Moçambique Fase II (Caia – Nhamapaza)

A hora a que o meu consciente despertou, não era a mesma hora do meu corpo.

Era cedo. Era a hora ideal para iniciar os preparativos da viagem, no entanto o conforto da cama não deixava o corpo desprender-se dos lençóis. Acabaria por ser obrigado a conceder-lhe mais uma hora de repouso, para que juntos pudéssemos dar início a mais uma sessão de preparativos.

Tomei o final do meu pacote de Cerelac com duas fatias de um suculento e doce ananás. Era quase certo que ao longo do trajecto para Sul, teria a oportunidade de comprar bananas para aconchegar o estômago, por isso a preocupação em ingerir um farto pequeno-almoço era apenas residual.

Às 9h20 estava pronto para enfrentar a etapa do dia.

Assim que toquei na bicicleta para retira-la do quarto onde permanecera nos últimos dias, ouço um inconfundível psssssssssss… oriundo do pneu traseiro.

Um furo espontâneo em pleno quarto! Enquanto via o pneu a esvaziar-se em menos de 5 segundos, sentia a minha motivação e ânimo matinal, a evaporar-se por todos os poros da minha pele. A minha paciência relativamente a furos na roda traseira, estava abaixo do nível mínimo. E o facto de o pneu esvaziar-se 1 minuto antes do início da etapa, quando tivera um par de dias parado para fazer das suas, em nada contribuía para a minha sanidade mental.

Após umas golfadas de oxigénio para baixar a pulsação, comecei a procurar as ferramentas para desmontar o pneu. Desmontei a roda e pouco depois verifiquei que um dos remendos havia cedido e o ar escapava-se por um cantinho. Defeito da cola ou do remendo? Ou quem sabe até defeito do próprio artesão que reparara a câmara-de-ar, mas certo, eram os 30 minutos perdidos em toda a operação.

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Eram as 10h00 quando iniciei (com 1 hora de atraso em relação ao previsto) a etapa até Nhamapaza, uma pequena povoação a pouco mais de 100Kms de Caia. Contava com 6 horas para percorrer a distância proposta, incluindo as paragens para comer e esticar as pernas.

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Havia iniciado a pedalada há poucos minutos, quando ouço uma buzina meio esganiçada à minha frente. Parecia uma buzina de carro quando este tem falta a bateria, em que o som vai baixando de intensidade, passando de tons graves para tons agudo. Levantei um pouco os olhos, por cima dos meus óculos e avistei um ciclista local com uma carga em cima da bicicleta. A princípio não dei importância ao que vi, mas como logo de seguida a buzina voltou a disparar na sua máxima força (para ir diminuindo de intensidade progressivamente), voltei a prestar atenção ao ciclista que seguia pacificamente na minha dianteira a algumas dezenas de metros de distância. Com o meu aproximar, pude distinguir várias formas em cima da bicicleta. Para além da cabra que viajava no banco de trás e das 4 galinhas penduradas no guiador, de cabeça para baixo (duas de cada lado), ainda havia um cabrito (ou bode) que seguia sentado no varão da bicicleta com uma perna de cada lado. Estava explicada a origem da corneta que se fazia ouvir a média distância.

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Cerca de 15 minutos e 4Kms depois de ter deixado o estaleiro do Caia, eis que sinto o aro da bicicleta a bater no chão. Mais um furo no pneu traseiro! Estava a começar bem o dia…

Parei na entrada de um café, ainda nas imediações dos acessos a Caia.

Desmontei o pneu num ápice, enquanto encomendava uma sandes de ovo para acalmar o meu estômago, que já assimilara tudo o que havia ingerido minutos antes.

Não foi necessário passar a língua humedecida ao longo da câmara-de-ar para descobrir a localização do furo.

 

Bem junto de um dos remendos já existentes, havia um corte com cerca de 2cm de comprimento e que culminava com a saúde da minha câmara-de-ar.

Apliquei a única câmara-de-ar suplente que possuía comigo, assimilei a sandes de ovo enquanto montava o pneu e preparei-me para retomar a etapa.

Entretanto, quando eu já estava em modo de despedidas, um dos pequenos curiosos que acompanhara a reparação da minha roda, apareceu com a sua bicicleta na minha frente. Queria que eu reparasse o seu meio de transporte, pois quando ele pedalava, a bicicleta não saía do sítio. Dois segundos bastaram para ver que a sua pequena bicicleta tinha a corrente fora do lugar, razão pela qual o movimento rotativo da pedaleira não era transmitido à roda traseira do seu velocípede.

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Problema resolvido, decidi aproveitar e analisar as surpresas que a minha bicicleta tinha reservado para mim. À parte do habitual molho de raios que insistiam em desapertar-se sozinhos, tinha também a brecha do aro traseiro em constante crescimento. Já faltavam menos de cinco dedos da minha mão, para a fenda perfazer ¼ de círculo na pista de travões do aro traseiro. Restava-me saber se este aro aguentaria até Maputo, ou se eu iria viver outro calvário, como o sofrido num passado demasiado recente.

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42 Minutos depois de ter sentido o pneu vazio, estava pronto para retomar a etapa, o que significava que teria que acelerar bem o meu ritmo para que pudesse chegar ao meu destino, apesar de não saber muito bem onde este se encontrava.

Após os primeiros minutos sem percalços, parecia que tudo se havia endireitado. O dia estava bonito, o céu estava limpo e a bicicleta continuava a aguentar-se. Mantinha-me concentrado na recuperação de tempo para não chegar a Nhamapaza depois de escurecer.

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Entretanto fazia também alguns cálculos para as etapas até ao Parque Nacional da Gorongosa. Se tudo corresse bem, seria possível chegar à vila da Gorongosa na etapa seguinte e chegar à entrada da Reserva no segundo dia.

Entretido nos meus cálculos e nos meus cenários virtuais, apreciava com bom grado o eficaz desempenho das minhas pernas. A estrada estava em bom estado e sem grandes desníveis. O vento mantinha-se de fraca intensidade, soprando ligeiramente de traseira. A paisagem, igual a tantas outras, não influenciava significativamente a minha moral. Tudo parecia estar correr bem, após um início de etapa menos motivante.

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No entanto tudo que é bom acaba depressa e o meu andamento teria que acabar, mais cedo ou mais tarde, nem que fosse com mais um presente da minha roda traseira. Novo furo, desta vez na minha câmara-de-ar novinha em folha.

Apeteceu-me saltar da bicicleta e arrancar o pneu à dentada, para posteriormente colocar a roda no meio da estrada à espera que um camião acabasse de vez com a sina da mesma.

Era o terceiro furo em menos de 2 horas!

Levei alguns minutos até conseguir colocar a minha pulsação em valores normais, para que pudesse efectuar a reparação do furo com a serenidade necessária.

Desmontei o pneu e realizei uma primeira análise à câmara-de-ar para identificar o furo. Repeti a inspecção de 360º ao longo da periferia da câmara-de-ar, sem encontrar a causa do problema. Segundos depois, comecei a sentir suores frios a percorrerem-me o cérebro, para logo de seguida sentir o terror a ferver-me as minhas veias. Instintivamente, passou diante dos meus olhos um “déjà vu” desta situação e que ultimava sempre num aro estalado ao meio. A fobia dos cortes no interior das câmaras continuava bem encrostada na minha mente, e neste momento restava-me apenas inspeccionar o interior da minha câmara-de-ar nova… o mesmo interior que tantas vezes reparei por ter um aro rachado.

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Não foi necessária grande perda de tempo para identificar um pequeno corte no lado interior da câmara-de-ar. Restava-me saber se o aro estava ou não estalado.

Dediquei-me ao reparo da câmara-de-ar antes de inspeccionar o aro da roda. Simultaneamente resmungava entre dentes algo que nem eu próprio conseguia decifrar, mas que teria tudo a ver com a sina da minha roda traseira. Se não era um aro aberto ao meio, eram os raios partidos. Por seu lado, se não eram raios partidos, eram raios desapertados. Se não eram dos raios, era um pneu furado… e se não acontecia nem uma coisa nem outra, então partia-se o segundo aro! Restava agora o quê? Começava a pôr em causa a robustez de toda a bicicleta e se esta alguma vez chegaria a Maputo.

Furo reparado, inspeccionei cuidadosamente o aro à procura da razão do corte na câmara, ao mesmo tempo que era devorado por todo o tipo de moscas, principalmente no calcanhar onde tinha a carne à mostra.

À parte da longa rachadela que tinha na lateral do aro, não havia mais nenhuma anomalia com o mesmo. Algo que me deixava um pouco intrigado sobre o objecto que havia infringido o pequeno golpe na câmara-de-ar. Como precaução, forrei a câmara com uma tira de borracha para a proteger, fosse lá do que fosse.

Preparei-me para encher o pneu e logo após as primeiras bombadas reparei que a bomba enchia o pneu quando eu empurrava o êmbolo para a frente, mas sugava o ar do pneu quando puxava o êmbolo para trás. Uma vez o pneu reparado, agora o problema era com a bomba de ar.

Sacudi as moscas das minhas orelhas e da ferida no calcanhar. No curto mas controlado ataque de fúria misturado com pitadas de desespero, desmontei a bomba peça por peça e soprei todos os pequenos orifícios que encontrei. Voltei a montar a bomba e… Resultou!

Soltei algumas palavras de exclamação bem típicas destas situações, enquanto enchia o pneu de ar e enxotava as devoradoras de carne que cobriam-me a ferida.

Regressei à estrada, confiante que ainda seria possível chegar a Nhamapaza antes das 17h45, altura que seria noite escura.

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A boa prestação das minhas pernas mantinha-se e a leve aragem que viajava no mesmo sentido, contribuía para que eu conseguisse manter uma saudável média de 22Kms/h.

Durante toda a etapa, a paisagem mantinha-se igual. Mato constante com capim seco a meia altura e muitas árvores de média estatura. Subitamente e sem saber muito bem porquê, resolvi olhar para os suportes das garrafas que estavam fixos na suspensão da bicicleta. Imediatamente reparei que faltava ali qualquer coisa, ou seja um dos pequenos (mas valiosos) depósitos de água. Era a quarta garrafa que perdia na minha viagem… todas elas em Moçambique. Estava agora confinado às duas garrafas fixas no quadro da bicicleta e ao Camelbak, o que podia-se traduzir em uma capacidade de “stockagem” de 3,5 litros.

Não tive muito tempo para me preocupar com a perda das garrafas, pois voltava a sentir o pneu traseiro completamente vazio. O quarto furo da etapa!

Antes de arrancar a roda ao pontapé, fiz uma inspecção ao pneu na expectativa de encontrar algo que justificasse a perda de ar… um espinho ou um prego, era o tipo de objecto que eu desejava encontrar espetado na borracha do pneu. Não queria nem pensar na hipótese que voltaria a viver as situações dos cortes misteriosos, ou do aro aberto em duas metades.

Depois de girar a roda várias vezes à procura daquilo que não existia, acabei por desmontar o pneu, mantendo o eminente ataque de fúria sob um difícil controlo. Mais uma vez, deparei-me com um corte no lado interior da câmara-de-ar.

Nova inspecção ao aro, para ver se havia alguma limalha perdida que andasse a cortar a câmara-de-ar, mas nada! Não encontrava qualquer razão para os 2 cortes sofridos em menos de 1h30. Não me restava mais nada a não ser reparar o furo, montar a roda e voltar a pedalar até ao próximo furo.

A história do aro e dos furos, fizera-me esquecer do vazio que o meu estômago vinha a acusar há já algum tempo. Eram as 15h00 quando iniciei o assalto às bolachas de coco, como forma de proporcionar algum aconchego ao bucho e fornecer de energia as minhas pernas.

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Contudo, a reposição de calorias vinha tardiamente porque minutos depois, as minhas pernas iniciavam um sério processo descendente no que respeita à sua performance e vitalidade.

A velocidade média arriava lentamente à medida que o movimento alternativo dos meus joelhos começava a ser cada vez mais doloroso, fazendo com que Nhamapaza parecesse cada vez mais longe.

Faltavam cerca de 30Kms até ao final da etapa, o que poderia traduzir-se em pouco mais de 90 minutos de massacre físico.

Para tentar aliviar o estado de fadiga, alternava constantemente de posição. Ora pedalava sentado, ora pedalava de pé, na expectação de aliviar uns músculos e utilizar outros mais folgados.

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O massacre das pernas, depressa subiu à cabeça e voltou a assentar-se ao nível dos joelhos. Com as dores musculares, vieram as dores de cabeça originadas pela falta energia, e tudo isto devido uns cortes na minha câmara-de-ar, que havia consumido a minha capacidade para pensar que era obrigatório alimentar-me durante a etapa.

Com o deitar do Astro-rei, chegou a frescura da noite, o que de alguma forma contribuiu para uma ligeira melhoria do meu andamento… ou talvez não… talvez eu tivesse ultrapassado o estado de sofrimento e encontrasse-me agora num estado de dormência, onde já não sentia nada.

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Cheguei a Nhamapaza às 17h23, pouco antes da escuridão completa. Uma pequena povoação sem electricidade e sem água canalizada, com várias palhotas de ambos os lados da estrada N1 e uma ou outra casa de cimento. Percorri a aldeia até ao outro extremo, onde encontrei algo que me chamou a atenção.

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Dirigi-me em piloto automático para o único local parecido com uma hospedaria. Com alguma sorte e boa vontade de alguém, consegui um quarto vago onde poderia repousar e recuperar as energias para o dia seguinte.

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A alguns metros de distância estava um pequeno e simples jango iluminado por uma pequena lâmpada alimentada a bateria, onde poderia comer qualquer coisa, mas não antes de um banho a balde tomado num palheiro situado ao fundo do recinto.

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Depois de repostos os índices energéticos do meu metabolismo no Complexo da D. Telma (com 2 bocados de nsima e uns vestígios de cabrito), estava na hora de me colocar na horizontal e esperar melhor sorte para a etapa seguinte.

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De Caia a Nhamapaza, percorrera 114Kms em 7h28m, dos quais 1h54m haviam sido dedicados à bicicleta. Apesar de todos os percalços, conseguira manter uma média de 20,5Kms/h o que poderia considerar bastante bom tendo em conta o estado lastimoso com que as minhas pernas chegaram ao destino.

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