Moçambique (Estadia em Montepuez)

Era dia de manutenção da bicicleta.
Queria ver se acabava de vez com os furos na roda traseira, os problemas com o desviador de corrente e se substituía o raio que estava partido.
Cedo começou a operação de lavagem e inspecção e todos os órgãos da bicicleta.
DSCF6273
Desmontei a roda traseira, removi o pneu e a câmara-de-ar. De seguida retirei a cinta de borracha que protege o aro e… encontrei a causa de tantos furos e cortes na câmara-de-ar.
Tinha o aro literalmente aberto em duas partes. Uma racha longitudinal que perfazia quase ¼ de círculo era a causa das minhas dores de cabeça e também a razão pelo qual o aro batia nos calços de travão.
DSCF6275
A solução seria substituir o aro, mas rapidamente coloquei-a de lado pois não iria encontrar o material necessário em Montepuez.
O plano B seria tentar soldar o aro, mas levantava-se uma pequena questão técnica. A soldadura teria que ser a alumínio e feita por um profissional. A probabilidade de danificar irremediavelmente o aro era elevada.
DSCF6284 Passei o resto do dia a correr de um lado para o outro à procura de uma oficina que soldasse a alumínio.
No entanto as minhas buscas foram completamente infrutíferas, tanto na busca de soldadores como na busca de material de reposição.
Decidi atacar os dois problemas restantes. O desviador da corrente e a substituição do raio.
Nas oficinas da Plexus (uma empresa de algodão), conheci um jovem engenheiro que prontamente disponibilizou um mecânico para me ajudar na remoção da cassete (carretos traseiros) para que a substituição do raio fosse possível.
DSCF6288
De volta ao anexo na casa do Lito, comecei a reparar o que podia.
O desviador da corrente necessitava apenas de umas marteladas e uns apertos para voltar à correcta posição dele.
A substituição do raio estava consumada, faltava apenas a afinação da roda… que no entanto de nada valia tendo o aro no estado que estava.
DSCF6297Passavam das 20h30 quando concluí todas as reparações que tinha planeado, excepto o problema do aro. Havia consumido todos os neurónios na procura de uma solução, mas nada.
Chegou a fome…
De barriga cheia a cabeça funciona melhor. Regressei ao restaurante do Lito para comer outra costeleta, e foi a meio da mesma costeleta que tive uma ideia que me permitiria chegar a Pemba (se tudo corresse bem).
Novamente no anexo do Lito, decidi aplicar uma cola metálica ao longo da fissura do aro, com dois objectivos. O 1º objectivo seria colar o aro (algo que não tinha grandes esperanças) e o 2º objectivo seria o de proteger a câmara-de-ar das arestas cortantes da racha existente no aro.
DSCF6305
Após a operação de colagem, montei o pneu no aro e fiz o primeiro teste.
Tirando o facto que o aro parecia mais uma elipse que um círculo, tudo parecia estar a funcionar bem.
As mudanças e o desviador estavam a trabalhar bem (apesar de algumas limitações), faltando apenas centrar e alinhar a roda.
Dificuldades superadas, esperava-me para o dia seguinte uma etapa de 110Kms até Metoro.
Estava a 2 dias de chegar ao Oceano Índico…

Moçambique (Jamira – Montepuez)

 

Encontrava-me na sala de embarque do aeroporto de Maputo. Pelas amplas janelas podia ver vários aviões parqueados à minha frente, mas não conseguia distinguir qual deles seria o avião que me levaria de regresso a Portugal.

A viagem de bicicleta terminara. Num ápice tudo acabara. O que demorara anos a sonhar e meses a preparar, esvaecera-se em poucos dias... ou talvez um pouco mais que umas semanas ou mesmo meses. Perdera a noção de “tempo”, mas uma coisa tinha em mente, eu estava de regresso a casa e nada podia fazer. Iria voltar para o mundo dito normal, para a rotina do dia-a-dia e para os comportamentos estereotipados. Para trás ficavam os tempos de pura liberdade e puro prazer…

Fui conduzido por uma hospedeira loira de uniforme azul ao local de embarque e posteriormente ao meu lugar no avião. Estava sentado à janela na fila do lado direito. Nos lugares adjacentes… ninguém. Ia sozinho. À minha frente, uma hospedeira de uniforme vermelho fazia os últimos preparativos antes da descolagem.

Enquanto o avião fazia-se à pista e iniciava a operação de descolagem, olhei pela pequena janela oval e despedi-me de um Maputo do qual não eu tinha recordações. Tudo passara demasiado depressa. Nas profundezas da minha consciência não conseguia encontrar as memórias das últimas etapas em solo Moçambicano. A única coisa que permanecia entranhado em mim, era o cheiro e o sabor a terra... Pedi um copo de água à hospedeira de uniforme vermelho para lavar a boca e fechei os olhos… senti o ar condicionado do avião a entrar em funcionamento e o corpo a arrefecer…

DSCF6191

Acordei semi-gelado pouco antes das 5h30 com a síndroma que estava na recta final da minha viagem. Na minha boca ainda podia sentir o sabor a terra juntamente com alguns grãos de pó que nela se tinham alojado no dia anterior.

No meu corpo estava toda a roupa com que havia percorrido a última etapa e assim iria permanecer, pelo menos para a etapa seguinte.

Rapidamente pus-me a pé e iniciei o ritual de preparativos para começar o dia.

Pedi aos meus ajudantes da noite anterior para ferverem um pouco de água, a fim de preparar as minhas papas Cerelac, enquanto eu desmontava a tenda e apetrechava a bicicleta com a devida carga.

DSCF6192

Na parte da frente do armazém de cereais chegavam os primeiros fregueses, ora para comprar ora para vender os seus produtos.

DSCF6194

Aos poucos os raios de Sol iam aquecendo o dia, que tinha iniciado bastante fresco.

Até Balama eram cerca de 40Kms e o simples facto de as pernas estarem a acusar um ligeiro cansaço (devido ao dia anterior) levava-me a considerar a hipótese de pernoitar em Balama, caso a estrada estivesse em muito más condições (entenda-se areia). Em caso contrário, seguiria até Montepuez com o objectivo de recuperar o dia perdido na etapa anterior.

DSCF6196

Entre despedidas e agradecimentos, iniciei a etapa às 7h30.

DSCF6204

Continuava por entre montes e vales, sem grandes subidas significativas.

A estrada maioritariamente de terra batida, insistia em manter alguns troços de areia que derretiam-me as pernas e a paciência.

A presença de aldeias aqui e ali tornava-se mais comum, contrariando os momentos de “solidão” do dia anterior.

DSCF6205

O simples facto de saber que os leões e os leopardos permaneciam para lá do riacho que atravessara na etapa antecedente, permitia-me desfrutar do som do meu iPod. Nesta altura já conhecia todos os álbuns de cor e salteado pelo qual optava por usa-lo em shuffle.

Faltavam 10 minutos para as 9h00, quando surge o meu primeiro contratempo.

Novo furo no pneu traseiro. Começava a ficar farto dos furos no pneu traseiro. Desde que entrara em Moçambique que a roda traseira não me dava descanso.

DSCF6207

Após desmontar o pneu constatei uma vez mais que o furo era do lado interior da câmara-de-ar. Aliás, tal como as últimas vezes, não se tratava de um furo no sentido lato da palavra. Tratava-se sim de um pequeno corte. Mantinham-se as minhas dúvidas em relação à qualidade da câmara-de-ar… ou seria simplesmente coincidência.

Pela n-ésina vez, verifiquei se havia alguma limalha ou outro elemento cortante que estivesse alojado no aro (ou pneu) da bicicleta. Mas mais uma vez… nada.

Após reparar o rasgo com mais um remendo, montei o pneu e fiz-me à estrada. Não havia tempo a perder se é que queria chegar a Montepuez.

A paisagem era constituída por um misto entre savana e mato rasteiro. Aqui e ali um embondeiro com toda a sua imponência, a retalhar o céu como se de estilhaços se tratasse.

DSCF6215

Aproximava-me de Balama. Estava a cerca de 20Kms da povoação que havia considerado como o destino final da etapa anterior.

As aldeias começavam a abundar ao longo da estrada. Na maior parte das vezes os seus habitantes nem se apercebiam da minha (silenciosa) passagem. E quando se apercebiam da minha presença, já eu estava de saída pelo outro extremo.

DSCF6208

Em alguns casos cruzava-me com crianças que ficavam estupefactas, sem saber se haviam de fugir ou se haviam de satisfazer a sua curiosidade de ver de perto o branco que cruzava os seus terrenos montado numa bicicleta.

DSCF6209

Com o aquecer do dia veio a transpiração e com a transpiração veio todo o tipo de comichões e irritações, derivadas da sujidade que transportava comigo (e nas minhas roupas) há mais de 24 horas. Só me apetecia coçar com uma escova de arame de modo a arrancar toda a poeira que parecia entranhada nos poros da minha pele.

DSCF6213

A motivação seguia a bom nível mesmo com a constante presença de troços de areia, que fustigavam as minhas perninhas. Por duas vezes acabei estendido na areia devido à súbita aparência de areal quando eu menos esperava. Numa das quedas, e sem que eu tivesse reparado, parti um dos suportes das garrafas e consequentemente perdi a garrafa. Ficava assim, com menos 1 litro de capacidade instalada nas minhas reservas de água.

Tal como na etapa anterior, a energia psicológica vinha do gosto pelo “descobrir”.

Percorria estradas de terra vermelha, sempre com a constante característica “afro”, com os seus cheiros e sons inconfundíveis.

DSCF6210

Eram as 10h30 quando entrei em Balama. Apesar das dificuldades tinha conseguido chegar em boa hora o que me permitiria descansar um bocado e prosseguir até Montepuez. Afinal de contas havia percorrido 1/3 da distância até ao destino proposto.

DSCF6217

Balama era uma pequena população sem estradas asfaltadas mas com algumas construções de cimento. À minha esquerda estava o mercado local repleto de vendedores dos mais variados artigos. À minha direita estavam os estabelecimentos que eu procurava, ou seja um local onde pudesse beber uma Coca-Cola bem gelada e onde houvesse algo para trincar.

Dirigi-me à última casa comercial da avenida principal. Entrei juntamente com a bicicleta e pedi a tão desejada bebida de modo a saciar a minha sede.

DSCF6220

O mercado de Balama era o local ideal para me abastecer com bananas e outros artigos que necessitaria para enfrentar os seguintes 60Kms.

Deixei a bicicleta dentro do estabelecimento de bebidas e decidir sair para passear a pé.

Percorri as estreitas vielas do mercado, por entre telhados de capim e bancas de madeira.DSCF6227

  Havia um pouco de tudo, desde fruta a legumes. Sal e peixe seco.

DSCF6226

Todo o tipo de vestimentas (dentro e fora de moda) e também uma grande variedade de artigos enlatados e artigos embalados.DSCF6228

Os lençóis e as capulanas coloridas contracenavam com o esbatido dos edifícios e a cor acastanhada da estrada…

DSCF6232

DSCF6231

em frente às bancas de bebidas, alguns rapazes jogavam matraquilhos enquanto outros descansavam na sombra dos edifícios adjacentes… Em suma… parecia que estava numa grande cidade.

DSCF6229

De regresso ao estabelecimento onde deixara a bicicleta, o empregado alertou-me que tinha o pneu da bicicleta vazio.

Após desmontar o pneu, mais uma vez constatei que o furo era em tudo semelhante aos furos anteriores. Isto é, um pequeno corte no lado interior da câmara-de-ar.

DSCF6238 Colei um remendo enquanto devorava algumas das bananas que acabara de comprar no mercado. Pouco depois tinha o pneu reparado e estava pronto para reiniciar a viagem.

Enquanto me despedia do empregado do estabelecimento e ao mesmo tempo que acenava com a mão um “adeus”, ouço um estouro logo seguido de um rápido “psssssssss”.

A câmara-de-ar acabava de rebentar novamente, para meu desespero.

Voltei a colocar a bicicleta dentro do estabelecimento. Retirei das malas todas as ferramentas necessárias para a operação de reparo, inclusive o kit de remendos e colas. Desmontei a roda e em seguida o pneu, com uma paciência de santo. Perdi alguns minutos a tentar detectar onde estava o novo furo e a repara-lo. Desta vez não havia sido um novo furo, mas sim o remendo anterior que descolara.

Tinha então que retirar o remendo velho, raspar a cola com a ajuda de uma navalha e voltar aplicar um remendo novo. Desta vez a operação foi elaborada com o dobro do cuidado para evitar de repetir todos estes passos uma vez mais.

Eram as 12h30 quando voltei a sentar-me na bicicleta para enfrentar os restantes 60Kms até Montepuez.

DSCF6240

Via com bons olhos os últimos quilómetros da etapa, pois havia reparado na existência de veículos em Balama, o que significava que a estrada até Montepuez não estaria em tão más condições como a que percorrera até ali.

Ao que me tinham informado em Balama, este troço estava a ser reparado por uma empresa italiana de obras públicas, pelo qual não teria qualquer problema em percorrê-lo.

Cerca de uma hora depois de ter deixado Balama, ainda não tinha encontrado qualquer vestígio de reparação ou beneficiação da estrada. Continuava por uma estrada de terra batida com alguns troços de areia por entre belas paisagens tipicamente africanas.

DSCF6245

Voltei a encontrar mulheres com os fardos de palha na cabeça, que me fizeram recordar a ilusão óptica que havia sofrido aquando da minha travessia do areal na Zâmbia, onde confundi uma figura semelhante com a silhueta de um cavalo.

DSCF6246

Apesar do cansaço físico e das incomodativas comichões pelo corpo todo, permanecia animado. O ritmo baixava com o passar das horas devido ao desgaste extra provocado pelos pequenos troços de areia que iam surgindo pela frente. Mas na maior parte das vezes a beleza paisagística fazia-me abstrair de tudo isso, de maneira que eu nem notava a baixa de rendimento.

DSCF6248 No entanto nem tudo podia correr bem, e neste momento além dos constantes e inexplicáveis furos na roda traseira, debatia-me também com problemas no desviador da corrente (traseiro).

Sem saber muito bem qual a razão, o desviador prendia, enrolando-se com a corrente de modo que eu era obrigado a parar.

Para me desembaraçar de tal imbróglio tinha que recorrer à força bruta e enfiar uns coices nos pedais (mas em sentido contrário) de maneira a soltar a corrente.

Quando o desviador da corrente decidia dar-me um pouco de paz, então o pneu traseiro resolvia marcar a sua presença.

DSCF6252Eram as 14h45 quando recebi mais um presente. Contava com 6 remendos colados nesta câmara-de-ar e ia aplicar o sétimo para puder seguir viagem até Montepuez.

 

Á medida que me aproximava de Montepuez cruzava-me com armazéns ou estabelecimentos comercias de outros tempos, que eram muitas das vezes utilizados pelos mais pequenos como locais de encontro para as suas brincadeiras.

Á minha passagem gritavam sons de euforia e de espanto. Corriam uns para os outros como baratas tontas e se eu lhes apontasse a máquina fotográfica, faziam posições tipo Dragon Ball.

DSCF6251

45 Minutos depois de ter tido o último furo, eis que ganhei mais um brinde. A minha roda traseira estava a fazer o derradeiro teste à minha santa paciência.

DSCF6253Furo atrás de furo, sem que eu encontrasse um motivo para tanto infortúnio. Todos eles do lado interior da câmara-de-ar.

Para agravar ainda mais a situação, reparei que tinha um raio partido na mesma roda.

Nada podia fazer ali no meio do mato. Em Montepuez teria obrigatoriamente que dedicar algum do meu tempo à manutenção/reparação da bicicleta.

Muito possivelmente iria perder uma manhã ou um dia nas reparações, o que iria atrasar a minha partida em direcção a Pemba.

Pedalava em direcção a Montepuez. A estrada ia melhorando de condições a cada quilómetro que passava, no entanto nunca avistei as ditas máquinas que supostamente estavam a fazer a beneficiação ou reconstrução da estrada.DSCF6250

Possivelmente o projecto ainda estava em fase de iniciação.

Eram quase as 17h00 quando iniciei a minha entrada em Montepuez. No início uma confusão de barracas e lojas, por entre vias de areia e terra batida. Parecia que toda a população estava na rua, circulando a pé, de bicicleta ou motoreta, dificultando a minha passagem.

Por todo o lado havia barracas de bebidas com enormes colunas de som do lado de fora, que soltavam uma ensurdecedora vozearia. Questionava a mim mesmo como seria possível os clientes, que permaneciam encostados às mesmas colunas, de manterem uma conversa entre eles ou mesmo com o empregado de balcão.

As crianças e os jovens que saiam das escolas com os seus característicos uniformes escolares em correrias inconstantes, sobressaíam do resto das gentes adereçadas com as vestes habituais.

Enquanto tentava desembaraçar-me da confusão de gente para chegar ao centro da cidade, reparei que tinha novamente o pneu traseiro vazio.

Não havia condições nem paciência para reparar o furo no local onde me encontrava. Simplesmente optei por encher o pneu sem o reparar e ir percorrendo aos poucos os quilómetros que faltavam, pedalando apoiado no guiador de modo a aliviar o peso na roda traseira.

DSCF6254

Entrei em Montepuez por uma avenida larga e limpa com duas faixas em cada sentido, separadas por um passeio central. Por todo o lado encontrava bonitos edifícios de outra época e em bom estado de conservação.

DSCF6259

DSCF6258

Dei uma volta pela avenida principal à procura de um lugar para dormir. Na estação de serviço central (onde aproveitei para encher o pneu), indicaram-me a Montepuez Sleeping house.

A Montepuez Sleeping house era uma pensão com condições (e preços) acima do meu orçamento diário. Após uma curta troca de algumas impressões com o dono da pensão, este convidou-me a permanecer num anexo da sua casa por um preço bastante mais convidativo.

Pelo menos teria uma cama e direito a banho de água quente, que era o que eu mais precisava depois dos dias a comer pó, terra e areia. Era bem notória a camada de barro que eu trazia alojada na minha pele e na minha roupa.

DSCF6271

O serão foi passado no restaurante da pensão, na companhia do Lito (o dono) e alguns amigos. Escolhi uma mesa ao canto e no fundo da sala, para que as minhas “maneiras” de comer não fossem notadas pelos restantes clientes do restaurante.

Deliciei-me com uma costeleta gigante (que pareceu-me minúscula) e uma pratada de arroz. Mas como já era previsível, cinco minutos após o jantar já tinha o meu estômago a dar sinal de “vazio”. Tive que pedir uma segunda dose.

Após os pastei de nata e o café Delta, encontrei no restaurante do Lito mais um gosto de Portugal…

DSCF6272

No total da etapa do dia, percorrera 95Kms em 9h48m das quais apenas 6h09m foram em movimento. O restante tempo foi dedicado a passeios pelo mercado de Balama e a reparar furos.

Percorri um total de 2Kms a empurrar a bicicleta pelos diversos troços de areia, que me consumiram 36  minutos.

Moçambique (Marrupa – Jamira)

 

Após um dia de descanso em Marrupa onde o único objectivo era a recuperação física das minhas pernas, decidi que estava na hora de arrancar em direcção a Balama.

Estava optimista e motivado relativamente à distância que teria que percorrer. Os 151Kms de picada não me assustavam, no entanto estava ciente que as pernas poderiam voltar a acusar desgaste sem qualquer tipo de aviso prévio, o que me levaria a procurar abrigo algures no meio do mato.

As baixas temperaturas nocturnas e matinais já haviam deixado mossa na minha garganta e no meu nariz. Praticamente não conseguia falar sem sentir uma lixa para madeiras a roçar a faringe. O nariz era uma válvula fechada que não cedia à maior das pressões que eu exercia quando expirava.

DSCF6069

Contudo o nariz entupido não era motivo para grandes preocupações. Sabia que assim que eu começasse a pedalar, as vias nasais seriam forçosamente desimpedidas. O único inconveniente de ter o nariz obstruído seria a falta de paladar, o que me impediria de degustar o pequeno-almoço da melhor maneira.

Havia pedido o meu pequeno-almoço para as 6h30, no entanto às 7h00 quando me desloquei à cozinha da pensão, encontrei as cozinheiras ainda a descascar as batatas para as fritar.

Antes de partir em direcção a Balama, voltei a confirmar as condições da estrada. Entre algumas suposições e palpites dos meus novos informadores, concluí que a estrada até Nungo (40Kms) era picada em bom estado (algo que já me tinham confirmado nos dias anteriores).

DSCF6070Depois de Nungo é que começavam as incógnitas e as incertezas. Aparentemente teria cerca de 20 a 30Kms de picada em muito mau estado, para depois voltar a encontrar a via num estado aceitável.

A serem verdadeiras as informações colhidas, eu poderia continuar a sonhar em percorrer a distância de 151Kms até Balama entre 8 a 10 horas.

Iniciei a viagem às 7h45, cerca de 45 minutos depois da hora programada.

Imediatamente após sair do perímetro de Marrupa, entrei na picada. Para trás ficava a estrada alcatroada…

A estrada em terra batida encontrava-se em bom estado permitindo-me deslocar a boa velocidade. O ar frio da manhã invadia-me as narinas, trazendo com ele o cheiro inconfundível a terra vermelha e a mato.

DSCF6074

Do topo das colinas podia ter a imagem da estrada a serpentear pelo mato fora, como que a indicar-me o caminho para Este. Ao longe, os já habituais maciços graníticos que pareciam surgir do nada e que proliferavam pela região.

DSCF6081

Estava a afastar me de Marrupa e consequentemente a entrar cada vez mais fundo naquilo que poderia chamar de “desconhecido”. Pedalava alimentado por uma adrenalina que brotava em mim, sempre que seguia em zonas mais remotas que as habituais. Lembrei-me de Angola!

Talvez a última vez em que havia sentido algo semelhante fora nos 3 troços de Saurimo para Luena e nos seguintes 3 troços de Luena para Lumbala N’Guimbo.

DSCF6082 As pernas pedalavam com um entusiasmo fora do normal, de tal modo que conseguia manter velocidades médias perto do 20Km/h.

Por vezes o entusiasmo era tal que atingia (nas descidas) velocidades perto dos 40Km/h, passando por cima de lombas e regos, curvando nas bermas e taludes… para logo de seguida ser obrigado a parar a bicicleta a fim de colocar nos suportes da mesma, a bagagem que se havia soltado devido os pinchos originados pela inspirada condução.

Eram as 9h50 e eu encontrava-me muito próximo de Nungo. Era o último posto “conhecido” onde eu poderia passar a noite, caso não DSCF6094seguisse directamente até Balama.

Estava na altura de realizar alguns prognósticos à minha condição física e decidir se deveria seguir viagem ou se deveria poupar as minhas pernas.

Faltavam mais de 100Kms até ao destino proposto para a etapa do dia, os quais eu calculava percorre-los entre 6 a 8 horas. As pernas estavam de boa saúde e pediam mais quilómetros, no entanto pela frente teria o troço mais difícil do percurso.

DSCF6101 Enquanto fazia uma série de cálculos mentais, cheguei a Nungo. E da mesma maneira que cheguei… também saí... Mas pelo outro extremo da aldeia em direcção a Balama.

 

Assim que entrei em Nungo não reflecti muito mais sobre a possibilidade (ou não) de ficar a pernoitar na aldeia. DSCF6105Queria aproveitar todo o entusiasmo e motivação para seguir em frente na etapa, mesmo sabendo que um troço difícil poderia me atrasar horas, obrigando-me a procurar lugar para pernoitar antes de Balama.

Logo após a aldeia de Nungo, a estrada piorou consideravelmente. Era visível por todo o lado o efeito das chuvas e o efeito das correntes de água e lama que “comiam” a estrada e abriam enormes regos à sua passagem.

DSCF6109Uma vez mais encontrava-me no meio de nenhures, mas desta vez sem estrada alcatroada.

O receio de me encontrar com leões ainda permanecia nas minhas veias, todavia ligeiramente apaziguado devido ao esclarecimento do Constantino onde referiu que os leões existiam na estrada para Mecula e não na estrada para Balama e Montepuez (apesar da distância em linha recta ser inferior a 50Kms).

Pouco depois cheguei a uma ponte construída com toros de madeira, a qual exigia alguma atenção ao atravessa-la a fim de evitar que a roda traseira se enfiasse nos intervalos dos troncos e consequentemente empenasse (ou partisse) o desviador da corrente.

DSCF6114 

Contudo a maior dificuldade encontrava-se do outro lado da ponte.

Aparentemente a água existente nos terrenos teimava em passar ao lado da ponte, em vez de seguir no canal existente para esse efeito.

DSCF6117

A bicicleta não tinha altura suficiente para atravessar o charco, sem que os alforges ficassem meio palmo dentro de água, situação essa que seria imperativo evitar.

Havia quem já soubesse do obstáculo natural existente na área, aproveitando-o como um modo para ganhar alguns tostões. Rendido às evidências, dei autorização a dois dos miúdos mais fortes para carregar a bicicleta através do charco, onde eu seria o terceiro carregador colocado num dos lados da traseira da bicicleta.

De repente e sem me aperceber muito bem como, já não havia lugar para eu levantar a bicicleta. Estavam 8 almas a carregar a minha bicicleta para a outra margem do charco, onde estavam incluídas duas mulheres e um bebé de colo (neste caso pendurado nas costas da mãe).

DSCF6118

Assim que chegámos a terra firme, o rapaz mais velho pediu a “taxa” pelo serviço efectuado sem nunca ter mencionado uma quantia a pagar. Paguei-lhe um pouco acima daquilo que considerava ser o valor correcto do serviço, no entanto ao ver os olhos dos outros miúdos completamente arregalados e uns sorrisos que lhes rasgavam as bochechas, rapidamente concluí arrependido, que acabara de inflacionar o mercado…

Pela frente ainda deparei-me com mais 2 charcos de dimensões consideráveis, mas desta vez de baixa profundidade, o que evitou o recurso à ajuda de terceiros.

DSCF6125

Levava 3 horas em cima da bicicleta desde que saíra de Marrupa, quando cheguei ao primeiro troço de areia. Ainda fruto da boa inspiração que as minhas pernas possuíam, tentei atravessar o obstáculo arenoso pela berma do lado esquerdo. Afinal de contas conseguia distinguir marcas de pneus de bicicleta, o que quereria dizer que alguém teria circulado por essa mesma berma.

DSCF6129

Não foram necessários muitos metros a pedalar na areia, para que rapidamente me atravessasse no cérebro os momentos que passei em terreno semelhante para chegar a Sioma Camp (Zâmbia).

O esforço que tinha que fazer nas pernas era novamente desgastante e inglório. Os braços quase que não seguravam o guiador e num ápice toda a força anímica desmoronou-se. Era obrigado a desmontar da bicicleta e voltar a empurra-la, empregando a mesma técnica apurada (mas já um pouco esquecida), que usara nos 3 dias de travessia entre Nangweshi e Sesheke (Zâmbia).

Logo a seguir veio a fome, o buraco no estômago e consequentemente a fraqueza. Em poucos minutos encontrava-me a dizer mal dos troços de areia e a desejar que acabassem rápido.

Assim que acabava a tormenta da travessia do areal, voltava a subir na bicicleta para pedalar na deslavada estrada de terra batida.

DSCF6133

Sentia como nunca (durante a etapa), o desgaste ao nível de pernas, braços e ombros. Já não pedalava com a adrenalina nem o entusiasmo matinal. Deixava de ser o miúdo que queria acelerar, passar por todos os taludes, saltar regos e gingar por entre obstáculos. Era agora um graúdo que com a devida maturidade, estudava com antecedência onde iria colocar a roda da frente, evitando a todo o custo tudo que exigisse um pouco mais de esforço físico para controlar a bicicleta.

O cansaço começava a apoderar-se da minha consciência, contudo por vezes, esta orientava-se para o espectro “leão”. Afinal de contas não estava muito longe do seu (suposto) território.

DSCF6140

Por vezes instruía o iPod para me alimentar os tímpanos com algo energético a fim de me abstrair da realidade e aumentar um pouco a prestação física. Todavia esta solução culminou na aparência de um paradoxo entre o prudente mas inconfortável silêncio do mato e entre o incauto mas motivador barulho musical.

As poucas bananas que possuía e as bolachas que comprara em Marrupa, iam disfarçando o vazio que sentia no estômago. Porém a existência de troços de areia fazia com que o meu organismo assimilasse todo e qualquer vestígio de bolo alimentar existente no bucho.

Eram bem visíveis os estragos provocados pelas chuvas torrenciais na picada. Os regos fundos dificultavam a passagem a qualquer veículo 4X4. As diversas ramagens colocadas na parte central da via e normalmente usadas para aplicar debaixo dos pneus das viaturas atascadas, davam uma ideia clara das dificuldades que as mesmas haviam sofrido para percorrer o mesmo troço.

DSCF6147

Eu conseguia seguir viagem pedalando sobre pequenos taludes de cume achatado ou pedalando pelas desniveladas bermas, avaliando constantemente o estado do piso de maneira a evitar acabar com os queixos dentro de um dos perigosos regos.

Onde a estrada não se encontrava carcomida pelas intempéries, era a vez de a vegetação entrar em cena de tal modo que o capim quase fechava a estrada.

DSCF6152

Apesar dos meus esforços para o evitar, a minha mente perpetuava o paralelismo entre a imagem que os meus olhos transmitiam ao cérebro e os cenários do National Geographic (leão). Um paralelismo nada higiénico para a minha saúde mental, que aliada ao desgaste físico e ao factor “Hora do Dia Vs Kms por Percorrer”, contribuíam para um desassossego relativamente a possibilidade de chegar a Balama.

Pouco depois, e como para me distrair um pouco do medo psicológico que me percorria as veias, decidi furar o pneu traseiro. Antes de sair da bicicleta, olhei à minha volta numa tentativa inútil de identificar qualquer tipo de animal que, pelas suas vestes naturais, encontrar-se-iam camuflados.

DSCF6157

Deitei a bicicleta sobre o seu lado esquerdo (lado contrário ao desviador da corrente).

Em poucos segundos libertei as tiras de borracha (feitas de câmara-de-ar) que protegiam os alforges, desapertei o eixo e retirei a roda.

Aliviar o pneu do aro e extrair a câmara-de-ar foi uma questão de um par de minutos, ao mesmo tempo que os meus olhos rodavam em torno da nuca num constante sentido de alerta.

Identificar o furo com a ajuda da língua molhada em saliva e colar um remendo, necessitou de pouco mais de um minuto. Tinha todos os meus sentidos em alerta máximo. Qualquer barulho proveniente do mato fazia-me saltar de pés juntos.

Em seguida era só uma questão de colocar a câmara-de-ar e o pneu no devido lugar, para poder aplicar umas bombadas de ar até que o pneu atingisse a pressão desejada.

No total demorei 13m25s, desde que parei a bicicleta até que voltasse a pedalar.

Acho que nunca mudei um pneu tão rápido!

DSCF6155

Continuava estrada fora rumo a Balama. O tempo estava a passar e cada vez mais considerava que não chegaria ao destino proposto antes do final da tarde.

Pouco passava de 14h00 quando avisto à minha frente, um individuo a empurrar a sua bicicleta. Seguia no mesmo sentido que eu, e subia a passos largos uma pequena colina repleta de vegetação. Fiquei radiante. Finalmente encontrava alguém e poderia obter algumas informações. Coloquei-me ao lado dele, pedalando devagar de modo a seguirmos à mesma velocidade.

Após as apresentações, fiquei a saber que o meu novo parceiro seguia também para Balama e apesar de ter o pneu da bicicleta furado, ele ainda achava-se capaz de chegar durante o dia (ou durante a noite) de hoje.

DSCF6149Fiquei ligeiramente intrigado, pois eu também conseguia chegar a Balama… mas nunca antes das 18h00 (e a andar bem) … O que significava ter que pedalar de noite no meio do mato, por mais de 1 hora.

Entretanto parámos ambas as bicicletas na berma. Ao mesmo tempo que escutava alguns detalhes sobre o troço até Balama, tirava das minhas malas o “kit” para reparar o pneu do meu colega.

A ideia de ter que pedalar de noite naquela zona, não engrenava nada com as minhas pretensões, no entanto o meu parceiro não parecia muito preocupado com isso.

Perguntei-lhe directamente a que horas pensava ele chegar a Balama, mas a resposta que obtive era constituída por unidades de tempo não mesuráveis ao olho de um ocidental. Perguntei-lhe então se não havia problema de pedalar de noite devido a leões ou leopardos:

- Nada! Esses aí… só do outro lado do rio que acabámos de passar… - Respondeu confiante. Eu perguntava para mim mesmo “mas qual rio?”… a única coisa parecida com um rio foi um ribeirito com uns troncos em cima a fazer de ponte… cerca de 1 quilómetro atrás.

- Esse mesmo! Eles estão do outro lado. Aqui já não há problema.

Fiquei muito mais descansado em saber que a bicharada estava do outro lado de um riacho com 2 metros de largura e 20cm de profundidade, e que não passava para o lado de cá

Enquanto trocávamos ideias sobre a vida selvagem da região, concluímos que nada podíamos fazer para reparar o pneu furado. Nenhum de nós possuía ferramentas para desapertar o eixo da jante 28” da sua bicicleta nem sequer uma bomba de ar que servisse no tipo de pipos da sua câmara-de-ar.

O meu amigo parecia estar ainda menos preocupado que eu. Já estava “perto” da casa de um primo e lá iria conseguir arranjar a bicicleta. Deixei-lhe alguns remendos para reparar a câmara-de-ar e segui viagem.

Nos troços em bom estado, tentava recuperar algum do tempo perdido nas partes arenosas. DSCF6158

No entanto nada era eterno e logo depois de uns quilómetros a pedalar em estrada boa, apareciam sempre umas centenas de metros de estrada de areia, onde eu era obrigado a arrastar a bicicleta à mão até encontrar novamente um pedaço de solo compacto.

DSCF6132 Por vezes aventurava-me pelos troços de areia sem desmontar da bicicleta, numa tentativa de chegar a “terra firme” sem ter que empurrar/puxar a bicicleta e os seus 35Kgs de Carga.

Havia alturas em que as travessias corriam bem, outras havia, em que eu dava por mim já sentado na areia com os pés presos nos pedais e a bicicleta no meio das pernas.

Numa dessas vezes em que eu “acordei” com o costado envolto em areia por não ter conseguido tirar os pés dos pedais em tempo útil, acabei por danificar a minha máquina de fotografias.

A areia enfiou-se por tudo quanto era frinchas da minha câmara impedindo que esta funcionasse nas melhores condições. O primeiro indício que algo estava mal era as lamelas de protecção da lente que não queriam abrir.

DSCF6160

Começava e avistar novamente gente a circular na estrada. Apesar de ainda serem muito poucas, significava que eu estaria perto de uma aldeia… ou então perto da casa do primo do meu amigo.

Já passava das 16h00 e pela frente ainda tenha mais de 45Kms até Balama. Tal como previra algumas horas antes, era de todo impossível chegar a Balama com a luz do dia. Parte da viagem teria que ser feita de noite, algo que eu não estava de todo predisposto… mesmo sabendo que os leões só andavam do outro lado do ribeiro. Por outro lado, já não tinha água suficiente para fazer muitos mais quilómetros. Teria obrigatoriamente que ficar na próxima aldeia, fosse ela onde fosse…

Demorou quase 45 minutos até que voltasse a encontrar alguém na estrada.

DSCF6165

Aproximei-me do ciclista que seguia à minha frente e após as notas introdutórias, perguntei-lhe onde era a próxima aldeia.

- Já ali à frente… – Respondeu sem hesitação.

“Pronto”- Pensei exausto – “Já vou ter que pedalar mais 30Kms”.

Contrariamente ao que supôs, pedalei apenas 3 minutos até encontrar (ainda iluminado pelos raios solares) aquele que seria o meu “Porto Seguro”.

DSCF6172

O edifício era um vestígio de outrora que neste momento funcionava como um armazém de cereais. Era a única edificação feita de tijolo e cimento da aldeia.

Do outro lado da estrada estava 3 ou 4 casas feitas de lama e palha e nas suas proximidades estava a bomba de água manual onde eu poderia encher as minhas garrafas. Ao fundo da estrada (talvez a 300 metros) conseguia ver um aglomerado de barracas feitas de troncos e capim, com coloridos sacos de plástico pendurados por toda a parte. Era o mercado da aldeia.

Perguntei ao responsável pelo armazém de cereais onde eu poderia montar a tenda e onde poderia petiscar alguma coisa rápida. Prontamente respondeu que eu podia montar a tenda nas traseiras do edifício e para o caso da comida podia comprar uma galinha (viva) no mercado.

Agradeci ao simpático homem. Reservei o lugar onde iria montar a minha tenda e decidi dar um saltinho ao mercado da aldeia à procura de algo para beber e para petiscar.

Comprei um bocado de pão em forma de melão e juntei-lhe 2 garrafas de Fanta servidas à temperatura ambiente. Estava feito o meu lanche. Devorei uma Fanta e metade do pão sem sequer me aperceber da quantidade de miúdos que por esta altura, olhavam intrigados para todos os pormenores da bicicleta.

DSCF6174

De estômago acomodado, estava na hora de regressar ao armazém de cereais para iniciar a preparação da minha tenda e também do meu jantar.

Faltavam 15 minutos para as 18h00 quando cheguei ao velho armazém. À minha espera estava o responsável pelo espaço comercial juntamente com um grupo de crianças, que excitadas, não paravam de fazer malabarismos só para aparecerem nas fotografias.

DSCF6175

O responsável pelo armazém era a única pessoa que falava português. Explicou-me que as crianças não sabiam a língua de Camões porque não queriam ir à escola da aldeia, “Dizem que não vale a pena aprender nada se no final da escola não encontrarão emprego… ”.

Eu iria ficar sozinho com dois dos (miúdos) guardas, pois estava na hora dos restantes regressarem a casa. Antes de partir, o gerente deu as instruções finais aos guardas. Um deles iria buscar água ao poço para eu beber e poder cozinhar, enquanto o outro ficava encarregue de acender uma fogueira.

Enquanto isso, eu preparava a minha tenda sob a luminosidade da minha lanterna e de duas pequenas velas.

DSCF6187

O pão e as duas Fantas que eu ingerira minutos antes, já não residiam no meu estômago. Teria que preparar um panelão de esparguete para saciar o vazio que havia em mim.

Pedi uma panela aos meus anfitriões, pois a minha era pequena para cozinhar a quantidade de comida que eu pretendia.

Um dos miúdos entrou numa dispensa escura, basculhou por entre sacos e restos de metal para depois regressar com uma panela, um prato e uma colher.

Olhei para a panela completamente preta pela fuligem de outras fogueiras. No lado de dentro ainda estavam os restos de comida da última refeição ali cozinhada (provavelmente dias antes). O prato e a colher apresentavam a mesma decoração do interior da panela. Voltei a fazer uma pequena inspecção à panela para saber se tinha algum furo e em seguida disse ao meu ajudante:

- É isto mesmo, obrigado.

Este concordou comigo e iniciou o processo de remoção dos restos de comida com a palma da mão, como quem lava loiça com um esfregão e detergente. Seguidamente deitou um pouco de água dentro da panela, abanou a mesma em círculos de maneira a recolher todos os detritos solidos e despejou a água fora. Estava a panela lavada! O prato e a colher passaram pelo mesmo processo mas um pouco mais rápido.

Minutos depois estava sentado junto à fogueira a aguardar que a água fervesse para poder comer o meu delicioso esparguete com sardinhas.

DSCF6179 

DSCF6188 Ainda não eram as 20h00 quando deitei-me na minha tenda, vestido com as mesmas roupas com que viajara nesse dia. As noites estavam muito frias, o que desencorajava remover qualquer peça de vestuário, quanto mais tomar banho a balde.

Na minha pele estavam mais de 100Kms de pó, terra e areia. Sentia a testa a estalar cada vez franzia as sobrancelhas, enquanto nos braços e pernas as coceiras começaram a emergir.

Nada que o cansaço e uma barriga cheia não conseguissem resolver da melhor maneira…

Na etapa do dia percorri 114Kms dos 151Kms (a que me havia proposto) em 9h17m.

Empurrei a bicicleta durante 52 minutos para percorrer 3Kms de estrada de areia.

Estive parado durante 49 minutos onde se inclui a reparação do meu pneu e a tentativa para reparar o pneu do meu colega.

Na etapa seguinte iria tentar passar Balama e ir direito para Montepuez. Afinal de contas eram apenas 95Kms.