Os muitos dias passados a pedalar em África, habituaram-me a dormir em condições menos ideais. O simples facto de faltar uma tábua no leito, não fora impedimento para o repouso do meu corpo. E nem mesmo o infindável corre-corre dos ratos dentro da parede do quarto, havia perturbado as minhas horas de descanso.
Com os primeiros raios solares, pude apreciar pela primeira vez, o cubículo onde pernoitara na noite anterior.
Havia solicitado o meu pequeno-almoço para as 6h30, mas como era de esperar, este faria a sua aparição no bar da pensão com o devido atraso. Neste caso fora 1h10m de demora.
Comi a metade do pacote de esparguete que sobrara da noite anterior, ao qual juntei 2 pães (secos) e uma chávena de chá adocicado com leite condensado. Logo de seguida preparei mais uma vez o farnel para a viagem (que para não variar na dieta, seria um cacho de bananas) e despedi-me do simpático dono da pensão.
A etapa teve o seu início às 8h10, cerca de 40 minutos mais tarde que o previsto. Pela frente teria 125Kms até Mocuba, dos quais metade, seriam em “estrada muito má” segundo as últimas informações colhidas em Mugulama. Algures a meia distância teria a povoação de Nampevo, local onde planeava parar para almoçar, hidratar a garganta e esticar as pernas.
O dia estava bonito, com temperaturas amenas e pouco vento. A estrada continuava em óptimas condições e o trânsito era ocasional. Tudo perfeito para um dia perfeito, não fosse o caso de as minhas pernas parecerem 2 blocos de cimento em processo de cura, que faziam de tudo para resistir ao movimento que lhes era solicitado.
Muito possivelmente estaria as sofrer as consequências dos “esticões” do dia anterior, quando intencionava chegar a Mugulama antes de o anoitecer. A concentração de ácido láctico nos músculos poderia ser também uma das razões para sentir as pernas emperradas e sem dinâmica suficiente para manter a bicicleta a rolar nas velocidades pretendidas.
Tal e qual como uma dobradiça oxidada que começa a mover-se lentamente após ser lubrificada, também as minhas pernas foram desenferrujando (com o passar dos quilómetros) e a dinâmica voltou a sentir-se nos pedais da bicicleta.
A força anímica, que nunca chegou a esmorecer por completo, estreava agora sua ascensão fazendo melhorar a minha performance e consequentemente a velocidade média.
Aos poucos e poucos fui recuperando a vivacidade e a destreza, chegando ao ponto de aventurava-me a pedalar de pé, impondo alguns “puxanços” de curta duração cada vez que enfrentava uma ligeira subida.
No entanto o entusiasmo das “puxanços” era na maioria das vezes interrompido com uma pancada seca dos meus joelhos no volante da bicicleta. Tal acontecia sempre que eu estava de pé sobre os pedais e impunha um pouco mais de binário no centro pedaleiro. Devido ao desgaste das cremalheiras, a corrente saltava levando as minhas rótulas a chocarem violentamente com a extremidade do guiador. Nestes momentos sentia-me a ficar vermelho de dor e querer explodir de raiva, no entanto acabava por me controlar e soltar apenas algumas conjugações de vocabulário, para a atmosfera.
Mesmo com um hematoma em cada joelho, eu continuava a pedalar com um estranho mas conveniente ânimo que, mais uma vez, fazia-me lembrar os dias passados no interior Angolano.
Pedalava com a agradável impressão que todo e qualquer obstáculo que pudesse surgir, não seria suficientemente grande para me fazer parar (agora que tinha a roda traseira reparada).
Ao mesmo tempo, saboreava os quilómetros percorridos durante a etapa, como se fossem os primeiros de toda a viagem.
Sentia-me a fluír por entre as partículas de ar sem sofrer qualquer tipo de resistência aerodinâmica. As pernas desempenhavam a função para o qual haviam sido destacadas, enquanto a mente aproveitava para se concentrar noutras realidades que não a reparação de uma roda traseira.
Pouco antes da 11h00, cheguava a Nampevo, a vila onde planeara almoçar.
No entanto o programa não saíra como previsto. Nampevo não era mais que uma simples aldeia sem energia eléctrica, com vendedoras de vegetais em ambos os lados da estrada. Caía assim por terra, a ideia de almoçar calmamente num restaurante ou num bar à beira da estrada.
A somar à desilusão sobre a povoação de Nampevo, viria a descobrir que a estrada alcatroada findava 50 metros à minha frente, dando-se início à picada, vulgo a “estrada má”.
Parei a bicicleta em frente ao único edifício com aspecto de estabelecimento comercial, depois do último telheiro de venda de legumes.
O objectivo era comprar algumas peças de fruta ou bolachas que servissem de almoço. Mas após uma breve consulta ao mercado local, verifiquei que os únicos produtos disponíveis para venda eram, mandioca, batata-doce, feijão verde, arroz e amendoins.
Produtos estes, que incompatibilizavam-se com a minha procura, levando-me a optar por almoçar 4 das minhas bananas, acompanhadas por 2 garrafas de Coca-Cola adquiridas no estabelecimento da frente.
Enquanto saboreava o meu almoço, ia satisfazendo a curiosidade dos que se aproximavam e inundavam-me de perguntas, sem que me deixassem tempo para engolir as bananas.
As vendedoras de legumes, tubérculos e afins, tentavam (simpaticamente) vender-me algum dos seus produtos ao mesmo tempo que pediam para eu tirar-lhes uma fotografia.
Outras deixavam-se estar na sua posição original sem se incomodarem com o alvoroço que girava à minha volta, simplesmente à espera que o dia voltasse ao normal.
30 Minutos bastaram para que eu sentisse as minhas energias renovadas e assim poder enfrentar os 68Kms restantes até Mocuba.
Poucos metros depois de deixar Nampevo, eis que entro na dita “estrada má”.
De facto a estrada fazia jus ao seu nome. Uma estrada de terra batida com alguns vestígios de alcatrão e muitos buracos, o que obrigava aos demais utilizadores da via a conduzirem os seus veículos, numa dança constante de um lado para o outro da estrada, a fim de se desviarem dos obstáculos.
No meu caso específico, a situação não era assim tão negra. Teria que ter apenas algum cuidado para não me entusiasmar nas descidas e também estar em alerta com os buracos mais fundos para não partir nenhum suporte das malas, ou mesmo um aro.
Apesar da minha velocidade média baixar ligeiramente, notava com satisfação que os veículos motorizados com 4 ou mais rodas, tinham dificuldade em ultrapassar-me, tal era o estado degradado da picada.
O entusiasmo da picada fez-me esquecer da fome, que resolveu dar sinais de si poucos quilómetros depois de Nampevo. No entanto, quando a fraqueza chegou às pernas fui obrigado a iniciar um processo de racionamento do meu pequeno stock de bananas.
A procura de reforço do stock demonstrava-se completamente infrutífera, fazendo crescer exponencialmente a fraqueza nas pernas e o vazio no estômago.
Passavam poucos minutos das 14h00 quando consegui avistar Mocuba no horizonte. Pela frente ainda teria cerca de 1 hora de pedaladas, antes que pudesse sair da bicicleta e saciar a minha fome em qualquer café da cidade.
A estrada era agora de alcatrão e os quilómetros que me separavam de Mocuba poderiam ser percorridos de um modo menos fatigante para as minhas pernas.
Com o aproximar à cidade, as estradas ficavam mais povoadas com as gentes locais, dedicadas às suas tarefas diárias, tanto de carácter profissional como pessoal.
Podia também observar várias construções de outrora deixadas à sua própria sorte ou em más condições de preservação, e onde funcionavam algumas escolas.
Às 15h10 dei entrada na cidade de Mocuba. A cidade onde todos os caminhos se cruzam e Moçambique se abraça.
A receber os visitantes, estavam dois marcos da época colonial ainda com a cruz dos descobrimentos neles marcados.
Debaixo da ponte que permitia a entrada na cidade, várias pessoas lavavam as suas vestes e louças. Outras, aproveitavam para tomar banho ou mesmo para brincar na água, sem grandes preocupações com a possibilidade de haver (ou não) um crocodilo por perto.
Antes de procurar alojamento, aproveitei para dar uma volta por Mocuba. Deparei-me com uma cidade maior do que esperado e com bons sinais de recuperação urbanística. Os edifícios governamentais apresentavam a cara lavada e bem tratada. Na avenida principal, havia diversas vivendas, todas elas com claros indícios de manutenção e cuidado.
A pensão escolhida para repousar o corpo e recuperar energias, seria a Pensão Cruzeiro. Uma pensão localizada no centro da cidade e com boa relação preço/qualidade.
De Mugulama a Mocuba percorrera 124Kms em 7h17m, dos quais 43 minutos foram utilizados para socializar, alimentar-me e para recuperar energias.
Com a chegada a Mocuba, estava assim concluído o “desvio” de 2200Kms que planeara aquando da minha estadia em Lilongwe (Malawi) – trajecto a vermelho. A rota assinalada a verde, representa o traçado mais directo de 550Kms.
A etapa seguinte seria até Quelimane, a qual levantava algumas dúvidas se eu seria capaz de percorrer os mais de 150Kms até ao destino. Contudo, disponha de duas vilas antes de Quelimane (Namacurra e Nicoadala), onde eu poderia passar a noite, caso não conseguisse chegar ao final da etapa proposta.
Parabéns por mais um (bastante) interessante registo escrito e fotográfico, oh sr. Fontes!! SC
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