcações que me baralhavam ligeiramente a escolha de direcção. No entanto (e uma vez que não sabia qual o trilho correcto) optava por aquele que me parecia seguir até ao rio Lúrio.
Poucos quilómetros depois, começo a avistar alguns verdes esbatidos na paisagem, o que quereria dizer que eu estava a aproximar-me de uma zona de água, ou seja o rio.
Comecei a descer ligeiramente em direcção à foz do rio Lúrio, por trilhos cada vez mais estreitos e de difícil passagem, até que cheguei a uma zona em que o trilho simplesmente mergulhava no capim.
Pouco ou nada conseguia ver para o outro lado do capim, mas sabia seguramente que estava a seguir em direcção ao rio. A única opção nesta altura da etapa seria mergulhar no capim, tal como o trilho que me transportava e procurar saber o que havia do lado de lá.
Apesar da minha teimosia de seguir em frente, a minha consciência concentrava-se em dois pontos focais. O primeiro ponto era a clara questão “Onde é que isto vai dar?”, e o segundo ponto era uma consequência da vontade de seguir pelo caniçal adentro e que se resumia a evitar colocar os pés no chão (devido às cobras).
Avancei pelo trilho, descendo regos e cortando curvas. Com a roda da frente passava por cima do maior número de folhas possíveis, com o objectivo de criar vibrações e sons que pudessem afastar toda a bicharada rastejante das minhas proximidades. Não estava com grande vontade de ser mordido por um réptil assustado, principalmente quando eu estava algures no meio do mato e sem ver ninguém há horas.
Alguns minutos depois, eis que cheguei ao outro lado do caniçal. Nos meus braços jaziam alguns arranhões originados pelas ramagens dos arbustos, enquanto nas malas da bicicleta encontravam-se vários vestígios da vegetação local.
À minha frente, estava aquilo que eu não queria ver.
Um areal até perder de vista, pelo qual eu seria obrigado a empurrar a bicicleta. Não conseguia ver o rio Lúrio, mas acreditava que este estivesse algures depois do areal.
Na areia à minha frente, pude ver várias pegadas humanas e também várias marcas de pneus de bicicleta. Afinal de contas eu tinha vindo pela estrada principal!
Estudei para onde seguiam as marcas dos rodados dos outros utentes da via e constatei que as mesmas separavam-se em várias direcção a umas dezenas de metros do local onde eu me encontrava.
Tirei um azimute, apontei para o que poderia ser a vila do outro lado do rio Lúrio e comecei a empurrar a bicicleta pelo extenso areal.
Após longos minutos a rasgar o manto de areia com as rodas da bicicleta, surgiram ao meu lado dois interessados em ajudar-me. Inicialmente recusei a oferta e limitei-me a manter a conversa sobre a minha passagem por aquelas paragens, mas após algumas insistências resolvi ceder e deixar os meus novos amigos levar a bicicleta até à margem do rio.
Caminhamos umas longas centenas de metros até chegar ao rio, onde forçosamente eu teria que apanhar um barco para alcançar a outra margem. Nos inúmeros bancos de areia espalhados um pouco por toda a parte, havia pessoas na apanha. Não consegui distinguir qual a área de negócio, pois a minha curiosidade estava direccionada para uma outra questão. Os crocodilos!
O esclarecimento não podia ser diferente de tantos outros já ouvidos relativamente a leões:
-Tem crocodilo, mas é só mais lá em cima. – Ao qual eu perguntei se (só por acaso) esses bichinhos não costumavam vir passear até aqui.
-Nada! Só quando não calha… Se a pessoa estiver sozinha pode acontecer. No outro dia desapareceu ali uma senhora, mas não sabemos se foi afogada…
Assim sendo fiquei mais descansado, em primeiro lugar porque não estava sozinho e em segundo lugar porque eu sabia nadar.
Uma vez na zona de embarque e com o catamaran à minha frente, iniciei as negociações relativamente ao preço da travessia.
O “bilhete” que começou com um preço de 500 Mtn, acabou por ficar a 70 Mtn (USD 2,00), somente após eu ter-me chateado e proferido algumas verdades em correcto português ao dono da canoa e a todos os ouvintes que já me pediam comissão só por estarem ali ao meu lado.
Os dois indivíduos que voluntariamente insistiram em me ajudar com a bicicleta na areia, mas que no final da acção exigiam avultadas somas monetárias, também não se livraram de ouvir uns comentários construtivos. No final e após as negociações concluídas, todos tiveram direito a uns “brindes”, além de ficarem com o meu pneu velho como forma de agradecimento extra.
Embarquei na pequena canoa, talhada num tronco de árvore, juntamente com o remador e os seus dois auxiliares. Juntos, atravessámos as águas do Lúrio em direcção ao embarcadouro de areia na margem Sul do rio.
A povoação de Lúrio estava localizada no cimo de uma colina, acessível apenas por um estreito carreiro de regos fundos e degraus da altura dos joelhos. Enquanto lutava contra a gravidade para levar a bicicleta até ao topo do cabeço, cruzei-me com um grupo de pequenos jovens que carregando à cabeça a água para as suas casas, insistiam silenciosamente em dar-me uma mãozinha.
Lúrio era uma pequena vila onde era possível avistar a foz do rio com o mesmo nome, toda a extensão da praia e também o mar.
Aproveitei para saciar a minha gana por bebidas doces numa das barracas feita de canas e palha. Depois de assimilar 2 garrafas de Coca-Cola servidas à temperatura ambiente e de comprar algumas bananas a um vendedor que passava nas proximidades, tive a oportunidade de conversar com o administrador do município. Este fizera-se deslocar até ao local onde eu me encontrava, sempre acompanhado de um polícia, para ver e falar com o branco que passava de bicicleta.
O administrador seria a pessoa certa para esclarecer as minhas dúvidas relativamente à estrada a seguir até Memba. Afinal de contas, os quilómetros comuns aos dois trajectos possíveis haviam sido percorridos e teoricamente eu teria que optar por um deles, um pouco mais à frente.
A explicação do administrador foi clara e concisa. Só havia uma estrada até Memba e para lá chegar teria que percorrer 135Kms. Ou seja, estava completamente fora de questão a pretensão de chegar a Memba numa só etapa. A hipótese seria pernoitar em Mazua, cerca de 78Kms de Lúrio.
Já passavam das 12h30 e eu teria que dar bem ao pedal para chegar a Mazua antes de anoitecer.
O vento parecia que tinha abrandado ligeiramente, o que me permitia gozar e apreciar a paisagem.
Contudo havia agora mais colinas e vales, com subidas e descidas que me dificultavam o avanço na etapa.
Há dois dias que andava em picadas algures no meio do mato Moçambicano, mas neste troço acontecia cruzar-me com bastante gente a pé ou de bicicleta, oriundos das inúmeras aldeias que existiam um pouco por toda a parte.
Tentava afastar da cabeça a simples possibilidade de ter um furo, pois já não tinha ferramentas para desmontar os pneus e contava apenas com 3 remendos para as câmaras-de-ar. Se o furo fosse no pneu da frente, eu ainda poderia tentar desmonta-lo à mão, mas se o furo fosse no pneu traseiro, então eu poderia esquecer qualquer tentativa para a sua reparação. Sem meios para desmontar o pneu do aro, eu estaria entregue a minha sorte.
Continuava quilómetro após quilómetro a subir e descer colinas, entusiasmado com a viagem e a bom ritmo. Não me podia queixar da velocidade a que seguia, tendo em conta que estava numa estrada de picada e com alguns vestígios de areia.
Apesar da paisagem apresentar algumas semelhanças com os cenários do National Geographic, a fobia dos leões/elefantes/búfalos não assolava a minha mente com relevância. Afinal de contas, mais cedo ou mais tarde eu encontrava-me com elementos locais que me cumprimentavam (em inglês) sem demonstrarem grandes preocupações por eu estar a atravessar o território sozinho.
O tempo passava rápido e ainda mais rápido, o Sol desaparecia por detrás das montanhas no meu horizonte longínquo. Uma vez mais, estaria condenado a chegar de noite ao meu destino, sem fazer a mínima ideia onde era Mazua e se a vila estaria provida de energia eléctrica para uma fácil orientação.
Com o repouso do Astro-rei, a temperatura ambiente desceu para valores algo incomodativos e desconfortáveis. Situação que piorou quando as minhas pernas resolveram desligar a energia motriz, numa simbiose quase perfeita com a natureza. Estava na hora de dar algum descanso ao corpo.
A distância até Mazua já não era muita, mas devido à descida de rendimento eu levaria cerca de 1h30m até chegar ao destino. Decidi utilizar os últimos dois trunfos que eu tinha comigo. As duas bolachas de chocolate que restavam no pacote (uma para cada perna). Mas nem assim o assunto melhorou. Continuava a arrastar-me até Mazua, agora com as pupilas dilatas de modo a conseguir captar o máximo da luz que o Sol ainda disponibilizava.
Cheguei a Mazua no final do lusco-fusco, pouco depois das 17h30. Não se via praticamente ninguém nas ruas de areia que desenhavam o perfil da povoação.
A vila não estava provida de energia eléctrica, no entanto conseguia distinguir uma igreja algures no meu lado esquerdo e uma fileira de barracas comerciais à minha frente. Numa das portas brilhava uma pequena luz, provavelmente ligada a uma bateria ou a um pequeno gerador. Pedalei em direcção à luz com o objectivo de encontrar alguém que me desse algumas informações sobre a vila, nomeadamente onde dormir.
Falei com o dono do estabelecimento, enquanto lambia o açúcar deixado nos meus lábios pela Coca-Cola que acabara de engolir. Algures por detrás de umas palhotas com telhado de palha, do outro lado do campo de futebol, havia um senhor que alugava quartos nas traseiras do seu estabelecimento comercial.
Segui as indicações fornecidas e dirigi-me ao local onde poderia encontrar o dono da “pensão”.
À chegada e após algumas notas introdutórias sobre minha viagem, o dono do estabelecimento cedeu-me um quarto dentro da sua loja. Disponibilizou-me um balde de água e explicou-me a localização do caniço onde eu poderia tomar banho.
Tratei da minha higiene diária, no caniço localizado nas traseiras do edifício. Iluminado apenas pela minha pequena lanterna, despejava a água gelada pela cabeça abaixo, desejando que esta percorresse depressa o meu corpo e consequentemente os dentes parassem de tilintar.
Algures cá fora, alguém fervia água com o intuito de preparar o meu esparguete ao qual eu juntaria uma lata de sardinhas para dar algum sabor.
O jantar seria no patamar de entrada da loja, numa mesa de plástico iluminada por uma lanterna recarregável e onde 4 garrafas vazias, faziam a função de “pisa-tolhas”.
Depois do jantar e já no meu leito, estudava à luz de duas velas, a etapa para o dia seguinte. Se tudo corresse bem, estaria em Nacala dentro de 2 dias. Cidade onde eu iria tentar arranjar quem soldasse o aro da roda traseira e onde tentaria repor os meus stocks de material de consumo corrente.
De Mecufi a Mazua, percorrera 104Kms em 9h30m, onde a velocidade média fora de 10,9Kms/h.
E vamos ter livro? Bom relato e que emoções, faz favor!...
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