Moçambique (Chocas Mar – Matanuska)

 

Levantei-me cedo de maneira a preparar-me para partir antes da alvorada dos restantes habitantes da casa. Era a única maneira de não ser persuadido a ficar mais um dia na maravilhosa e tranquila praia das Chocas.

O António estava de volta do pequeno-almoço enquanto eu compactava as últimas coisas nas malas da bicicleta. Poucos minutos depois, a mesa da varanda estava ornamentada com uma apetitosa e substancial refeição.

DSCF7010 Deixei a casa do Jorge (já com alguns dos habitantes da casa acordados) 10 minutos antes das 10h00, carregado de vontade por voltar à estrada.

Sensação esta, que não era partilhada pelas minhas pernas, pois haviam-se habituado à vida fácil onde o exercício máximo era subir e descer as escadas para a praia.

Poucos minutos depois atravessava pela 4ª vez, a pacata vila de Mossuril.

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À saída da vila, encontro umas bombas de combustível. Do lado de fora, um cartaz publicitário da Coca-Cola ofuscava-me a vista de modo que não conseguia ver o resto da estrada. Decidi encostar e deliciar a minha garganta.

Enquanto basculhava os meus bolsos à procura de trocos para pagar a Coca-Cola, reparo que diante de mim e sentado no passeio, estava um homem de meia-idade. Antes da minha chegada, este estava na conversa com a única empregada das bombas mas foi obrigado a interromper a sua dissertação para que a jovem rapariga pudesse atender a minha Coca-Cola e os outros dois clientes que haviam chegado ao Posto de Abastecimento.

DSCF7016 Um dos clientes faziam-se transportar numa motorizada e pretendia abastecer o seu veículo. O outro, vinham num veículo 4X4 e aparentava um certo estatuto socioeconómico que fazia-me supor que fosse algum empresário local ou alguém que regressava do fim-de-semana.

Eu continuava a contar moedinhas e fazer contas de cabeça, para que não me enganasse nas matemáticas do preço da minha bebida.

Depois de uns penosos minutos a verificar ambos os lados do punhado de moedas seleccionadas, algo fez o meu cabelo encrespar. Aguardei uns segundos de olhos postos nas moedas e a desejar que não fosse nada comigo. No entanto o “som” repetiu-se (desta vez mais alto) perfurando e rebentando com os meus tímpanos.

- Patrão… patrão… dá lá metical…

Sem levantar a cabeça, olhei por cima dos óculos na ânsia que tal pedido fosse para os outros dois clientes do Posto, e que haviam pago a sua despesa com algumas notas de elevado valor… mas eu estava completamente errado. As palavras eram mesmo para mim… o único “roto” das proximidades, e que ainda não tinha acabado de somar a quantia necessária para pagar a Coca-Cola.

O cliente da motorizada preparava-se para colocar o seu veículo a trabalhar, enquanto o cliente do jipe ainda estava do lado de fora do seu veículo a arrumar alguns dos seus pertences. A empregada das bombas aguardava que eu lhe entregasse a minha colecção de moedas, com a Coca-Cola numa das mãos.

Expliquei ao insensato cidadão que encontrava-me a contar moedas para comprar a Coca-Cola e perguntei-lhe porque não fez o mesmo pedido aos outros clientes que passaram mesmo à sua frente.

A resposta proferida pelo indivíduo, não podia ser mais didáctica:

- Aqueles ali são de cá… Patrão não é… Dá lá dinheiro que tenho sede… Patrão não compra Coca-Cola e dá-me o dinheiro…

DSCF7014 Inicialmente pensei que estivesse na brincadeira, mas tal ideia desvaneceu-se rapidamente após várias insistências por parte do sujeito.

Parti para o contra-ataque e sem conseguir segurar a língua soltei todo o tipo de verdades que me passaram pela cabeça. Após alguns segundos de silêncio, obtive uma breve mas imperativa resposta:

- Patrão é branco… então tem que dar dinheiro…

Com este argumento, peguei na minha Coca-Cola (que entretanto ficou paga), deliciei-me com o seu sabor amargo e parti com os olhos raiados de raiva, preparado para pedalar até bem longe dali.

Percorri os 20Kms de picada para depois encontrar a estrada de alcatrão.DSCF7019

Virei para a minha direita em direcção a Oeste para pouco depois efectuar mais uma paragem.

Desta vez no restaurante “”A Heroína”, para me despedir do Carlos, da sua família e dos restantes empregados do estabelecimento.

 

Cerca de uma hora depois, voltava ao entroncamento com a estrada principal. A N8 que ligava Nampula a Nacala (ou vice-versa).

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Com o passar das horas, o dia que tinha começado com céu azul, apresentava-se agora com diversas nuvens que projectavam a sua sombra exactamente onde eu me encontrava.

O facto de pedalar na sombra (por incrível que pareça), tornava a viagem relativamente incómoda. As temperaturas não atingiam os mínimos do confortável, em parte devido ao vento que passeava pela região.

Não adiantava fazer planos para pedalar debaixo desta ou daquela aberta de modo a aquecer o meu lombo ao Sol. Para onde fosse que eu me dirigisse… uma nuvem havia de estar preparada para me fazer sombra. Valia-me o vento que contrariamente às últimas etapas, soprava na lateral, animando um pouco a jornada. Quer dizer, … Não trazia grandes benefícios, mas pelo menos também não trazia grandes prejuízos à minha progressão (a não ser uma ligeira sensação frio).

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Como já era hábito, o iPod seguia ligado (em shuffle) numa tentativa frustrada de distrair-me com as suas músicas mais-que-gastas. Só me lembrava que este debitava melodias, quando ocasionalmente um dos auscultadores caía da orelha e eu ficava a ouvir as músicas em “mono”.

Após alguns dias a tirar a barriga de misérias, eis que volto à minha “dieta” alimentar forçada. Desta vez um pacote de bolachas de coco (para variar) que iria servir de aditivo energético para o resto da viagem.

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Mesmo sabendo que a minha velocidade média estava dentro de valores bastante aceitáveis e que o meu cansaço físico ainda não tinha atingido níveis preocupantes, eu sentia que os quilómetros custavam a passar. Parecia que a bicicleta não saía do mesmo sítio e que o conta-quilómetros não avançava para o dígito seguinte.

No fundo do meu inconsciente atribuía a causa de tal enfadonho percurso ao facto da paisagem ser demasiado monótona, ao facto da estrada ser de alcatrão e talvez ao facto de ser sempre tudo igual.

Acabei por descobrir entre um ligeiro dorido corporal (derivado do formato do selim) e uma sensação de vazio no estômago, que existia em mim uma ânsia enorme para chegar ao destino e terminar a etapa.

Viria a desvendar um pouco mais tarde que a minha ansiedade tinha uma ligação directa com os dias em Chocas-Mar e na Ilha de Moçambique. Trocado por outras palavras, significava que o meu corpo desabituara-se ao formato da bicicleta, às horas de pedal, às dores nos punhos (e outros pontos de apoio), à sensação constante de fome, à falta do “bem-estar”, etc etc , enquanto a minha mente queixava-se do silêncio, da solidão, e das saudades da mesa da casa do Jorge repleta de comida…

Em suma, os dias em Chocas-Mar e na Ilha de Moçambique, haviam viciado a minha mente e o meu corpo para o “dolce fare niente”. Neste momento eu estava a pagar a ressaca dos dias de descanso, fazendo-me desejar chegar à Matanuska, arrumar a bicicleta e ir comer… quanto antes!

Pedalara apenas 10Kms desde o cruzamento de Monapo, quando avistei ao longe no meio da vegetação, as duas torres de uma antiga igreja.

Saí da estrada principal e virei à minha direita, por uma estrada de terra batida e areia que me levaria até ao magnífico edifício.

À frente da igreja, um enorme espaço aberto onde algumas crianças jogavam à bola. Nas laterais da igreja, havia vários edifícios de baixa estatura bem conservados. A toda a volta da imponente construção havia sinais de preservação e de cuidado, não só das edificações como também dos espaços adjacentes.

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Havia um excessivo sossego no ar. Não se ouvia nem se via ninguém e até mesmo as crianças que jogavam futebol em frente à igreja, pareciam que jogam em silêncio.

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Nas casas das imediações da igreja, funcionava uma importante Escola de Tecnologia Mecânica, orientada pelos padres.

Pensei que este poderia ser o local ideal para reparar a roda traseira da minha bicicleta. No entanto tal viria a ser impossível uma vez que nunca encontrei ninguém que me pudesse esclarecer sobre esta questão. As únicas almas que eu avistara até então, continuavam a ser os miúdos que jogavam à bola em frente da porta da igreja.

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De volta à estrada de alcatrão e com os índices de motivação melhorados, pedalei mais 16Kms até voltar a desviar-me para outra picada.

Desta vez na estrada de terra batida que me levaria à Matanuska, o meu destino final.

A Matanuska não era uma povoação, nem nada que se parecesse. A Matanuska era simplesmente uma enorme propriedade que se dedicava à produção de bananas para exportação.

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Estava localizada a cerca de 12Kms do entroncamento da estrada nacional que vinha de Pemba e de Montepuez, com a estrada que ligava Nampula a Nacala.

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À chegada à Matanuska, tinha o Jorge à minha espera. Iria uma vez mais, ficar alojado na casa do Jorge (desta vez na casa da Matanuska), onde pude tomar o meu primeiro banho de chuveiro e água quente em 20 dias.

Da Praia das Chocas até à Matanuska, pedalei 88Kms em 5h40m, onde 59 minutos foram passados fora da bicicleta.

A próxima etapa tinha como destino a cidade de Nampula, a pouco mais de 100Kms da Matanuska, e seria percorrida no dia em que eu completaria mais um ciclo de 365 dias do meu calendário.

2 comentários:

  1. Então e o botão do like?? :P
    Parabéns por mais um fascinante relato ;)
    Keep up the good work!! S.C.

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  2. Pedro sei stato semplicemente fantastico con la tua espressione "dolce fare niente",
    Bravissimo!!

    Un bacio, maribel

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