Moçambique (Montepuez – Metoro)

 

Acordei às 6h00 curioso por saber se o pneu tinha aguentado o ar dentro.

De facto o ar ainda se encontrava dentro do pneu mas não com a pressão com que havia deixado na noite anterior.

Comecei a arrumar todas as ferramentas, utensílios e restos de borrachas para poder arrancar o mais depressa possível.

Os 110Kms que teria pela frente até Metoro deveriam ser percorridos em 6 horas, no entanto queria estar precavido para qualquer eventualidade.

Tomei o meu pequeno-almoço (reforçado) e preparei-me para partir, ainda não eram as 9h00.

Peguei na bicicleta e levei-a à mão em direcção ao portão da casa.

Não foi necessário chegar ao portão para descobrir que tinha o pneu completamente vazio, outra vez. Tudo indicava que a solução da cola metálica não tinha funcionado e que a câmara-de-ar estivesse novamente cortada.

Ainda estava a tempo de adiar a minha partida e dedicar outro dia à reparação do aro. Mas tal não estava nos meus planos e o facto de ainda ter uma hora de tolerância, levou-me a reparar (mais uma vez) a câmara-de-ar.

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O caso de o aro abrir ao meio cada vez que eu enchia o pneu da bicicleta, era a razão pelo qual a câmara-de-ar aparecia constantemente cortada.

A solução encontrada seria a de adicionar mais uma cinta em volta do aro, de maneira a impedir que esta se trilhasse na racha e consequentemente acabasse por romper.

Algumas tiras de borrachas (cortadas de uma câmara-de-ar velha com uma lâmina de barbear), cozidas com linha e agulha, e simultaneamente coladas poderiam desempenhar essa função.

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Para isso contei com a ajuda de alguns “trabalhadores” que se encontravam na porta da casa do Lito. Após a operação de corte, costura e colagem, estávamos prontos para partir para uma nova etapa… o ensaio.

Aparentemente estava todo bem. A solução tinha resultado e o pneu encheu de ar.

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Estava na altura de arrancar o mais depressa possível, pois já havia perdido 1h30m.

Atravessei pela última vez, a avenida central de Montepuez. A temperatura já não estava tão baixa como nos dias anteriores, fruto de me encontrar numa região menos elevada e também mais próxima do Oceano.

À minha frente, um pequeno maciço granítico “marcava” os limites da cidade.

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O céu apresentava algumas nuvens, mas nada que me causasse preocupações. A minha mente estava mais orientada para as folhas das palmeiras que se curvavam contra mim como se de uma vénia se tratasse… sinal que o vento que já se fazia sentir… de frente.

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Rapidamente apercebi-me que a etapa até Metoro não seria pacífica pelo que, optei por reforçar logo cedo o meu stock de bananas.

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Não necessitei de pedalar mais que 7Kms desde que saíra de Montepuez para voltar a sentir o pneu traseiro ligeiramente vazio.

Por este andar, não chegaria a Metoro hoje!

No entanto continuei viagem pois o furo aparentava ser um “furo lento”.

 

Impunha andamento aos pedais quase até o aro bater no chão, sinal que não restava mais ar dentro do pneu. Altura em que parava a bicicleta e dava umas bombadas de ar, para poder fazer mais uns quilómetros.

A solução resultou por 3 vezes. As distâncias entre paragens começaram a encurtar vertiginosamente de 18Kms, para 6Kms e depois para 4Kms… até que a câmara-de-ar cedeu completamente.

Antes de sair da bicicleta e de arrancar o pneu à dentada com um ataque de fúria, respirei fundo e olhei para o relógio.

Eram as 11h58.

Encostei a bicicleta à berma da estrada e dediquei alguns segundos à reflexão.

Estava a 30Kms de Montepuez e 80Kms de Metoro. Poderia voltar para trás e tentar reparar o aro novamente ou então poderia tentar reparar a câmara-de-ar mais uma vez e seguir viagem.

Ter um aro estalado longitudinalmente era a última coisa que eu pensava que me pudesse acontecer, e neste momento acabava de descobrir que o aro estava também estalado numa das pistas de travagem.

Passei alguns minutos a andar à volta da bicicleta (tipo barata tonta) a tentar decidir qual o passo a tomar. Reparar a câmara-de-ar e voltar para trás ou reparar a câmara-de-ar e seguir em frente?

Fosse qual fosse a decisão tomada, nada garantia que o aro não cortasse a câmara-de-ar mais uma vez.

Havia ainda uma 3ª hipótese que seria a de apanhar uma boleia até Pemba (+/- 180Kms) e tentar arranjar alguém que soubesse soldar a alumínio.

Saltar para cima de um carro e fazer alguns quilómetros à boleia não era algo que eu engolisse de bom grado, no entanto se não tivesse outra solução teria obrigatoriamente que optar por esta via.

Desmontei a roda da bicicleta e retirei a câmara-de-ar para saber onde era o furo. Acabei por verificar que a causa do problema era “apenas” um remendo velho que havia descolado.

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No meio da frustração do momento, veio-me à cabeça uma nova ideia que possivelmente faria a câmara-de-ar resistir um pouco mais.

Apliquei a câmara-de-ar suplente (nova) e utilizei a câmara velha para revestir o aro (para além das duas cintas já aplicadas e de uma câmara usada para revestir o pneu). Comecei a montar o pneu no aro com bastante custo pois havia tanta borracha dentro deste que mais parecia que tinha um pneu de borracha maciça, não restando espaço para o “ar”.

O entulho (leia-se tiras de borracha) existente dentro do pneu causava dificuldades para o conseguir montar no aro, de tal maneira que cada vez que forçada os polegares contra o pneu, parecia que a pele dos meus dedos se descolava da carne.

A operação demorou quase 45 minutos com uma estável plateia de 3 jovens que assistiam curiosos e sem nunca se terem oferecido para ajudar.

Apenas quando eu tentava alinhar a roda traseira, ao mesmo tempo que segurava na bicicleta com o ombro, é que um deles acordou e perguntou se eu queria ajuda.

Operação concluída, estava pronto para arrancar com o meu “novo” pneu maciço. Seguiria para Metoro apesar de ser quase certo que chegaria ao anoitecer.

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O meu estômago estava a dar que falar. Há muito que andava a dar sinais de fome, no entanto eu não lhe prestava atenção devido ao imbróglio da câmara-de-ar. O cacho de 10 bananas que comprara poucos quilómetros antes, já estava quase a metade e previa que não durasse para toda a etapa.

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Como se não bastasse o atraso que eu já levava aliada à vontade de comer, agora também o vento soprava contra mim (para não variar).

 

As rajadas de vento faziam a bicicleta andar em zig-zag e impediam a recuperação que eu contava fazer.

Parecia que todos os ventos de África estavam concentrados num só local e dirigiam-se num só sentido… ou seja contra a minha progressão.

Desde que saíra de Luanda, contava pelos dedos de 1 (uma) mão os dias que não havia enfrentado vento frontal. Não avantajava seguir para Este, Sul ou Norte… o vento haveria de ser frontal nesse dia.

De nada adiantava bramir ou pular no guiador da bicicleta, isso nunca ira fazer acalmar a ventania fria e irritante que me fazia ter os nervos à flor da pele e consumia as últimas energias que tinha.

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Derretia bananas e bolachas de chocolate numa tentativa de acamar o oco que transportava dentro do estômago.

Faltavam 55Kms para o destino quando iniciei o racionamento de bananas a fim de poder garantir o alimento até ao final do percurso. Agora só comia uma banana de 10Kms em 10Kms.

Apesar de passar por aldeias com alguma frequência, nenhuma apresentava qualquer tipo de fruta ou de bebidas para venda.

Quase 2 horas depois do último furo, cheguei a Naguimbué (Nupa), a primeira povoação que aparentava ter electricidade desde que eu saíra de Montepuez. Dirigi-me ao local que me indicaram como sendo o bar da aldeia, um pequeno estabelecimento feito de cimento, canas e palha.

Atravessei a estrada e pedalei até a roda da frente tocar no balcão do bar. Pedi uma Coca-Cola enquanto iniciava o ritual intrínseco de retirar óculos da cara, desapertar a fivela do capacete e remover os auscultadores dos ouvidos.

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Instintivamente observei por entre os ombros dos 2 únicos clientes do bar, a ementa. Tinha obrigatoriamente que colocar algo dentro do meu estômago antes que as paredes deste se colassem por efeito de vácuo.

Incrivelmente o bar tinha sandes para venda, algo a que eu não estava acostumado desde que saíra de Angola. O simples conceito de servirem sandes aos clientes era algo de fantástico. Nas aldeias da Zâmbia e do Malawi o conceito “sandes” não existia ou simplesmente não passava do menu para a prática.

Quando deixei o meu estado de entorpecimento e voltei à realidade, havia devorado 2 sandes de queijo feitas num pão (que me pareceu) delicioso e havia bebido 2 latas de Coca-Cola, à mistura com a penúltima banana do meu stock.

As sandes estavam deliciosas, fazendo-me sentir em casa… só faltava o galão para parecer que estava a lanchar numa pastelaria Portuguesa.

Lutei contra mim mesmo para não embarcar na terceira rodada, mas era hora (15h45) de fazer-me à estrada e concluir os 31Kms que faltavam até Metoro, os quais iriam manter-me ocupado por quase 2 horas.DSCF6329

As sandes e as Coca-Colas fizeram bom efeito (ou fora o vento que abrandara a sua acção nefasta), pois conseguia manter velocidades médias mais altas, no entanto esta renovação de energias não iria fazer-me de chegar a Metoro antes de anoitecer.

A minha sombra estendia-se diante mim por vários metros.

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Significava que o Sol preparava-se para desaparecer nas minhas costas, não sem antes pintar a dourado a atmosfera envolvente.

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A noite aproximava-se, eu tinha menos de 45 minutos para chegar ao destino antes de escurecer.

Metoro era apenas uma pequena aldeia ao longo da estrada. Era também o ponto de ligação entre a estrada de Montepuez para Pemba e a estrada que vinha de Nampula. DSCF6346

O que significaria que muito possivelmente eu voltaria a Metoro depois de visitar Pemba, aquando da minha deslocação para Nampula.

 

Perguntei a um grupo de pessoas que esperavam o machibombo, se sabiam de algum lugar onde eu pudesse pernoitar. Indicaram-me a casa da esquina, um pequeno café/cantina que alugava quartos na parte de trás do estabelecimento.

Dirigi-me à dita pensão na expectativa de encontrar um quarto onde pudesse descansar o corpo. Acabei por ficar alojado num modesto aposento com casa-de-banho.

O quarto não era muito grande, mas dava para colocar a bicicleta lá dentro. O colchão côncavo da cama, fazia-me suspeitar que faltariam tábuas à estrutura original da mesma. A omissão de uma rede mosquiteira causava-me algumas preocupações, ainda mais sabendo que as tábuas das janelas (sem vidro) tinham frinchas no qual eu conseguia fazer passar um dedo.

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Em contrapartida a ventoinha de pé que se encontrava ao fundo da cama, estava em condições de funcionamento. Iria utilizar a ventoinha, não para me “refrescar” pois estava frio que chegasse, mas sim para causar uma zona de torvelinhos e vórtices pouco acima do nível do colchão e que impediriam os mosquitos de poisarem na minha pele.

No tecto do quarto podia ver nas placas de contraplacado, as marcas escuras das infiltrações de água e que eram o local preferido para o encontro de uns insectozinhos pequeninos que não conseguia identificar.

No chão da casa-de-banho na qual eu esperava puder tomar um maravilhoso duche quente, jazia o caneco e o balde de água fria (ao lado do buraco multi-usos) fazendo-me adivinhar que eu iria passar um momento menos bom aquando da hora do banho.

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Mais tarde, dirigi-me ao bar da pensão com um único objectivo – comer.

Enquanto percorria com os olhos esgazeados de fome a ementa constítuida por uma só página, reparei que esta continha um prato de peixe. Peixe do oceano! Não me lembrava quando fora a última vez que comera peixe.

Achei por bem variar a minha dieta optando pelo prato de peixe-pedra com arroz. Com um pouco de sorte, iria jantar um peixe grelhado com arroz de coco.

Largos minutos depois, quando a cozinheira colocou o prato à minha frente, rapidamente concluí que esta não entendera bem o que eu lhe havia pedido. Ao contrário de um prato de peixe acompanhado com arroz, diante mim estava exactamente o contrário. Uma panela de arroz juntamente com um bocadinho de peixe frito.

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Contudo… a minha fome não me permitiu reclamar e avancei para o que me competia.

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Depois do jantar, e enquanto assistia ao telejornal da TVM juntamente com os restantes clientes do estabelecimento, obtive a confirmação daquilo que eu não queria ouvir… eram esperados dias com vento forte de Sudoeste.

Com uma curta profecia, concluí que eu estaria definitivamente condenado a pedalar até Maputo sempre com o vento contra.

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No dia seguinte a etapa seria até Pemba, importante destino turístico Moçambicano que causava em mim uma estranha curiosidade em o conhecer.

As minhas pernas estavam a pedir descanso, apesar do dia de folga em Montepuez.

Esse descanso estava programado para acontecer nas belas praias de Pemba.

Em Pemba, iria aproveitar para procurar alguém que soubesse soldar alumínio e tentar reparar o aro da roda traseira, apesar de este não ter dado problemas na segunda metade do dia.

De Montepuez até Metoro, percorrera 112Kms em 7h14m (onde está incluída a reparação do pneu e a paragem para as sandes de queijo).

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