Moçambique Fase III (Inchope – Muxungue)

 

Acordei às 6h45 com toda a preguiça do mundo em cima do meu corpo.

Aos poucos apercebi-me do local onde me encontrava e das falhas existentes na cama onde permanecia deitado. Enquanto tentava arrancar o meu corpo da cama, agradecia às 8 horas diárias que passava (em média) em cima da bicicleta e que abonavam-me com a capacidade de conseguir dormir em qualquer lugar, tal e qual como se estivesse a dormir em minha casa.

Passavam 45 minutos da hora prevista para o meu despertar. Este atraso poderia sair-me caro dado a longa etapa que eu teria pela frente até à povoação de Muxungue.

Recordava uma saudável conversa que tivera com um camionista na noite anterior, em que este referiu que entre o Inchope e Muxungue “…não tem nada… tem que chegar lá no Muxungue para encontrar comer…”.

Dada a distância que me separava de Muxungue (150Kms) e as condições em que se encontrava a minha bicicleta, este não era certamente o meu destino de eleição. Seria arriscado aceitar uma etapa tão longa, que levaria cerca de 8 horas a ser percorrida (sem incidentes) e da qual eu contava apenas com 1h30m de tolerância até ao anoitecer.

Por outro lado, não tinha outra solução senão avançar até Muxungue para evitar dormir em nenhures entre o Inchope e Muxungwe.

Iniciei a etapa às 8h00, deixando para trás a modesta pensão onde passara a noite.

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As temperaturas à volta do meu corpo estavam incomodamente baixas. O céu apresentava-se encoberto impedindo que o Sol aquecesse o dia… e o vento estava contra…. Começava bem a etapa!

Para que eu deixasse de sentir o frio que mantinha os meus pelos em pé, tentava aplicar algumas rotações extras aos joelhos, aumentando assim o esforço imposto ao meu organismo. Contudo, o forte vento contra não permitia que o meu objectivo fosse atingido.

Também o facto de eu ser obrigado a pedalar em tripla, não ajudava em nada uma boa prestação da minha parte, pois cada vez que surgisse uma subida um pouco mais íngreme eu seria obrigado a forçar em demasiado a corrente e as minhas perninhas.

Para combater a insipidez da etapa, o meu cérebro canalizava toda a atenção para os cálculos de previsões de chegada a Muxungue. Os poucos minutos que passara sentado na bicicleta até então, levavam-me a aceitar que eu estava condenado a passar o resto do dia a pedalar, até conseguir chegar ao destino.

55 Minutos depois de ter deixado o Inchope, sinto o aro da bicicleta a bater no alcatrão. Não sabia bem porquê, mas algo me dizia que este impasse iria acontecer mais cedo ou mais tarde.

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O simples facto de ter desmontado o pneu no final do dia anterior, para reposição dos raios partidos, era razão mais que suficiente para ter um furo sem qualquer aviso. Pelos menos assim diziam as estatísticas dos últimos mil e tal quilómetros…

Mesmo antes de sair de cima da bicicleta e antes de desmontar o pneu do aro, já sabia o que iria encontrar. Seria um furinho do lado interno da câmara-de-ar. Algo que me deixava os cabelos em pé e os nervos a borbulhar de raiva.

Eram já em demasia, os furos semelhantes que enfrentara nas últimas etapas e sem que eu conseguisse identificar onde estaria o problema.

Desmontei a roda para reparar a câmara-de-ar com mais um remendo e aproveitei para substituir mais um raio que partira nos primeiros quilómetros da etapa.

Os níveis da minha paciência e tolerância para com os problemas da roda traseira, estavam muito próximo do zero. As avarias eram sempre as mesmas e a meu ver, sem qualquer razão lógica… mantinha-se o teorema, “se não eram os furos, eram os raios… se não eram os raios, era o aro… se não fosse o aro, então eram os furos…”. Ou vice-versa… Que mais estaria para acontecer à minha roda?

Isto para não falar na corrente e nas engrenagens…

Mais uma vez analisei a câmara-de-ar à procura do furo. Identificado o local deste (relativamente no mesmo sitio dos anteriores), voltei a procurar no interior do raio algo causador de tanta dor de cabeça… mas nada.

Com o roncar do motor de um camião que se aproximava, ainda passou-me pela cabeça colocar a roda no meio da estrada. Era da maneira que acabava com o problema do aro de uma vez por todas… mas, uns breves instantes de sobriedade mental, fizeram-me voltar à Terra e continuar com a reparação da roda.

De modo a proteger a câmara-de-ar de um novo furo, optei por enrolar uma tira de borracha em torno da mesma.

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Reparação concluída, estava na altura de voltar à estrada e tentar recuperar o tempo perdido.

Meia-dúzia de minutos depois, volto a encostar à berma com o pneu vazio!

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Coloquei os dois pés no chão, com o quadro da bicicleta preso no meio das pernas. Retirei dos ouvidos, os auscultadores do iPod que debitavam uma música qualquer que eu não conseguia ouvir. Agucei o meu sentido auditivo e procurei na atmosfera pelo roncar de um camião. De preferência um camião bem pesado e sem travões.

Contei várias vezes até 10, na expectativa de avistar um camião no horizonte, a Norte ou a Sul… tanto me fazia…

Simultaneamente soltava largos elogios à minha roda traseira, que desde a entrada em Moçambique agoirava a minha viagem. Valia-me o vasto dicionário da Língua Portuguesa para caracterizar da melhor maneira tudo o que sentia por este bocado de metal e borracha de forma aparentemente circular.

Na falta de algo que resolvesse o problema de uma vez por todas, acabei por deixar me levar na tentação de dar mais uma oportunidade à minha roda.

Saí da bicicleta e comecei a desmontar o pneu. No momento em que fui obrigado a carregar um fardo de paciência do tamanho de um elefante, era exactamente o mesmo momento em que tudo de enervante acontecia.

Em primeiro lugar era a bicharada esvoaçante que não parava de rondar as minhas orelhas e as feridas que ainda trazia em carne viva, tanto nos calcanhares como nos nós dos dedos.

De seguida era o fio dos auscultadores que resolvia prender-se em todo o tipo de saliências, limitando os meus movimentos… e por último, era a bicicleta que nunca queria ficar na posição que eu pretendia.

Esta tinha que mexer-se, sempre quando eu menos esperava.

Pneu desmontado e após breve análise ao lugar onde esperaria estar o furo, surgiu um sorriso bizarro no meu rosto. O furo não era no mesmo sítio dos outros furos! Deixara de ser o furo no interior da câmara-de-ar, para ser um furo normalíssimo, na periferia da câmara-de-ar tal como acontece a toda a gente.

Decidi aplicar uma câmara-de-ar nova e usar a câmara velha como uma manga protectora. Uma solução que adoptara há muito tempo e que revelava-se eficaz.

Pneu cheio e testado, estava na hora de voltar à estrada. Afinal de contas já perdera mais de uma hora de tempo, obrigando-me a pensar em arranjar outro lugar para pernoitar, que não Muxungue.

DSCF8061 Os quilómetros foram ficando para trás enquanto os ponteiros do relógio avançavam à sua velocidade característica.

A paisagem anémica tornava a etapa mais enfadonha do que aquilo que ela era na realidade.

A musica do iPod já em nada influenciava a disposição do dia. Tentava evadir-me da tortura anímica de ver os quilómetros a passar, um por um… mas sem grande sucesso. Na minha mente pairava o constante pavor de “quando seria o próximo furo?”

Quase 1h30m depois do último furo, avisto uma placa que me relembra o quão distante ainda me encontrava do meu objectivo. Uma visão que, de uma maneira ou outra, acabou por ter uma ligação directa ao meu estômago. Este por sua vez começou a queixar-se da sensação de vazio.

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Decidi atacar um pacote de bolachas de limão e uma par de bananas que sobrara do dia anterior, de maneira a combater o vácuo existente em mim. Uma vez que havia já bastantes quilómetros não via postos de venda de qualquer tipo de géneros alimentares, decidi entrar em regime de racionamento, de modo a estender os meus víveres o máximo de tempo possível.

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Contudo algo corria a meu favor. Uma dezena de quilómetros depois de entrar em “lei seca”, cheguei a uma pequena povoação onde podia restabelecer o meu stock de bananas, além de ingerir algumas bebidas calóricas (leia-se Coca-Cola).

DSCF8063Os poucos minutos que estive parado a negociar o preço das bananas e a Coca-Cola engolida, foram como um vitalizante para as minhas pernas.

Enquanto o refrescante líquido percorria o meu esófago para chegar ao estômago, sentia um exército de glutões a sugar todo o tipo de açúcares e a transporta-lo para os músculos mais necessitados.

Em pouco tempo estava pronto para voltar à estrada e com a gana necessária para recuperar o tempo perdido até então.

Pedalava motivado, a bom ritmo e relativamente alheio aos azares que ultimamente agoniavam a minha viagem. Aos poucos conseguia soltar-me, descontrair os nervos e aperceber-me que o iPod ainda não tinha parado de tocar, desde que saíra do Inchope.

Esquecia-me por vezes que ainda estava bastante longe de Muxungue, destino que voltara a incluir no meu programa, dado a boa prestação dos últimos quilómetros.

Fosse como fosse, a cada 20 quilómetros de estrada, havia umas plaquinhas verdes que obrigava-me a consciencializar da real distância a que me encontrava do final da etapa.

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Aos poucos as pernas foram acusando um ligeiro pesar, levando-me a abrandar ligeiramente para poupar energias. No entanto o “pseudo-repouso” não seria em nada duradouro, pois um ciclista local acabava de me ultrapassar, mirando-me por cima do seu ombro com um ar de gozo.

Não me consegui controlar. Como um cão quando um gato lhe passa à frente, as minhas pernas começaram a debitar binário nos pedais e seguiram ao alcance do atrevido gozão. Tentei abrandar, não só para poupar as pernas como também para poupar as engrenagens da bicicleta e a corrente. Mas a tentativa saíra completamente infrutífera… as minhas pernas não me obdeciam!

DSCF8067 Com a corrente a estalar por todos os lados e com os joelhos quase a saltar das tíbias, consegui alcançar o provocador ciclista.

A minha tensão arterial encontrava-se ao rubro e por incrível que parecesse, a pulsação estava bastante baixa para uma situação como esta.

Não sei se estaria a descarregar no desgraçado todas as frustrações com a roda da bicicleta, ou se estaria simplesmente em muito boa condição física.

Fosse qual fosse a razão, o resultado acabava por ser só um… O meu parceiro desistiu da corrida e numa guinada deu meia-volta à bicicleta e voltou para donde tinha vindo… eu continuava estrada fora… sozinho…

Baixei o ritmo dos pedais para valores mais conservadores e continuei na minha confortável solidão.

Voltava aos cálculos mentais sobre quantas mais horas demoraria para fazer “x” quilómetros, caso a velocidade média fosse “y” Kms/h, etc, etc, etc,… e passado 5 minutos voltava a calcular tudo outra vez… e quantos quilómetros percorrera nos últimos 5 minutos… e quanto quilómetros iria percorrer nos próximos 10 minutos se permanecesse à mesma velocidade… etc, etc, etc, etc… Era o refugio saudável para manter a mente ocupada com qualquer coisa, já que os meus ouvidos já não conseguiam assimilar nenhum dos sons emprestados pelo iPod.

Pouco depois de passar a ponte sobre o rio Buzi, a minha garganta começou a acusar uma incómoda secura. Uma secura que água já não satisfazia. Teria que ser algo mais doce e refrescante.

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Eram as 16h00 e havia 8 horas que estava montado em cima da bicicleta. Percorrera 125Kms e faltavam-me cerca de 25Kms até ao Muxungue. Podia e devia, dar-me ao luxo de efectuar mais uma paragem para reposição de calorias.

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Não muito longe dali, avistei as linhas da rede eléctrica. Significava que eu estaria perto de uma povoação provida de electricidade e consequentemente perto de uma Coca-Cola bem gelada!

Não fora preciso esperar muito mais para ter em mão a melhor Coca-Cola do mundo… a minha.

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Poucos minutos depois regressava à estrada, entusiasmado pela boa prestação dos últimos quilómetros e pela frescura do fim de tarde. Tal como um motor de combustão interna, o meu rendimento aumentara com a ligeira descida de temperatura verificada nos últimos 15 minutos de viagem.

Fazia a minha aproximação a Muxungue à mesma velocidade que o Astro-Rei preparava o seu leito para lá das montanhas do Zimbabwe.

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Já era dado como certo que chegaria ao destino no limiar da luz solar, facto que poderia dar-me por contente, tendo em conta o início nefasto da etapa e que quase me obrigou a deixar a minha roda no meio da estrada.

151Kms depois de ter saído do Inchope, que levaram-me 9h17m a serem percorridos (com 1h44m de paragens), eu dava entrada na povoação de Muxungue. Uma povoação ao longo da estrada, como tantas outras encontradas por esta viagem fora, sem qualquer tipo de ordenamento ou beleza. Apenas um punhado de estabelecimentos comerciais espalhados por algumas centenas de metros e que serviam as necessidades dos viajantes.

Procurei um lugar para ficar. As minhas pernas precisavam urgentemente de descanso e de reposição de energias.

Aconselharam-me a Pensão Tubarão. Uma pensão com um restaurante simpático, mas ainda em construção na área das habitações.

Para mim, este último pormenor pouca ou nenhuma importância tinha. Há muito que estava habituado a tomar banho a balde, ao mesmo tempo que qualquer tipo de cama servia para deitar os ossos.

Ultrapassara neste etapa, a barreira dos 7.000Kms pedalados… não era de admirar que a corrente e os carretos refilassem de exaustão.

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4 comentários:

  1. Mais um capítulo... Que bom!!
    Cumpts, maribel

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  2. Em que ano foi publicado?

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  3. Amei demais a sua trajetória, o restaurante e a casa se estava hospedado no Rio Save, é da minha querida mãe ❤️, a casa chama se Casa Figueiredo. Foi bom ouvir a história de uma das pessoas que teve a experiência de passar a noite na nossa pequena vila do Save ericamassaby19@gmail.com

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