De nada adiantava pedir o pequeno-almoço para as 6h30, porque a essa mesma hora o cozinheiro ainda estava a soprar para o fogareiro a fim de atear fogo aos bocados de carvão.
Iniciei a etapa às 8h00, carregado de ansiedade para chegar ao destino proposto para o dia. Chegar a Pemba! Afinal de contas, Pemba seria o meu primeiro contacto com a contra-costa e o Oceano Índico.
A excitação de chegar a Pemba contracenava com o entristecimento resultante da aproximação (cada vez mais notória) do final da minha travessia entre Luanda e Maputo em bicicleta.
Até Pemba, eram apenas 90Kms que previa fazer em 5 horas caso não tivesse nenhum percalço, nomeadamente na roda de traseira.
Planeava passar alguns dias em Pemba, não só para relaxar o corpo e a cabeça, como também para conhecer a cidade e as atracções que esta poderia proporcionar.
O relevo da estrada alterava-se com o aproximar da costa. Em vez de continuar relativamente plano tal como até Metoro, este era agora caracterizado por longas subidas e descidas de inclinação moderada.
O vento soprava forte e em sentido contrário, tal como previra a senhora do boletim meteorológico que na noite anterior apareceu na televisão da pensão.
Passava uma hora desde que partira de Metoro.
Apesar de estar a avançar a bom ritmo, achava que não era suficiente e que as horas que eu levaria para chegar a Pemba, não passavam. Tudo isto fruto de uma estranha ansiedade que fazia a escala do tempo aumentar de forma exponencial.
O iPod já não tinha enchia os meus ouvidos com a energia de outrora. Eu já conhecia as musicas todas de cor e salteado, e nem mesmo na opção de shuffle este conseguia surpreender-me.
Para distrair-me por uns breves minutos parei no primeiro local onde poderia abastecer-me com alguns víveres (leia-se bananas).
As manhãs eram agora mais amenas, ficando para trás as baixas temperaturas matinais da província do Niassa. Com o aumento da temperatura, vinha a necessidade de ingerir líquidos e consequentemente a ânsia por uma Coca-Cola bem gelada. Começava a olhar com relativa preocupação para esta constante dependência de refrigerantes com açúcar, principalmente a dependência de Coca-Cola. Era cada vez mais notória a necessidade de beber um refrigerante logo nas primeiras horas da etapa.
Continuei subir e a descer colinas até que avistei ao longe, a baía de Pemba, a 3ª maior baía do mundo.
Cerca de 30Kms antes de Pemba, cedi à tentação. Parei a bicicleta na primeira barraca de bebidas que aparentemente estava apetrechada com energia eléctrica e pedi uma lata de Coca-Cola. Sob o olhar atento de alguns curiosos, despejei o precioso líquido pela garganta abaixo tentando saborear cada mililitro de refrigerante. No entanto a única sensação que tive foi a de um líquido gelado a percorrer as minhas glândulas gustativas antes chegar ao estômago e um ligeiro sabor a açúcar no final do último golo.
Sem me aperceber como, quando me levantei para pagar tinha diante mim 2 latas de Coca-Cola e a embalagem de um iogurte líquido completamente vazias, decoradas com as cascas de 3 bananas.
Estava a 1h30m de Pemba e tudo indicava que chegaria na hora do almoço, o que me dava tempo para tranquilamente dar uma volta pela cidade antes de escolher o local para pernoitar.
Apesar de já me encontrar perto do Oceano, o esperado cheiro a maresia não marcava presença significativa.
A boa prestação das minhas pernas mantinham-me a bom ritmo. No entanto este não era suficiente para tranquilizar a minha vontade por chegar a Pemba, tornando os últimos quilómetros da etapa, em extensos troços de alcatrão que se perdiam por entre colinas e vales.
Poucos minutos antes das 13h00 dei entrada na cidade de Pemba. Assim que subo a última colina antes do centro da cidade, recebo do meu lado esquerdo o cartão-de-visita do município… a lixeira municipal e o seu característico aroma, a escassos metros da estrada.
Percorri a longa avenida que me levaria ao centro da cidade e deparo com algo que não esperava numa cidade com tamanha fama principalmente no sector turístico.
Pemba… uma cidade cheia de reputação turística não apresentava (pelo menos à primeira vista) qualquer tipo de dedicação à beleza do município. Decidi pedalar em direcção à parte antiga da cidade outrora chamada de Porto Amélia, uma homenagem à última rainha de Portugal, Amélia de Orleães.
Montanhas de lixo eram visíveis em qualquer lugar das ruas, muita degradação urbanística, barracas e palhotas por todo o lado.
Estava na hora de alimentar o estômago. Tinha decidido fazer o reconhecimento da cidade de barriga cheia.
Mesmo no centro da cidade, encontrei o edifício da Associação Desportiva de Pemba. Seria o local ideal para comer qualquer coisa. À chegada foi recebido por um grupo de associados que imediatamente me convidaram para sentar na sua mesa.
Entre muitas perguntas e explicações, engoli uma sopa de peixe, tratei da saúde a um prego no pão e derreti mais duas latas de Coca-Cola. Tudo ao mesmo tempo que recebia valiosas informações acerca da cidade e sugestões de locais para ficar alojado.
De estômago forrado e com a cabeça cheia de novas informações, estava na hora de fazer o reconhecimento de Pemba.
Dei a volta à rotunda à saída da Associação Desportiva e desci para a marginal. Uma vez na marginal pedalei para sul em direcção à zona das famosas praias. A visita pela marginal proporcionou-me comprovar as minhas primeiras impressões da cidade. Esta mostrava claro contraste entre a aparente beleza natural e a falta de cuidado em preservar a orla costeira.
Percorri os 10Kms de marginal em direcção a “Wimbe Beach”, sempre acompanho pelo azul-turquesa das águas do Índico e pela constante a sujidade dos terrenos adjacentes.
Dirigi-me a uma pensão que haviam-me indicado como sendo boa. À chegada deparo com uma ampla área em areia onde estavam estacionados alguns jipes bem apetrechados. Ao fundo do lado direito estava o bar/restaurante, construído em madeira com telhado de capim e onde alguns estrangeiros confraternizavam. Do lado esquerdo estavam os dormitórios, construídos em madeira e onde se abrigavam alguns viajantes que por ali passavam.
Dirigi-me ao balcão para pedir preços e verificar as condições do local. Enquanto deliciava-me com uma Coca-Cola, pude observar de perto os outros clientes do estabelecimento.
A maior parte da clientela era sul-africana que se faziam passear nos seus potentes veículos 4x4 pela região. Havia um grupo de crianças que corria e gritava na zona de estacionamento, muito provavelmente filhos dos casais de sul-africanos que estavam um pouco por todo o lado. Numa ou noutra mesa havia quem estivesse entretido a trabalhar com um lap-top, possivelmente usufruindo da internet wireless do estabelecimento.
Fiz uma visita a um dos dormitórios enquanto espremia a segunda lata de Coca-Cola. As condições não eram más de todo, o que não era impeditivo de achar os preços relativamente especulados. Contudo seria outro, o motivo pelo qual eu decidira abandonar o local e procurar refúgio no centro da cidade.
Este tipo de pensões não era propriamente o que eu procurava. Eram locais na maior parte das vezes geridos por estrangeiros e para estrangeiros onde a interacção com o exterior era feito através de visitas programas e guiadas sem que houvesse a pureza natural do contacto com a gente local.
Regressei ao centro da cidade onde procurei um lugar para ficar por uns dias. Optei pelo Hotel Cabo Delgado, um edifício (talvez) dos anos 60 localizado numa das artérias mais movimentadas da cidade.
Entrei na recepção do hotel empurrando a bicicleta com os braços. Deixei o velocípede no hall de entrada e percorri os escassos metros que me separavam do balcão do recepcionista.
Após as apresentações e algumas notas introdutórias, o recepcionista deixou-me visitar os quartos de modo que escolhesse aquele que mais me conviesse. Subi ao segundo andar por uma ampla escada de madeira estilo sixties e “inspeccionei” alguns dos quartos.
Decisão tomada e preço acordado, estava na hora de arranjar alguém que me ajudasse a levar a bicicleta até ao primeiro andar.
Quando pedi ao meu amigo recepcionista para arranjar quem me ajudasse, este respondeu muito seguro de si:
-Bicicleta não entra no quarto… tem que ficar aqui na arrecadação…
Ainda insisti duas vezes para que me deixasse levar a bicicleta para o quarto, tentando faze-lo ver que seria muito trabalhoso levar toda a minha tralha para o quarto. Este manteve-se intransigente e olhando para o infinito como se estivesse a ignorar-me lá ia dizendo que “Bicicleta não entra no quarto…”
Decidi contar até 10, ao mesmo tempo que analisava a situação em que me encontrava. Enquanto a minha contagem mental passava do número 3 para o número 4, a minha boca reagiu impulsivamente. Sem que eu mandasse, esta, com um tom didático, perguntou ao recepcionista:
- Você quando vai a um hotel, também deixa as malas na recepção?
- Não! – Respondeu o recepcionista com ar de admirado e franzindo a testa.
- Então… – respondi apontando para a bicicleta - … aquilo ali é mala… só que tem roda grande!
…E antes que este reagisse, peguei na bicicleta e comecei a caminhar em direcção às escadas que me levariam ao meu quarto. Enquanto percorria os pequenos metros que me separavam dos primeiros degraus, magicava como é que eu iria conseguir levantar os mais de 45Kg de tralha e chegar ao 2º andar do hotel. Contudo não foi necessário passar por maus bocados, pois o recepcionista já havia instruído um dos seus colaboradores para me ajudar a levar a minha “mala com rodas grandes” até aos meus aposentos.
Uma vez no quarto, imaginava ao sabor de duas latas de Coca-Cola, o modesto esplendor que o hotel tivera em outras épocas. Na realidade não se podia dizer que o Hotel Cabo Delgado estivesse completamente degradado e descuidado. Era possível ver pequenas reparações aqui e ali mas de pouca importância e de baixo investimento, no entanto era sem qualquer sombra de dúvida o melhor hotel na relação preço/qualidade onde a diária custava apenas 10€ com direito a pequeno-almoço e roupa lavada.
Um cenário que contrastava totalmente com o tipo de pensões para “estrangeiros” (como a que visitara uma hora antes), onde os preços eram bastante mais elevados, onde as condições dos quartos não acompanhavam a especulação e onde parecia haver um isolamento dos hóspedes em relação à vida “cá fora”. Definitivamente esse não era o tipo que alojamento que eu procurava na minha viagem.
Ao jantar, desloquei-me ao café do outro lado da esquina com o objectivo de alimentar o meu corpo. Entrei, e sentei-me numa mesa a um canto. Observei a decoração do café, em tudo semelhante a tantos outros estabelecimentos espalhados por esse Moçambique, Angola e Portugal (de Norte a Sul). Parecia que todos eles haviam sido construídos e decorados pela mesma equipa de arquitectos e designers. As prateleiras de vidro por detrás do balcão onde se expunham garrafas isoladas, as paredes forradas até meia altura por farripas de madeira escura, os espelhos espalhados por toda a parte, uma grande vitrina virada para a rua e protegida por um corrimão de ferro e madeira… um cenário tantas vezes visto em outros estabelecimentos semelhantes.
Todas as mesas estavam ocupadas com clientela, desde jovens a graúdos, homens e mulheres, que numa total descontracção e convívio tomavam naquele espaço e áquela hora, o seu café, a sua cerveja, os seus tremoços e/ou amendoins e/ou pistachos… afinal de contas, eu encontrava-me num café/snack-bar/cervejaria… um local de culto tão conhecido dos nossos hábitos lusos.
Jantei um bom bife com batatas fritas, arroz e ovo. Todavia o jantar não chegou para baixar a tensão arterial do meu estômago, que numa agonia eufórica por comida acabou por devorar mais um “Hambúrguer Especial da Casa”.
No dia em que assimilara 8 latas de Coca-Cola durante a etapa, cheguei ao Indico.
Acabara de percorrer de bicicleta desde Angola até à contra-costa. Contava com 4863Kms em cima dos pedais num total de 94 dias. Estranhamente achava que a viagem estava na sua recta final, apesar de ainda faltarem cerca de 3000Kms até Maputo. Agora era como pedalar dentro do quintal até chegar à porta de casa… e eu queria mais, muito mais para que esta belíssima viagem durasse o máximo possível. Teria que inventar rotas e roteiros para estender a jornada e aproveitar tudo o que ainda estava para descobrir.
Havia decidido passar uns dias em Pemba, não só para explorar a região e tentar mudar as primeiras impressões que tinha da cidade, mas principalmente para tentar resolver o problema que transportava com a minha roda traseira.
Estatísticas de Angola à Contra Costa:
Kms Percorridos em Bicicleta | 4.863 Kms |
Dias desde saída de Luanda | 94 |
Tempo Total | 342h58m |
Tempo em Movimento | 281h06m |
Velocidade Média | 17,3Km/h |
Distância Média Diária | 95Km/dia |
Horas de Viagem (Média Diária) | 6h59m/dia |
Banhos de Chuveiro | 65 |
Banhos a Balde, Caneco ou no Rio | 24 |
Dias Sem Banho | 5 |
Banhos de Água Quente | 56 |
Banhos de Água Fria | 33 |
Noites em Tenda | 15 |
Total de Furos | 1 (Angola) + 6 (Zâmbia) + 1 (Malawi) + 10 (Moçambique) |
Viagens de Barco | |
Horas de Barco | 48h39m |
Kms de Barco | 510Kms |
Brutal Pedro é mesmo o termo certo. Há pouco tempo que descobri o teu Blogue e já o devorei todo ! a cada Post lido eu me sinto a pedalar no teu lugar ! Espero ansiosamente pelos Post´s seguintes, convencido que até final tudo te tenha corrido bem, é esse aliás o meu desejo.
ResponderEliminarQuiçá um dia (noutra reencarnação) hehehe eu faça uma Aventura idêntica à tua mas em sentido inverso.
1 abraÇo.
http://bttalbi.blogspot.com/
Descobri seu blog por acaso !!! Parabéns !!! Que bela ciclo-viagem, estou me deliciando com a leitura de seu relato !!! E o que é melhor : nos trás fotos e descreve os países da Africa , que são tão poucos conhecidos por nós , os brasileiros . Sempre tive muita curiosidade sobre Angola e Moçambique, portanto estou super feliz de ler seu posts. Grande abraço. Jorge Nogueira , Resende , RJ , Brasil.
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