Após uma noite bem dormida num colchão ao nível do solo, iniciei pela enésima vez o ritual de compactação dos meus haveres, nos alforges da bicicleta e de preparação para mais uma etapa.
Durante a preparação do meu pequeno-almoço composto por esparguete instantâneo, dediquei algum tempo na obtenção de informações acerca de qual o meu próximo destino.
Pelo que conseguira apurar junto das gentes locais, a vila de Caia ficava a uns 170Kms de distância, o que seria praticamente inatingível em uma só etapa. Assumi então que o meu destino seria a povoação de Zero, uma aldeia algures na estrada principal, situada no cruzamento com a estrada que seguiria para Morrumbala (e consequentemente para a Vila de Sena).
Ninguém sabia explicar-me ao certo quantos quilómetros seriam até Zero, mas uma coisa era cerca. Seriam entre 100Kms a 130Kms.
Em uma outra questão, toda a gente era unânime. Zero era apenas um cruzamento com barracas improvisadas pelos comerciantes locais, para escoar os seus produtos aos muitos motoristas de longo curso que ali paravam.
Antes de partir de Nicoadala, empreguei algum do meu tempo na aquisição de víveres para a viagem (leia-se bananas) e assim poder enfrentar os quilómetros que teria pela frente.
O céu continuava encoberto, deixando no ar algumas dúvidas sobre a aparição de alguma chuva e consequentemente sobre o uso prematuro do impermeável. No entanto decidi avançar vestido “à civil”, deixando a vestimenta da chuva num lugar bem acessível.
Logo depois dos primeiros quilómetros percorridos, concluía (uma vez mais) que os dias de descanso haviam feito dano ao meu corpo… ou então não tinham sido suficientes. Contudo preferia pensar que a primeira hipótese era a mais indicada para explicar o fenómeno que se passava ao nível das minhas pernas e do meu cóccix.
Continuava a sentir as pernas pesadas, doridas e birrentas, ao ponto de parecer que tinha uma âncora amarra na bicicleta, impossibilitando-me de fluir pela estrada de alcatrão com a performance desejada.
Estava apenas com 7Kms girados, quando senti o pneu traseiro vazio. Imediatamente o pânico tomou conta das minhas veias, ainda resultado dos inúmeros furos que havia tido durante o recente drama com o aro traseiro.
No entanto, em menos de um segundo, consegui controlar a tensão arterial ao colocar na minha cabeça que o aro partido pertencia ao passado e que agora rolava com um aro em perfeitas condições.
De facto viria a verificar, para minha grande alegria, que se tratava de um normalíssimo furo.
Após a reparação da câmara-de-ar consumada e do pneu colocado no aro, aproveitei para fazer uma inspecção cuidada ao estado dos raios. Aparentemente respiravam todos eles de boa saúde, sem demonstrarem sintomas de desapertos ou de ruptura.
Estes momentos de pseudo stress, cooperavam fortemente para que a acidez do meu estômago corroesse todo o esparguete que eu havia ingerido ao pequeno-almoço, levando-me a recorrer precocemente das bananas e das bolachas de coco, de modo a fornecer alguma energia ao meu metabolismo.
O dia continuava escuro, com nuvens em plena carga que ameaçavam descarregar a qualquer momento. Atrás de mim, na direcção de Nicoadala, o cenário era ainda mais negro fazendo-me suspeitar que caía uma forte trompa de água para esses lados.
Continuava a pedalar e a forçar o meu ritmo, na esperança que esses tanques de água voadores não resolvessem rumar para Sul.
Contava com 2h30m em cima da bicicleta, quando deparo com uma inscrição informativa, junto a uma árvore do meu lado direito.
Esta era constituída por 5 tábuas dispostas na horizontal, protegidas por uma cobertura em telha e onde podia-se ler a seguinte inscrição, pintada em cada uma das tábuas:
Nome Cient.-Khya Nyasica
Nome Local – Umbaua – Moogano
Idade +- 250 Anos
Altura – 42m/24cm
Diâmetro de Base – 2,83 metros
Olhei de alto a baixo para a árvore, que posava alguns metros ao lado da inscrição. Junto ao solo, uma pequena vedação de madeira e uns arbustos bem arranjados, demarcavam a área reservada à Umbaua – Moogano.
Lá no alto… vários ramos… tal como as outras árvores.
E no apogeu da minha ignorância, concluí que estava diante de uma árvore igual às outras… mas um bocadinho mais velhinha.
Despedi-me da Umbaua – Moogano, agradecendo-lhe os minutos de descanso que me proporcionara e retomei a etapa.
Aos poucos, fui aumentando o ritmo das pedaladas, uma vez que gozava de algum alívio muscular.
No entanto, o meu corpo cedo acusou o aumento de esforço, fazendo parecer que pedalava agora com 2 âncoras a arrastar pelo alcatrão fora. As pernas não correspondiam da melhor maneira ao compasso solicitado, parecendo que uma delas teria que pedir licença à outra perna para girar os 180o que lhe era exigido… e assim sucessivamente.
A tormenta de não ver os quilómetros (nem o tempo) a passar, abrasava-me o cérebro. Parecia que pedalava em câmara lenta, onde era possível observar com detalhe todos os galhos da vegetação envolvente, ver ao pormenor o granulado do alcatrão, examinar as expressões de quem se cruzava comigo… tudo em menos de 2 batimento cardíacos.
Nem mesmo as músicas do meu iPod traziam alguma distracção à anémica etapa do dia. Noutros tempos, estas serviam ou para aumentar os níveis de adrenalina do meu corpo ou para transportar a minha mente para qualquer outro lugar. Agora, já sabia os álbuns e a ordem das músicas de trás para a frente e até mesmo com o modo “shuffle” activado, eu conseguia adivinhar qual era a música seguinte.
Paradoxalmente, a velocidade média continuava com valores bastante aceitáveis e a rondar os 20Kms/h.
Nos recantos da minha consciência entrava duas possíveis justificações para o cansaço incompreensível. Uma de origem física e outra de origem psicológica.
A primeira explicação (a de origem física), seria o desgaste negligente da segunda pedaleira da frente (a do meio), o que obrigava-me a percorrer as etapas em tripla.
Consequentemente o esforço físico exigido às minhas pernas era superior ao normal, fazendo com que estas chegassem a um estado de fadiga prematuramente.
A segunda explicação era de cariz psicológico. Não havia em mim, grande disposição para longas pedaladas, ainda mais quando não sabia ao certo qual o destino da etapa. O dia, enfadonho, não contribuía da melhor forma para o rejuvenescimento da minha força anímica, ainda mais sabendo que estaria condenado a passar o dia completo em cima da bicicleta sem intervalos para descansar ou distrair-me.
Muito possivelmente, seria tudo fruto de um outro aspecto - A aproximação a Maputo e ao final da viagem.
Não me saía da cabeça que estava agora a pedalar na recta final da minha viagem de bicicleta em África. Maputo era já ali… a distância que teria que percorrer até entrar na Capital Moçambicana, cabia em duas páginas do meu mapa desdobrável.
Tinha a sensação que pedalava dentro do jardim da casa antes de chegar ao portão da garagem. Parecia que tudo era conhecido para os meus olhos, mesmo sabendo que era a primeira vez que eu passava nestas estradas.
De certo modo, tal aproximação a Maputo impedia que a excitação de outrora, fluísse nas minhas veias, mesmo sabendo que ainda teria que pedalar cerca de 2.000Kms até à meta final.
A paisagem mudava gradualmente, à medida que me dirigia para Sul. Era possível ver algumas áreas bastante verdejantes, povoadas com bananeiras e outras árvores de baixa estatura, fazendo lembrar as florestas tropicais.
Os rios que eu cruzava, encontravam-se praticamente secos, fazendo-me recordar que estávamos em plena época seca, apesar das pesadas nuvens que pairavam no céu e dos aguaceiros que iam caindo ao longo do dia.
Tentava por vezes concentrar-me no trajecto a seguir após a paragem em Zero. A dúvida entre seguir directo para Caia ou subir para Morrumbala e visitar Vila de Sena, persistia.
Várias pessoas haviam-me informado que Morrumbala era uma cidadezinha muito interessante para visitar. A alguns quilómetros de Morrumbala, poderia ver as piscinas naturais de água quente, que eram consideradas como um atractivo local. No seguimento da mesma estrada chegaria à ponte D. Ana e à Vila de Sena, outros dois locais que me despertavam curiosidade em conhecer (trajecto a vermelho).
No entanto e depois de desgastar o meu juízo com tamanha indecisão, acabei por deixar estas ponderações para o turno nocturno, onde teria certamente o estômago forrado com um belo jantar e as células cerebrais em melhores condições de funcionamento.
Neste momento, o meu estômago quase vazio não me deixava concentrar em nada que exercesse o mínimo de esforço mental.
O stock de bananas e de bolachas de coco, baixava a olhos vistos. Ao longo da estrada não havia qualquer sinal de estabelecimentos onde pudesse saciar a minha fome ou a minha sede. Aqui e ali, uma ou outra palhota na qual era possível comprar mandioca ou tomates. Mas um estabelecimento minimamente preparado para servir (pelo menos) bebidas frescas, era algo que só existia no meu imaginário.
As linhas eléctricas que transportavam a energia proveniente de Cahora Bassa, passavam a algumas dezenas de metros da estrada principal. Contudo as aldeias ao longo da estrada continuavam a “contentar-se” com fogueiras, painéis solares e baterias usadas.
Numa paragem ocasional para esticar os músculos das pernas e usufruir de uns minutos de descanso, decidi inspeccionar os raios da roda traseira. Não foram necessários mais que dois segundos para descobrir um raio partido.
Continuava a saga da roda traseira! Mais uma vez senti os olhos a raiar e os joelhos a fraquejar de nervos, ao ponto que cheguei a pensar em acabar com a saúde dos restantes raios e assim terminar de vez com a palhaçada.
Alguns segundos mais tarde, e já com a tensão arterial em valores padronizados, resolvi analisar os restantes raios para inteirar-me da sua condição física.
Surpreendentemente, o raio problemático era filho único. Todos os outros raios estavam bem apertados, apresentando uma ligeira folga tal como vem nos manuais.
A roda mantinha-se alinhada e centrada, o que permitia-me continuar a etapa sem ter que recorrer a qualquer tipo de intervenção.
Começa a aproximar-me de Zero. Os quase 40Kms restantes da etapa, sentenciavam-me mais de 2 horas no pedal. Comigo seguia um estômago de paredes coladas por efeito de “vácuo”. Atrás de mim, o alcatrão rasgado pelas duas âncoras que a minha bicicleta puxava desde as primeiras pedaladas do dia. À minha frente e bem por cima da minha cabeça, um manto espesso de cor cinzenta preparava-se para largar a sua tonalidade em cima dos campos, das casas, dos rios e também em cima de quem estivesse no caminho.
Meia hora mais tarde e já a 30Kms de Zero, as minhas pernas resolveram baixar de rendimento. Pelas médias actuais, continuavam as faltar 2 horas até que eu conseguisse chegar ao final da etapa. Algo que não era nada motivador para a minha moral.
Sem a força psicológica nos níveis necessários, consequentemente as pernas também não melhoravam a sua performance e assim sucessivamente – teoria da “pescada de rabo na boca”.
Com alguma persistência física e abstracção mental, consegui melhorar os índices de adrenalina no corpo e consequentemente evitar que ritmo baixasse demasiado.
1h16m mais tarde, dei entrada em Zero!
Tal como haviam-me advertido, Zero não tinha nada… nem mesmo rede eléctrica. O único sinal de progresso existente em Zero era uma antena de telecomunicações, situada junto ao cruzamento com a estrada de Morrumbala.
No “centro” de Zero, várias dezenas de pessoas concentravam-se em redor de uma árvore. Era o mercado!
Nas várias bancas dispostas em círculo, vendiam-se os produtos da terra e também do rio. Banana, tomates, alface, batata, mandioca e peixe seco era o que mais abundava naquele local, onde alguns viajantes aproveitavam para abastecerem-se antes de prosseguirem viagem para os seus destinos.
Junto de alguns locais, procurei por um lugar para ficar ou para montar a tenda. Depressa cheguei à conclusão que não havia muito por onde escolher. Um dos vendedores ofereceu-me uma arrecadação para ficar, mas acabei por (amigavelmente) recusar após visitar o lugar.
Passou-me pela cabeça avançar para a próxima povoação, no entanto as minhas pernas recusaram a proposta. Restava-me o único bar de Zero, onde perguntei se podia pernoitar dentro das instalações.
O responsável pelo bar não gostou muito da ideia, mas depois da minha insistência acabou por telefonar para o dono do estabelecimento, que autorizou a minha estadia dentro do edifício.
Tinha ainda uma hora de luz solar, a qual foi aproveitada para dar uma volta pelo cruzamento e estudar as condições da estrada para Morrumbala.
No mesmo bar onde iria pernoitar (que também tinha o título de restaurante), fiz a reserva do meu jantar. No entanto o “restaurante” não tinha comida para servir aos cliente, pelo qual o empregado foi obrigado a correr para o mercado a fim de comprar uma galinha para o meu manjar.
Eram as 18h30 quando chamaram-me para jantar. Em cima da mesa estava comida suficiente para 4 pessoas, contudo o desafio não me causava qualquer tipo de receio. Os meus índices de confiança garantiam-me que conseguiria terminar a tarefa sem recorrer a terceiros.
Sob a única luz do estabelecimento (alimentada por uma bateria de camião), estudei as hipóteses para a etapa seguinte. Continuava na dúvida sobre o trajecto a seguir, mas desta vez estava ligeiramente inclinado para cursar directamente para Caia, deixando de lado a hipótese de visitar Morrumbala e Sena.
Perto das 20h30, a lâmpada do bar começou a enfraquecer a intensidade luminosa. O guarda do estabelecimento, preparava o seu colchão na parte de trás do balcão… Estava na altura de eu recolher à minha tenda (montada entre as mesas do bar) e preparar o meu itinerário à luz da minha pequena lanterna.
Incrivelmente, esta era apenas a 3ª vez em toda a viagem, que eu era obrigado a dormir vestido com a roupa da etapa e sem passar o corpo por água.
De Nicoadala a Zero percorri 125Kms em 7h14m, onde 39 minutos foram dedicados a outras actividades, que não o pedalar.
mas tu levabas um pijama oficial na tua mala de bicicleta? vaya lujo! ; )
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