Moçambique Fase II (Gorongosa – Parque Nacional da Gorongosa)

 

Dei por mim a observar a obra de arte que o electricista havia deixado no meu quarto na noite anterior.

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Era de manhã cedo. Não tão cedo quanto eu pretendia mas, paradoxalmente, era mais cedo do que eu esperava. Fosse como fosse, eu estava acordado e pronto para saltar da cama. A etapa até ao Parque Nacional da Gorongosa seria curta e como tal não me obrigava a grandes pressas.

Eram as 7h22 quando me sentei numa mesa do refeitório da Pousada Magaço, para tomar o meu pequeno-almoço.

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DSCF7779Consultei entusiasmado o menu que se encontrava num canto em cima do balcão do refeitório, mas poucos segundos depois, viria a saber que o menu tinha um efeito meramente decorativo e que eu teria que me consular com as minhas papas Cerelac para encher o bucho.

 

 

De estômago forrado, dirigi-me aos meus aposentos para preparar a minha partida. Não sem antes, dedicar alguns minutos com os cuidados médicos no bocado de carne que trazia à mostra no meu tornozelo e que não havia meio de sarar.

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Passaram-se quase 2 horas desde o acordar até que conseguisse sair da pensão. Eram as 9h15 quando iniciei a etapa de pouco mais de 40Kms até ao Parque da Gorongosa. Logo nos primeiros minutos da viagem, pude constatar que teria dificuldades adicionais para o percurso do dia. O vento soprava mais forte do que qualquer dos dias que me recordava… e para não variar, este rumava em sentido contrário ao meu.

Ainda nas imediações da vila de Gorongosa, algo recordou-me o quão próximo eu estava de Maputo e consequentemente, próximo do final da minha viagem. Uma realidade que eu tentava afastar a todo o custo da minha mente, inventando trajectos e itinerários potenciais, com o objectivo de estender (e prolongar) ao máximo os meus dias de pura liberdade e de constante sentimento de realização.

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No entanto a minha viagem virtual pelos cenários hipotéticos não durou mais que alguns instantes. 30 Minutos após o início da etapa, a minha roda traseira resolveu recordar-me da sua existência, sacudindo a bicicleta para a esquerda e para a direita de um modo quase endiabrado, fruto dos diversos raios que se haviam soltado.

Em regime de auto-controlo, saí da bicicleta, dediquei-me ao aperto dos raios soltos, à verificação dos restantes raios e ao alinhamento da roda. 10 Minutos depois, a bicicleta estava apta para continuar a etapa.

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Retomado o andamento e depois de alguns quilómetros a tentar recuperar o tempo perdido enfrentando um forte vento contra, ouço um forte e seco estalo metálico. Era um raio partido! Mais uma vez interrompi a minha marcha e encostei para analisar a situação. A paciência para mudar um raio à roda da bicicleta era completamente nula. Como solução alternativa, optei por compensar a tensão dos raios adjacentes com o propósito de manter a roda centrada e assim prosseguir viagem.

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Pouco depois, enquanto me debruçava na contemplação paisagística e na análise das condições climatéricas, rebenta nos meus ouvidos mais um estalo metálico. Era o 2º raio a partir-se! Consequentemente a roda começou a gingar ligeiramente de um lado para o outro, o que me levou a nova paragem e novo reforço da tensão dos raios restantes. Eu ainda possuía bastantes raios suplentes, alguns de origem chinesa, outros de origem indiana, mas todos eles de comprimento aproximado aos raios de origem. A questão da substituição dos raios partidos por raios novos não chegava a assentar na minha cabeça, pois achava que para uma etapa tão curta os restantes 30 raios da roda, haviam de aguentar até ao final. Eu havia decidido que o período de manutenção e reparação da bicicleta seria realizado durante os dias de estadia no Parque da Gorongosa e não durante a viagem até lá. Como tal, a minha teimosia não permitia mais perdas de tempo com uma coisa que vinha a atormentar-me a viagem, desde a troca da roda em Alto Molocué há 900Kms atrás.

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Ao longo dos restantes quilómetros até à Reserva da Gorongosa, e enfrentando o forte vento que assolava a região, seria obrigado a efectuar curtas paragens para reapertar os raios da roda e assim prosseguir viagem sem realizar a demorada substituição dos mesmos. Simultaneamente questionava a minha sina relativamente às etapas mais curtas da minha viagem. Estava escrito algures como postulado, que sempre que eu tinha uma etapa curta para percorrer e consequentemente ter a possibilidade de usufruir de um dia mais calmo e o aproveitar para outras actividades que não o pedalar, então seria confrontado com os mais corriqueiros dos problemas. Senão eram furos, eram os raios partidos. Se não fossem raios partidos, eram raios desapertados. E se não fossem raios desapertados, eram aros estalados ou partidos… e se não fosse uma coisa nem outra, então haveria de aparecer um problema novo.

Com o meu aproximar ao Parque Nacional da Gorongosa, volto a encontrar uma sinalética que já não via há alguns milhares de quilómetros. Desde o interior Angolano que não avistava o intimidante sinal vermelho com uma caveira branca no seu interior, a alertar para os perigos deixados por uma guerra civil.

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Na realidade a zona da Gorongosa fora uma das mais fustigadas pelos confrontos entre as tropas da Frelimo e da Renamo. Para além das consequências bem conhecidas ao nível da população civil, havia também um outro tipo de vitimas que na maior parte das vezes passavam despercebida aos olhares do mundo. Grande porção da enorme riqueza animal da região, havia sido dizimada para alimentar as tropas de ambos os lados, deixando graves sequelas no ecossistema da região, ainda visíveis nos dias de hoje.

Eram as 11h45m quando chego ao entroncamento para o Parque Nacional da Gorongosa. Pela frente teria apenas 11Kms de picada até chegar aos portões do parque a partir dos quais teria que prosseguir de carro, pois não era permitido circular de bicicleta dentro do seu perímetro (por razões de segurança).

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A picada até à estrada do parque estava em boas condições, com uma ou outra zona de areia que me sujeitava a um esforço extra, mas sem grandes percalços. Todavia isso não era motivo para a minha roda traseira deixar de me atormentar, obrigando-me a dedicar-lhe alguma da minha atenção para apertar os raios. Nestas alturas (de paragens ou de baixa velocidade), diversos moscardos de origens duvidosas, aproveitavam para saciar a sua fome na ferida que trazia no meu tornozelo. Outros aproveitavam para espetar os seus ferrões nas partes expostas do meu corpo, tais como as orelhas e nos nós dos dedos, deixando um ardor que me comia a paciência. Um ou outro moscardo mais audaz, pousava nas minhas costas ou coxas e atrevia-se a perfurar as minhas vestes com o seu ferrão deixando imediatamente uma dolorosa marca no meu couro. Na falta de algo melhor, pulverizava-me com insecticida na esperança de manter a bicharada à distância e assim tentar chegar ao meu destino sem ser devorado por tais incomodativos seres esvoaçantes.

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Cerca de 30 minutos depois, chegava aos portões do Parque Nacional da Gorongosa.

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Telefonei ao Vasco Galante a confirmar a minha chegada, que imediatamente enviou um veículo para me transportar até Chintengo, local onde ficava a recepção, o acampamento, o restaurante e todas as outras facilidades do parque.

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À chegada a Chintengo, deparei com uma estrutura bastante bem arranjada e capaz de satisfazer as necessidades de todo o tipo de visitantes. Desde a zona para campismo até aos bungalows, passando pelas áreas de alimentação e as áreas de lazer, tudo estava bem estruturado e em excelentes condições, fruto de um recente investimento na reabilitação deste santuário da vida animal.

Fiquei alojado num dos quartos que ainda não havia sido remodelado por um preço bastante convidativo. No tecto forrado a palha, havia vários buracos por onde entravam alguns mosquitos, mas tal não me fazia grande transtorno pois bastava-me queimar um pouco de incenso repelente, para os insectos desaparecerem por várias horas.

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As casas de banho eram as de apoio ao parque de campismo, situadas do outro lado do recinto, onde poderia desfrutar de um bom banho quente. Por sua vez, a área de alimentação (e a que mais me interessava) situava-se bem ao lado da minha habitação.

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Ao longo do restante do dia, pude observar os estragos que os impiedosos moscardos haviam feito no meu corpo. Nas minhas mãos, 3 enormes borbulhas acabam de rebentar deixando a minha carne à mercê de outros insectos. Nas coxas e costas outros 2 rebentos causavam-me bastante incómodo e comichão. Por sua vez, o bocado de carne que trazia exposto no tornozelo, continuava sem meios de sarar, atraindo a bicharada mais faminta e sequiosa por sangue.

Estava decidido a passar uns dias no parque e usufruir do que este teria para me oferecer. Na minha agenda estava a realização de um safari ao seio da reserva, a reparação e manutenção da bicicleta e também a preparação da rota após a Gorongosa.

A única limitação que tinha em mente (além da roda da bicicleta) era o prazo do meu visto que encontrava-se próximo da caducidade.

2 comentários:

  1. "Eram as 11h45m quando chego ao entroncamento para o Parque Nacional da Gorongosa" - exactamente à mesma e hora e no mesmo local, uma cena surreal: em plena África profunda cruzamos com uma bicicleta bem apetrechada para viagem pilotada por um ciclista de óculos, capacete e fato apropriados e modernos. Nós vinhamos do Chimoio, onde tínhamos aterrado horas antes. Não podíamos era imaginar que o ciclista "surreal" já tinha cortado África do Atlântico ao Índico. Isso e muitas das suas aventuras só conhecemos mais tarde quando, acampados no Chitengo, conhecemos o Pedro.

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