Moçambique Fase II (Nampula – Murrupula)

Após alguns dias passados em Nampula para reparar o aro da bicicleta, eis que chegou o dia de voltar à estrada.

Na última noite que passara em casa da Ana, ainda colocara a hipótese de regressar à zona costeira e continuar para Sul utilizando as picadas existentes ao longo do Oceano. Afinal de contas era esse tipo de percurso que procurava fazer, tal como fizera dias antes entre Pemba e Nacala.

Depois de uma análise aprofundada ao mapa de Moçambique (que residia na minha cabeça), acabaria por optar em seguir até Mocuba, pela estrada alcatroada.

As principais razões para tão difícil tomada de decisão eram simples, claras e concisas:

- O estado da roda traseira, apesar de aparentemente ser bom, não garantia que esta aguentasse umas centenas de quilómetros de picada (seria melhor fazer um teste no asfalto antes de passar ao fora-de-estrada);

- Havia fortes possibilidades de atravessar longos areais e de encontrar muitos rios sem ponte, principalmente junto ao litoral.

- Eu deveria recuperar alguns dias para compensar os dias perdidos em Nampula e na praia (ou pelo menos evitar perder mais dias). O trajecto a verde, além de ser 85Kms mais curto (entre Nampula e Quelimane) era também o mais rápido, por se tratar da estrada nacional para Mocuba. O trajecto a vermelho, era mais longo, imprevisível, mais aliciante, mas o menos saudável para a minha roda traseira e para a minha paciência.

Mapa

Seguindo pela estrada principal em direcção a Sudoeste, a minha próxima paragem estava prevista para a vila de Murrupula. Uma pequena povoação a 80Kms de Nampula, à qual contava chegar depois de 4 a 5 horas a dar aos pedais (dependendo da acção do vento e do número de subidas que encontraria pela frente).

Eram as 10h22 quando terminei a sessão de despedidas aos meus anfitriões e iniciava a etapa até Murrupula. Para trás ficavam os amigos que fizera dias antes em Chocas-Mar e com o qual mantivera permanente contacto até à altura da minha partida de Nampula (obrigado Ana, Sylvia, Jorge, Daniel e Kara – entre outros). Despedimo-nos de sorriso na cara, mergulhados na incerteza da mais moralizadora das expressões:

“… Quando chegares telefona para combinarmos um jantar…” - mesmo sabendo à partida que esta ervilha a que chamamos mundo, tomaria dimensões colossais quando menos esperássemos.

A saída da cidade de Nampula demonstrara-se um processo irritante, devido à quantidade de carros, mini-bus, machibombos, chapas etc que circulavam de qualquer maneira e sem ter o mínimo de consideração (ou cuidado) por aqueles que utilizavam a mesma via - mas de bicicleta.

Pedalava para Sudoeste, em direcção a Murrupula. O meu companheiro “Vento”, já havia marcado a sua presença na viagem, chocando constantemente com o meu ombro esquerdo.

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O vento soprava de Sudeste, colidindo com a minha trajectória a 90o. Algo que não prejudicava em muito a minha moral (contrariamente ao que vinha a acontecer desde Luanda), nem sequer o meu andamento. Estava a conseguir manter médias de 20Km/h, o que considerava ser uma prestação bastante boa.

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A paisagem mudara claramente desde que deixara Nampula. Voltava aos cenários atestados de colinas e vales verdejantes, com vários magotes rochosos colocados (quase) propositadamente aqui e acolá, tal como havia visto na Província de Cabo Delgado.

Ao longe, por entre a vegetação, conseguia distinguir os postes de alta tensão que traziam a energia eléctrica de Cahora Bassa às cidades do Nordeste Moçambicano.

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Pedalava entretido nos meus planos e feliz por voltar à estrada. A ressaca por deixar os dias de conforto e por deixar os (novos) amigos para trás, ia diluindo-se nas gotas de suor que escorriam da minha cabeça. A minha mente deixava de concentrar-se no aro da bicicleta e passava a focar-se nas etapas até Mocuba e posteriormente até Quelimane.

Voltava a sentir a alegria por pedalar para o incerto (apesar de este ser mais “certo” que outros “incertos”), de sentir o prazer da liberdade e de ser o dono do meu próprio dia. Voltava às bananas, às latas de Coca-Cola, às refeições de lata, às camas de improviso, aos banhos a balde, às 7 horas diárias em cima da bicicleta… em suma… voltava à minha viagem…

 

Apenas com uma “pseudo-condicionante” que seria a de percorrer os 550Kms até Quelimane em cinco dias. Cidade, onde iria me encontrar com um grupo de amigos que vinha do Malawi.

Estava com 2h02m de viagem e havia percorrido 39,2Kms desde que deixara a casa da Ana. Encontrava-me a meia distância entre Nampula e Murrupula e tudo parecia correr sobre rodas…

… Não fosse o facto de voltar a sentir aquela incómoda, irritante e desesperante sensação de “pneu traseiro furado”.

Por momentos senti o meu sangue a entrar em ebulição, mas após duas golfadas de ar para oxigenar o metabolismo, descontraí os maxilares e aliviei os punhos do guiador da bicicleta.

Encostei a bicicleta à berma da estrada e iniciei um minucioso processo de identificação do objecto causador de tamanho inconveniente. Ainda com o pneu montado no aro, ansiava por encontrar um espinho, um arame, um prego ou qualquer outro objecto que pudesse ter perfurado o meu pneu chinês, comprado no Malawi.

Rodei lentamente o pneu até completar por 3 vezes um giro de 360o, sem encontrar absolutamente nada. Era sinal que o furo seria no interior, o que poderia significar que o aro teria cortado (mais uma vez) a câmara-de-ar.

Desmontei o pneu num ápice, atormentado pela fobia do aro estalado, mas sempre na expectativa de encontrar uma (outra) explicação lógica para o furo.

Vindos do nada, várias crianças observavam-me a meia distância. A sua presença passava quase despercebida para mim, no entanto servia de chamariz aos mais graúdos, que também iam-se juntando ao grupo mas a menor distância de mim. Por sua vez, os mais novos perdiam o medo e aproximavam-se ainda mais, ao ponto de quase acabarem em cima de mim.

Assim que retirei o pneu, a câmara-de-ar e as tiras de borrachas do aro da bicicleta, deparei-me com a mais lógica das explicações:

O aro estava estalado!

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Havia novas “estaladelas” por toda a parte, mas desta vez maiores que as anteriores. Rodei o aro várias vezes para me inteirar da gravidade da situação. Longitudinalmente, o aro parecia uma serpente com diversos “SSS” originados pelo processo de soldadura. A maior parte dos raios estavam desapertados, dando ainda mais instabilidade ao conjunto.

As rachas dentro do aro eram de tal maneira graves, que faziam-me temer pela continuidade da etapa.

Nos primeiros minutos de reflexão, a solução mais sensata seria o regresso a Nampula e voltar a soldar o aro. No entanto nada garantia que a roda ficasse operacional e que não voltaria a partir.

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Enquanto tentava controlar a minha pulsação, de modo a não colocar o aro estalado debaixo do primeiro camião que passasse e assim acabar de vez com esta saga, fui-me apercebendo que a pequena multidão de curiosos amontoava-se ao meu redor. Os meus ouvidos desentupiram e abriram-se para captar os sons envolventes. Comecei a distinguir os diálogos entre os vários membros do clã. Expunham entre eles, sugestões, soluções, milagres… enfim, um rol de argumentos sobre como reparar a câmara-de-ar. Alguns deles até se voluntariavam (a troco de dinheiro) para avançar com a reparação.

Na realidade, tudo o que eu precisava naquele momento era que me deixassem pensar, não na câmara-de-ar que era o problema menor, mas sim no aro… onde residia a raiz de todo o imbróglio.

Irritava-me solenemente o facto de alguns dos presentes estarem comigo, apenas com o objectivo de receber algo em troca, mesmo que não fizessem nada. Chegavam mesmo a “envenenar” os ouvidos dos mais jovens com expressões completamente utópicas, de onde sobressaía um certo “interesseirismo”. A simples intenção de ajuda ou de agarrar na bicicleta parecia nunca lhes ter passado pela cabeça, mesmo vendo-me a bufar enquanto utilizava todos os membros para segurar nas ferramentas, no aro, na bicicleta, na câmara-de-ar, etc…

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De volta ao meu raciocínio, analisava bem a fundo a hipótese de voltar a Nampula. O regresso à cidade era algo que não me atraia logo de início, por isso tentava procurar todos os motivos que me demovessem de tal solução.

O único motivo encontrado, era o facto de ter que regressar para uma cidade que eu já conhecia, ainda por cima montado numa carrinha de caixa aberta, para reparar um aro sem reparação possível.

Posto isto, optei pela solução mais insensata. Iria reparar a roda e seguir viagem para Murrupula.

Reparei a câmara-de-ar com um remendo de grandes dimensões, para logo de seguida envolve-la em algumas tiras de borracha de maneira a proteger a câmara-de-ar das rachas do aro.

Voltei a “soldar” o aro com as colas metálicas que ainda trazia nos alforges, com o objectivo de encobrir as arestas afiadas que se estendiam por toda a parte.

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Com todo o processo de ponderação, reflexão e solução do problema, eu acabara de perder 58 minutos de tempo (onde ficou incluída uma sessão de comentários “didácticos” à minha plateia e que culminou com a foto de família).

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De volta à estrada e quando me preparava para impor novo ritmo ao centro de rotação dos pedais, volto a sentir a amarga sensação do metal a raspar no alcatrão.

Novo furo no pneu traseiro. Não havia percorrido mais que 3Kms desde o último furo e já estava novamente encostado à berma da estrada com o mesmo problema.

Ainda antes de alçar uma perna por cima do selim para sair da bicicleta e de começar a fazer fosse o que fosse, passou pela minha mente numa fracção de eternos milissegundos, as soluções que eu teria à disposição.

À primeira impressão, a etapa terminava ali. Tinha o aro completamente estalado, o que iria continuar a cortar a câmara-de-ar vezes sem conta (mesmo estando protegida com tiras de borracha).

A ideia de voltar para Nampula continuava a causar-me uma certa micose cerebral, pelo facto de ser solo já explorado e por não me garantir nada de novo.

A solução passava neste momento por um aro novo. Um simples aro de 26” para uma bicicleta de montanha… um aro que parecia ser impossível de encontrar nas cidades do Norte de Moçambique.

Por último, havia ainda o axioma que eu mais apoiava…

- Para trás já sabia que não encontraria solução… para a frente não sabia se iria ficar pior ou melhor…

… Por estas razões seguiria pela estrada à minha frente.

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Voltei a desmontar o pneu do aro para analisar o problema.

Desta vez, o furo era simplesmente o mesmo furo. Ou seja, o corte anterior havia-se propagado ao longo da câmara-de-ar até ultrapassar os limites do remendo.

A única solução seria aplicar a última câmara-de-ar suplente que trazia comigo, usando mais uma vez a câmara-de-ar velha em torno do aro de modo a evitar novos cortes.

Após a montagem da roda chego à surpreendente conclusão que tinha um pneu quase de borracha maciça. A roda estava agora mais desalinhada e mais “descalibrada” do que nunca. Por cada volta completa, o aro tocava duas vezes no calço de travão direito, e uma vez no calço de travão esquerdo.

Entretanto decidi dar mais uma oportunidade ao aro e avançar na direcção do destino proposto no inicio da etapa.

Para evitar que as abas do aro estivessem sujeitas a esforços elevados e consequentemente obrigarem à abertura do mesmo, decidi usar o pneu “meio-cheio” de ar. Só assim seria possível prolongar a longevidade da roda e reduzir o seu desalinhamento.

Contava neste momento com mais de 1h30m perdida em reparações inesperadas, que aliada às 2h00m ainda restantes até chegar a Murrupula, impediriam de chegar antes das 15h00.

A traseira da bicicleta saracoteava várias vezes a cada volta completa dos pedais, fazendo-me duvidar até quando a roda iria tolerar a brincadeira.

Com o passar do tempo, o ar ia ficando mais pesado e denso. O céu azul dava lugar a um manto espesso de nuvens carregadas, prontas a largar o seu fardo em qualquer local das proximidades. Contudo pedalava com uma certa tranquilidade, pois não me parecia que eu fosse o alvo dessa descarga.

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Cheguei a Murrupula 17 minutos depois das 16h00. A vila ficava a 2Kms da estrada nacional, onde o acesso era feito por uma picada de terra vermelha.

À entrada da vila, havia 2 pilares de cimento, onde ainda se podia ver os restos do brasão de Portugal.

A receber-me, estava uma rotunda rodeada de várias casinhas governamentais bem arranjadas e muitas árvores. A vila estendia-se por uma avenida de terra batida e areia, com um separador central. Um pouco por toda a parte havia edifícios de outrora em diferentes estados de conservação.

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Dirigi-me ao edifício do Governo Municipal de Murrupula para obter algumas informações sobre alojamento e alimentação. Após alguns minutos de conversação (acerca do motor da bicicleta), acabei por ficar na casa de hóspedes do município. Uma casa antiga e bastante espaçosa em relativo estado de conservação interior.

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No quarto destinado ao meu repouso, fui obrigado a queimar algum insecticida para diminuir a probabilidade de ser “beijado” por alguma mosquita e consequentemente ser mais um número nos bancos dos laboratórios de detecção da malária.

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Depois de um banho a balde e de água fria, a minha sentença seria tentar reparar a roda da bicicleta com o que tinha à mão. Neste caso, seria apenas a afinação dos raios do aro de modo a diminuir o empeno deste.

O serão seria passado no jango do outro lado da rua, onde pude deliciar-me com um bom prato de carne enquanto preparava a minha rota para os dias seguintes.

Até Murrupula percorrera 80Kms em 6h12m, onde 1h39m foram de total dedicação à minha roda traseira. Para a etapa seguinte teria pela frente 130Kms até Alto Molocue, que caso a minha roda o permitisse, seriam percorridos em 7hrs a 8hrs.

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