Acordei cedo, ainda antes de o Sol soltar o seu primeiro raio de luz solar.
Encontrava-me coberto de bichos-carpinteiros pelo corpo todo, não pela ansiedade de percorrer a última etapa da minha viagem, mas sim pelo motivo completamente oposto.
Por minha vontade própria, queria dormir mais algum tempo. Mas nem o corpo nem a mente conseguiam voltar a acomodar-se à cama onde eu repousava.
Talvez pelo nervosismo da situação em que me encontrava, ou simplesmente por causa do ruído da electro-bomba que se ouvia constantemente da parte de trás do meu quarto, nunca mais fui capaz de fechar os olhos.
Fosse como fosse eu tinha que me levantar, pois havia alguém que teria de pedalar os últimos 80Kms que faltavam até Maputo… e esse “alguém” era eu.
Iniciei o ritual pela n-ésima e última vez, de arrumar tudo nos alforges da bicicleta. Sabia de cor e salteado a posição de cada coisa, podendo mesmo preparar as malas de olhos fechados.
Sabia que a caixinha dos recarregadores e cabos eléctricos cabia na vertical, junto à máquina fotográfica, que por sua vez seguia protegida pelo saquinho com a roupa interior.
Os mapas e os cadernos, seguiam na bolsa da frente debaixo do pacote das bolachas de chocolate. O material de uso rápido (ou de uso corrente) seguia instalado dentro de um saco cor-de-laranja amarrado atrás, juntamente com a tenda e o colchão.
Após a bagagem acondicionada na bicicleta, estava na hora de tratar de mim mesmo.
Iniciei pela última vez o ritual de me preparar para uma etapa.
Coloquei o creme em redor das virilhas e também nos mamilos, lugares onde existia maior fricção com as vestimentas.
Pela última vez, coloquei a banda do cardio-frequêncimetro à volta do meu tronco, para de seguida, com toda a calma do mundo, puxar as alças dos calções para cima. Vesti a camisola por cima das alças e apetrechei os seus bolsos com aquilo que sempre coloquei neles.
No bolso direito seguia o telemóvel, no bolso do meio seguiam alguns trocos entre notas e moedas e no bolso esquerdo não seguia nada.
Fora assim que saíra de Luanda e era assim que chegaria a Maputo.
Apertava o fecho da camisola lentamente e com cuidado tal, como alguém que arranjava o seu facto antes de sair de casa para ir a um casamento.
Lentamente, coloquei o iPod no meu braço esquerdo e os auscultadores nos ouvidos. Depois seguiam-se os óculos e por último o capacete.
Depois de um longo inspirar juntei a fivela esquerda do capacete com a fivela direita, de modo a que estas prendessem as hastes dos óculos e simultaneamente os cabos dos auscultadores.
Enfiei paulatinamente as luvas já gastas, nos meus dedos e… pouco depois estava pronto para partir.
Duas golfadas de ar antes de abrir a porta do quarto e… aí vai ele…
Estava fresco e o vento soprava forte. Não me importei com isso. Aliás, por mim até podia estar a chover, pois assim tinha pretexto para ficar mais um dia.
Dirigi-me à recepção. Paguei o quarto e despedi-me…
O meu pequeno-almoço seria tomado no restaurante Laurentino, onde eu tinha um encontro marcado com uma equipa da RTP África.
À chegada ao restaurante, encontrei a equipa da RTP África à minha espera. Estivemos uns minutos à conversa enquanto eu ia comendo de forma civilizada, o meu prego no pão com salada de fruta, galão e torradas.
Pouco depois estava pronto para a entrevista, que não durou mais de alguns minutos, pois o restante da “reportagem” estava planeado para acontecer em plena “acção”, ou seja a pedalar.
Iniciei a última etapa às 8h30.
Até ao destino tinha pouco mais de 80Kms pela frente, excluindo as voltas que daria pela cidade antes de dar por concluída a minha “odisseia ciclística”.
Logo à saída de Manhiça, deparo-me com o irritante “placard” que recordava-me perpetuamente a distância exacta até ao final de “tudo”. Contudo, ultimamente havia aprendido a ignora-lo e a seguir viagem sem matar células cerebrais a pensar no assunto.
A temperatura ambiente ia subindo de forma notória. O vento, apesar de forte não estava a afectar em nada a minha progressão.
Era notório que o Inverno encontrava-se no final da sua permanência nestas paragens e que o Verão estava para chegar. Eu começava a sentir novamente o Sol a queimar a minha pele, algo que não sentia desde os primeiros dias na Zâmbia, há mais de 3 meses atrás.
Seguia por uma estrada em bom estado e com bermas largas. No entanto ainda havia alguns motoristas que achavam que deviam passar tangentes aos alforges da minha bicicleta, numa atitude de mostrar a sua audácia ao volante, julgando-se os senhores da estrada apenas por seguirem sentados num veículo maior que o meu.
À medida que me aproximava de Maputo, aumentava o número de estabelecimentos comerciais, cafés, restaurantes, veículos, pessoas etc, etc, etc …
Em sintonia com a maior proximidade a Maputo, os carretos da bicicleta aumentavam os seus sinais de (acelerado) desgaste. Era rara a pedalada em que a corrente não saltasse das rodas dentadas, fazendo com que o meu esforço fosse totalmente em vão.
Em tripla era praticamente impossível de manter um ritmo constante. Apenas conseguia fazer alguma coisa com a mudança tripla, quando a estrada descia ligeiramente. De resto era para esquecer.
Voltei a recorrer ao 2º prato (mudança do meio) por algumas ocasiões, pois parecia-me que conseguia permanecer por mais tempo engrenado com a corrente, quando comparado com o 3º prato. Contudo era uma tentativa sem grande sucesso.
A única roda dentada que conseguia aguentar o esforço, era a 1ª roda. Esta, ainda tinha dentes e conseguia usar todos os carretos da roda de trás. Todavia, para que conseguisse progredir na etapa a velocidades decentes, eu era obrigado a engatar a 9º velocidade nos carretos traseiros.
Esta solução fazia com que a corrente saísse do seu intervalo permissível de trabalho, para passar a desempenhar a sua função completamente na diagonal.
O elevado desgaste que a corrente apresentava (e todas as suas folgas mecânicas) permitiam que esta seguisse integralmente obliqua às superfícies dos carretos.
Cada vez mais me convencia que se a viagem tivesse mais uma só etapa, a bicicleta certamente não chegaria ao final sem levar um conjunto completo de “transmissão”.
Mas neste momento, a bicicleta teria forçosamente que aguentar mais umas vintenas de quilómetros, até que eu chegasse a Maputo.
Era enervante pedalar com relações tão curtas, pois a pedalada ficava demasiado solta, fazendo com que o meu corpo seguisse aos saltinhos em cima do selim da bicicleta.
Para conseguir manter-me mais tempo sentado no selim, deixava abrandar a bicicleta até velocidades mais baixas. Depois voltava a pedalar lentamente até que os pedais ficassem soltos outra vez… para de seguida deixar de pedalar, de modo que a bicicleta perdesse velocidade mais uma vez… e assim sucessivamente.
Estaria condenado a seguir assim aos soluços por mais 3 horas até chegar a Maputo.
Já passavam das 10h00, quando algo inédito aconteceu.
De repente a bicicleta começou a ganhar velocidade sozinha.
A princípio pensei que estaria a descer ligeiramente e por algum tipo de ilusão óptica eu não era capaz de detectar o declive. Consultei o GPS… este dizia-me que, contrariamente ao que eu pensava… eu estava a subir ligeiramente.
Olhei para trás, por cima do meu ombro, com o objectivo de verificar se alguma coisa estaria a empurrar me, sem que eu desse conta disso.
Mantinha-me acima dos 20Kms/h sem que no entanto tivesse que dar aos pedais.
Até que por fim percebo que estava a ser empurrado pelo vento.
Fiquei estupefacto!
Eu pedalara mais de 8.100Kms em 167 dias. Todos eles a levar com vento bem de frente nas bentas. E logo agora que eu não tinha pressa nenhuma de chegar é que o Sr. Vento, resolvia dar um “empurrãozinho”.
Continuei a minha pedalada rumo a Maputo.
O iPod debitava música gasta que em nada alterava o meu estado de espírito nem o meu andamento. Por vezes dava por mim a tentar lembrar-me qual a última música que este resolvera partilhar com os meus ouvidos, mas sem grande sucesso.
Era como se o iPod fosse desligado, pois eu não ouvia nem distingui os sons por ele emanados, tal era o meu estado de hipnopatia.
Dava por mim a ordenar ideias dentro da minha cabeça.
Sem entender muito bem porquê, estas começavam de trás para a frente.
Em primeiro lugar tinha a batalha ganha contra os pensamentos nostálgicos. Conseguia aceitar que a Viagem de Bicicleta entre Luanda e Maputo haveria de acabar um dia… e esse dia chegara (hoje) ao meu calendário… e com o objectivo (bem) alcançado.
Em segundo lugar, deixava de me martirizar por aquilo que gostaria de ter “vivido” e que não “vivi”… para passar a dar graças pelo que não havia previsto e acabara por viver.
Afinal de contas, era uma simples questão de inverter as polaridades aos meus pontos de vista, para que o meu cérebro assimilasse a realidade de um modo mais positivista.
Depois de arrumadas as ideias sobre a realidade actual, a minha mente evadia-se rapidamente por todas as etapas percorridas, mas na direcção oposta à da viagem… até que por último chegou a Luanda e aos dias que antecederam a partida.
Por fim, vinham os preparativos precedentes à chegada a Angola.
Recordava os momentos antes de “Tudo”.
Os meses passados a magicar uma viagem, fosse ela qual fosse…
As dúvidas, os receios, as incógnitas e os medos, que a minha completa falta de experiência originavam perante o desafio que estada disposto a viver, faziam-me vacilar (ligeiramente) quanto ao embarque neste tipo de aventura.
Nunca havia feito qualquer tipo de viagem tipo “itinerante”. Nem de bicicleta, nem de comboio, nem a pé.
Não fazia a mínima ideia do que iria fazer, quando o primeiro dia de viagem chegasse ao fim, e eu tivesse que cozinhar e acampar no mato… sozinho.
Comida, água, banhos, dormida, fronteiras, percursos, onde passar, vida selvagem, conflitos armados, isolamento, doenças etc… tudo fazia parte do meu saco de dúvidas iniciais.
Depois veio um sábio conselho da Joana Oliveira “… começar, é metade do caminho percorrido…”. A partir daí foi um agarrar firme do valioso dito e lançar-me á primeira metade do caminho… O Começo…
Recordava as 8 semanas de preparação física em Portugal, ao mesmo tempo que tentava decidir o trajecto a efectuar.
A um mês de dar inicio à Viagem, ainda não fazia a mínima ideia de “Onde para Onde” seria o percurso geral. Foi com um murro na mesa que decidi, com toda a convicção do mundo, que iria pedalar de Maputo até Luanda…
Uma semana depois alterava tudo de pernas para o ar e optava por pedalar de Luanda para Maputo.
A uma semana de viajar para Luanda, ainda não sabia quando iria viajar… e num acordar repentino, marquei numa terça-feira a viagem para a sexta-feira seguinte.
A 4 horas do check-in, almoçava tranquilamente num tasco da cidade… enquanto as minhas tralhas (e a bicicleta) aguardavam espalhadas pelo chão da casa, que eu me dedicasse a arruma-las e a prepara-las para o embarque.
A 2 horas do check-in, tocava o Alarme dentro mim e consequentemente eu entrava em “panic mode”… pois estava atrasado e ainda não sabia se as minhas “bicolatas” cabiam nas malas que havia preparado para a viagem.
No final, tudo correra bem… e no meio de muita trapalhada, correrias no aeroporto e excesso de bagagem, havia conseguido embarcar a tempo e horas no voo que me levaria ao “Começo”.
Quase 6 meses depois, encontrava-me no “Final”, capaz de me rir e gozar com a minha inexperiência inicial e preparado para novos (e mais audazes) desafios.
E com estes momentos na memória, seguia pedalando estrada fora, os últimos quilómetros de uma viagem de mais de 8.000Kms.
Às 11h00 cheguei a Marracuene, onde resolvi parar para comprar a minha habitual merenda de viajante.
Estava com a fome a cintilar dentro do estômago, e das 4 bananas que acabara de adquirir, 3 delas tiveram a sua sorte traçada no momento. A última seria ingerida um pouco mais tarde, quando a vontade de comer, voltasse a pesar dentro de mim.
Estava agora a 13Kms do centro de Maputo. Pouco mais de 30 minutos separavam-me do fim da Viagem de Bicicleta entre Luanda e Maputo e… pela primeira vez em 168 dias, sentia ansiedade por chegar ao Final.
O trânsito caótico da entrada de Maputo impedia a minha mente de retomar qualquer caminho virado para as nostalgias. Eu era obrigado a manter-me concentrado no mundo que girava à minha volta. Não só para evitar de enfiar a roda num buraco, como também para não “albarroar” nenhum dos milhares de machibombos (ou mini-bus) que circulam no mesmo espaço que eu, passando pelo cuidado de não ficar debaixo de nenhum camião, quando encontrava-me a uma dúzia de quilómetros do final da Viagem.
Entrei na cidade de Maputo, já passava das 13h00. Percorri algumas das ruas do Centro, já em simbiose com o “Terminar de um Sonho”, gingando através do trânsito citadino e em direcção ao Ponto de Encontro – O Consulado Geral de Portugal em Maputo.
Às 14h00 em ponto, e nem mais um minuto da hora combinada, cheguei ao Consulado Geral de Portugal onde fui recebido pela Dr.ª Cônsul Graça Gonçalves Pereira e pela direcção da Mota-Engil, entre outras individualidades principalmente da imprensa.
Fui aplaudido e congratulado pelos presentes. Dentro de mim, reinava a calma e a aceitação de ter terminado a viagem.
De todos os cantos choviam perguntas e houve até quem tentasse ajudar-me a descer da bicicleta.
Eu encontrava-se tão “fresco” como se estivesse a percorrer a primeira etapa da Viagem. Para surpresa de alguns, comentei que “…se pudesse voltava para trás e fazia todo o percurso em sentido contrário… ou mesmo até Portugal…”
Não me encontrava desgastado fisicamente.
Mentalmente considerava-me completamente habituado, adaptado e moldado ao estilo de vida “nómada”, capaz de vencer qualquer desafio que fosse colocado na minha frente.
Sem grandes extroversões com os demais, despedia-me interiormente do Prazer de Liberdade Plena, que os últimos cinco meses e meio haviam-me proporcionado.
Passaram-se segundos, ou talvez minutos. Estava agora na altura de descer á Terra e dar um pouco de atenção àqueles que haviam aguardado pela minha chegada em Maputo.
Desliguei-me das evasões mentais e abri as condutas que levariam os sons envolventes aos meus tímpanos.
Desembaracei o nó que tinha na garganta, para começar a soltar alguns sons. Seguidamente saíram os monossílabos, para depois largar os polissílabos.
Pouco depois, fui capaz de articular frases com várias palavras e após alguns monólogos passei a conseguir manter uma conversa ordenada.
No meio da “Apoteose”, deixei de pensar no passado para passar a concentrar-me no presente e no futuro próximo. Um futuro tão próximo que não deveria ter mais que 3 a 4 dias de distância (Exactamente o número de dias que eu tinha disponíveis no meu Visto, para permanecer em Moçambique).
Depois da calorosa recepção, fui conduzido para os meus aposentos.
Uma generosa oferta da Direcção da Mota-Engil em Moçambique, acabei alojado no Rovuma Hotel, mesmo no centro da cidade de Maputo.
Na minha agenda para os próximos dias, estavam incluídos vários jantares, uma recepção na residência da Cônsul de Portugal e como não podia deixar de ser, uma visita detalhada de toda a cidade.
Dava por concluídas as etapas de Bicicleta entre Luanda e Maputo, contudo os dias que iria permanecer na Capital Moçambicana, também fariam parte da minha Viagem e certamente ainda iriam proporcionar-me bons momentos.
Nas minhas breves contabilidades, enumerava com 168 dias de viagem nos quais percorrera um total 8.205Kms a pedalar (sempre com a mesma corrente e cremalheiras) e onde teria que adicionar 510Kms “embarcado” em canoas a motor ou em “ferry”.
Aguardava agora pelas surpresas que Maputo teria para me “oferecer” de modo a concluir a minha estadia em Moçambique em grande… e uma delas seria a gastronomia.
Apesar de querer provar todos os pratos de culinária existentes nos restaurantes locais, jazia em mim um certo receio pelas minhas “maneiras à mesa”. Teria que me mentalizar que já não me encontrava sozinho no meio de nenhures, mas sim no meio de uma sociedade.
Queria “explorar” a cidade, monumentos e museus… e no meio disto tudo, arranjar tempo para estar presente nas entrevistas marcadas com alguns jornais, rádios e canais de televisão… sem me esquecer, claro está, de resolver a legalidade da minha estadia no país.
Já no conforto do hotel, ansiava pelos próximos dias na cidade de Maputo… e pela primeira vez em 168 dias, surgiu uma pitada de vontade em voltar a casa…